Dicionário Político XXI
a
- Aborto
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. O aborto traduz-se na morte, natural ou provocada, de um embrião ou feto. Tratando-se da morte provocada, estamos diante de um crime, previsto no artigo 140º Código Penal, para salvaguarda do bem jurídico vida intrauterina, o qual, em termos ontológicos e axiológicos, não se diferencia da vida de uma pessoa já nascida. Consagram-se, porém, hipóteses de não punibilidade do aborto, reconduzidas pelos autores, consonante a situação em apreço e a posição doutrinal que sustentem, a situações de exclusão da ilicitude (v.g., no caso de risco de vida ou de lesão da integridade da mãe) ou de exclusão ou atenuação da culpa (v.g. no caso de aborto eugénico e nos casos de violação). A estas hipóteses acresce, depois da alteração legislativa de 2007, a possibilidade de aborto a pedido da mãe, nas primeiras dez semanas de gestação. A solução dos prazos, como ficou conhecida, suscita dúvidas de constitucionalidade, atento o disposto no artigo 24º CRP e a indiferenciação entre as diversas fases da vida. Na verdade, não só é inegável a dignidade do bem jurídico tutelado, como se revela imprescindível a proteção penal, pela ineficácia, sobretudo nos casos de consenso entre os dois progenitores, da solução responsabilizatória civil. A despenalização do aborto que por esta via se alcançou, a corresponder a uma verdadeira legalização, veio dar resposta a reivindicações várias, assentes em perspetivas muito diversas.
2. Numa tentativa de sistematização das diversas perspetivas favoráveis à despenalização do aborto, podemos falar de uma visão coisificadora do embrião, de uma visão libertária e de uma visão que, assente em preconceitos marxistas, prefigura na mãe a tradicional luta de classes. Para a primeira perspetiva, o embrião não teria o estatuto de pessoa, não lhe sendo reconhecida qualquer dignidade, ou porque não passaria de um agregado de células ou porque não seria capaz de percecionar a sua própria condição. Neste primeiro grupo filiam-se não só aqueles que negam os dados da biologia, como outros que, reconhecendo-os, se deixam orientar por uma ideologia utilitarista. Exemplo disso é Peter Singer, um dos arautos da causa da libertação animal, que chega ao ponto de defender o aborto até ao nascimento (e mesmo o infanticídio), pela falta de senciência do ser humano até uma certa idade, ao mesmo tempo que se opõe frontalmente à utilização de animais na alimentação, pela consciência que têm do seu sofrimento. Para a segunda perspetiva, numa versão radical, a mulher grávida teria sobre o seu próprio corpo um property right, o que lhe garantiria o poder de expulsar o embrião, dando-lhe a morte. Haveria como que um direito de propriedade da mulher sobre o seu corpo e a remoção do embrião justificar-se-ia em termos de recusa de ajuda, porque a sua presença constitui um uso não autorizado do corpo materno. Repare-se, contudo, que a justificação do bad samaritan, na base do qual está o pensamento de Locke e a influência que este pensador exercer na construção do liberalismo jusnaturalista americano, não permitiria justificar o aborto em todas as circunstâncias, mas apenas naquelas de gravidez indesejada (violação, falha de contraceção) ou de perigo para a vida ou a saúde da mãe. Por isso, avança-se, nesse espetro, com outra fundamentação, menos radical, mas nem por isso menos liberal, assente na ideia de privacidade decisional (a privacy), num argumento invocado no histórico precedente Roe v. Wade, que haveria de ser revertido muito recentemente, com a decisão Dobbs, State Health Officer of the Mississippi Department of Health et al. v. Jackson Women’s Health Organization et al., que, revogando o suposto direito constitucional ao aborto, que havia sido reconhecido, deixa em aberto o debate em torno da sua proibição ou não. No fundo, estando em causa uma matéria do foro privado, a pessoa teria direito a ser deixada só, não devendo haver qualquer interferência do Estado. É também nesta perspetiva que, no quadro continental, se filiam as posições que, invocando uma liberdade negativa e desarreigada de qualquer pressuposição de sentido, sustentam o aborto com base num suposto direito à autodeterminação da mulher. Na terceira perspetiva encontramos os que, sustentando que a mulher mais desfavorecida, por falta de condições económicas, seria condenada à clandestinidade do aborto, preferem a sua liberalização, ignorando totalmente a posição do filho.
3. Qualquer uma das perspetivas referidas deve ser liminarmente rejeitada. Por um lado, não é possível negar a dignidade do embrião enquanto pessoa. Com efeito, o embrião configura uma vida humana e a qualquer vida humana, em qualquer das suas formas, há de ser atribuído o estatuto de pessoa, sob pena de se abrirem as portas a uma diferenciação axiológica entre seres humanos que choca com os quadros valorativos em que nos movemos. Por outro lado, os direitos que pretensamente se invocam não passam de não direitos ou de contra-direitos, na linguagem de Puppinck, na medida em que, superado o formalismo do pensamento positivista e de uma visão consensual procedimental da juridicidade, somos levados a considerar que o direito subjetivo só o é, verdadeiramente, enquanto expressão do direito, se assentar num fundamento axiológico, que descobrimos na ideia ética de pessoa, diferente do indivíduo, na relação ética fundamental que ela pressupõe e que não é mais do que a projeção da relação transcendente a que somos convocados, dado que, mesmo que não seja por todos reconhecido, nos condiciona em termos civilizacionais. A liberdade predicativa do direito subjetivo envolve sempre a responsabilidade pelo outro, donde jamais o aborto poderia configurar o exercício de uma posição subjetiva válida, devendo continuar a afirmar-se a sua ilicitude, quer do ponto de vista civilístico, com possibilidade de se desencadearem pretensões indemnizatórias, quer do ponto de vista penal. Posições como a sufragada pelo Parlamento Europeu, em abril de 2024, de reconhecimento um direito ao aborto e, mais do que isso, de um direito fundamental ao aborto devem ser, pois, consideradas como injustas, no sentido metodológico-filosófico do termo, sob pena de redundarmos numa ordem regulativa que não pode ser considerada uma ordem de direito e do direito.
Bibliografia:
- Paulo Otero, Direito da Vida/Referendo sobre o programa, conteúdos e métodos de ensino, Coimbra, 2004
- Dagmar Coester-Waltien, “Der Schwangerschaftsabbruch und die Rolle des künftigen Vaters”, Neue Juristische Wochenschrift, 1985, 2175 s.
- Paul A. Roth, “Personhood, property rights and the permissibility of abortion”, Law and Philosophy, 2, 1983, 163-191
- Robert P. George, Choque de Ortodoxos. Direito, Religião e Moral em Crise, Coimbra: Edições Tenacitas, 2008
- Mafalda Miranda Barbosa, “Dobbs, State Health Officer of the Mississippi Department of Health et al. v. Jackson Women’s Health Organization et al. breves reflexões em sede de proteção do nascituro”, Boletim da Faculdade de Direito, 98/1, 2022, pp. 159-205
- Autoridade
por Francisco Carmo Garcia, 2024
1. A autoridade está intimamente ligada à inevitável relação de protecção-obediência. Aliás, podemos dizer que o recurso à autoridade é uma das respostas dadas à pergunta clássica sobre Porque devo obedecer? ou à concomitante A quem devo obedecer?. É como resposta a estas duas questões que a autoridade mostra os seus traços distintivos (e que têm sido tão apagados nos últimos tempos) que a diferenciam do conceito de poder. Respeitando a essência da autoridade, temos de deixar claro que ela não é o mesmo que poder: ela ultrapassa a mera fisicalidade do poder e uma visão instrumental a que o poder necessariamente se reduz.
2. Mais do que ver com poder, a autoridade associa-se mais perceptivelmente à legitimidade. Pelo menos foi nela que Max Weber fundamentou a sua tipologia de fontes de autoridade, que distingue entre a autoridade tradicional (fundada no costume), a racional-legal (fundada numa crença na legalidade das normas produzidas por uma ordem impessoal à qual se conferiu o direito de as produzir), e a carismática (fundada no exemplo «extraordinário» de uma pessoa). Apesar de Weber associar a autoridade destas fontes por ele identificadas à sua legitimidade, é evidente que a autoridade carismática é aquela que mais foge a uma ligação à legitimidade: o carisma (o khárisma) pode criar legitimidade, mas não deriva necessariamente dela. O carisma é dom (e, desde logo, dom divino), que concede qualidades extraordinárias a quem o recebe. Confere-lhe autoridade. Neste sentido, a autoridade surge como um conjunto de qualidades extraordinárias – poderíamos dizer, «aristocráticas» - que conferem uma superioridade distintiva da pessoa autoritativa em relação a todas as restantes. Visto isto, não pode passar despercebido o problema que a autoridade traz à própria democracia como regime de igualdade. A autoridade põe em perigo constante o igualitarismo inerente à democracia.
3. Ora, não sendo nem poder nem legitimidade, como podemos saber o que é realmente a autoridade? A resposta está no seu sentido originário. O vocábulo «autoridade» deriva da auctoritas latina, que tem a sua raiz etimológica no verbo augere (que significa «aumentar» ou «acrescentar») e no substantivo auctor (aquele que aumenta ou que acrescenta). No seu significado latino, a autoridade liga-se ao aumento e ao acréscimo – ou seja, ao reforço ou à melhoria de algo que já existe. Falando nos termos que tanto se usam hoje, diríamos que o «autor» é aquele que acrescenta valor. A autoridade assemelha-se, assim, à actividade do conselho; mas é mais do que conselho, porque como opinião autoritativa acaba por condicionar a acção do aconselhado (vindo o conselho de alguém que tem autoridade para falar sobre um determinado assunto, o melhor é não fazermos o contrário do que ela sugere…). Assim, a autoridade assemelha-se ao prestígio, ou melhor, ao reconhecimento de uma qualidade extraordinária na pessoa que a possui. Não é por acaso que a auctoritas se fundou na ideia de excelência ou de virtude. A sua essência é precisamente a excelência ou a virtude publicamente reconhecidas.
4. A tradução política da auctoritas estava, no tempo da República Romana, no Senado. Como Cícero escreve, a «harmoniosa constituição» da República consistia na atribuição do «poder supremo» ao povo e da autoridade ao Senado, sendo o fundamento desta última o consilium ou a sabedoria. Os membros do Senado deviam ser, portanto, exemplos para o resto da cidade: o senador devia ser um exemplo de honra e de virtude. Actuando como o órgão de consilium, o papel do Senado era semelhante ao da «razão» ou da «inteligência» na alma humana. Com efeito, dificilmente se pode ignorar que a autoridade surge, neste seu sentido original, com o papel que a parte «racional» exerce na alma platónica, ordenando as suas partes inferiores, a irascível e a irracional. Ou melhor, visto que não corresponde a uma sede de poder, validaria, aperfeiçoava ou completava a acção dos restantes órgãos públicos. Mais próximo de nós, na Europa medieval, a sede de autoridade haveria de estar na Igreja, cuja autoridade não se ficou pela continuidade da tradição, mas fundamentou-se na transmissão da verdade revelada. Neste sentido, a fonte de autoridade é sempre uma ideia de «vida boa» ou de melhor modo de existência para o homem.
5. A autoridade responde, assim, à pergunta A quem devo obedecer? ou Porque devo obedecer? com um claro pendor aristocrático. A autoridade faz-se obedecer não porque nela se baseia o poder supremo ou a legitimidade conferida pelo direito (como poderíamos dizer que acontece com a soberania), mas porque nela se reconhece que o que a autoridade prescreve é verdadeiro, justo ou bom. Em suma, a autoridade é o princípio de ordem imprescindível e indissociável de uma visão teleológica do mundo, e é também por isso que a sua relação com a democracia – e com a modernidade liberal no geral – é tão difícil e, por vezes, mesmo polémica.
Bibliografia:
- CÍCERO. De Legibus. Livro III. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1959.
- ARENDT, Hannah. «O que é a Autoridade?». Entre o Passado e o Futuro. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.
- MORGADO, Miguel. Autoridade. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010.
- WEBER, Max. Economia y Sociedad. Tradução de José Medina Echevarriaga. I. México: Fondo de Cultura Economica, 1944.
c
- Casamento
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. De um prisma católico, o casamento é um sacramento, que se traduz no pacto pelo qual “o homem e a mulher constituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole” [Catecismo da Igreja Católica, 1601] e, como tal, marcado pela sua indissolubilidade. Centrado no amor conjugal, até porque foi a Igreja que forjou o casamento por amor [Tony Anatrella, “Casal hoje e confusões afectivas e ideológicas”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 82], o matrimónio surge como uma instituição.
2. Do ponto de vista civil, o casamento é um negócio jurídico. Se originariamente surgia definido como o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, tendo uma vocação de perpetuidade, a permissão e facilitação do divórcio, primeiro, e, posteriormente, a pressão individualista que determinou a radicalização das soluções haveriam de determinar uma fragilização da instituição com a sua quase equiparação à união de facto. A isto acresce o facto de, exatamente fruto dessa tendência, também denunciada por Le Pourhiet das sociedades pós-modernas de «transformar[em] a priori em “direito” qualquer reivindicação, aspiração, desejo ou pulsão das pessoas» [A. M. Pourhiet, «Droit à la différence et revendication égalitaire: les paradoxes du postmodernisme», Le droit à la difference, PUAM, París, 2002, 251], tendência esta que resulta de uma confluência simbiótica entre um pensamento de matriz liberal e um certo entendimento do marxismo que, despojado da conflitualidade própria da luta de classes, assume como motor de transformação da sociedade o antagonismo identitário das micro-causas que encontram na família um ambiente perfeito para germinar, se passar a admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
3. O casamento deixa, assim, de acordo com certas perspetivas, de se conceber com uma dimensão verdadeiramente conjugal, e, portanto, institucional, para se transformar na expressão individualista de realização e egoísmos e para passar a assentar na troca de sentimentos e emoções, sem qualquer projeto subjacente e, desse modo, sem qualquer vocação de perpetuidade. Simplesmente, esta visão do casamento, arrastando consigo inúmeros problemas sociais, acaba por não corresponder ao sentido da juridicidade que determina a necessária tutela do matrimónio e da família que, com base nele, se estrutura.
4. Se o direito civil se dirige à família é porque existe a necessidade de garantir, por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, o bom funcionamento da célula básica da sociedade, uma vez que tal garantirá a estabilidade da própria sociedade, que se estrutura em torno da categoria axiológica da pessoa. É exatamente esta pessoa, enquanto categoria ético-axiológica, que está, por exemplo, subjacente (e tem de estar subjacente) à disciplina matrimonial, com consequências prático-normativas de não pequena monta. Se a pessoa é um ser em relação, absolutamente livre e, como tal, responsável pelo outro (antes mesmo de ser responsável perante o outro), então a família alicerçada no casamento mais do que espaço de afirmação de individualidades, haverá de ser local de reunião de responsabilidades, por meio das quais a pessoa realiza integralmente a sua personalidade, um espaço de afirmação de deveres [Leite Campos, “Eu-Tu: o amor e a família (e a comunidade) (eu-tu-eles)”, Nós. Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, 165 s.]. E é nessa medida – e não enquanto espaço subjetivo de afirmação de afetos insindicáveis em termos axiológicos – que o casamento deve ser tutelado e disciplinado. Quer isto dizer que o legislador ordinário não pode fazer do casamento aquilo que a sua vontade arbitrária – coberta pelo manto da legitimidade formal – determinar. Estará sempre limitado na modelação que para a instituição dispense pelos dados axiológicos que são comunicados pelo sentido do personalismo ético de onde partimos, ou seja, pelo sentido da pessoa, autónoma e responsável, na complementaridade sexual que a caracteriza.
5. À mesma conclusão podemos, aliás, chegar pela análise de dados do direito positivo constitucional [cf. Duarte Santos, Mudam-se os tempos, mudam-se os casamentos? O casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009; Ivo Miguel Barroso, “Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: um direito fundamental à medida da lei ordinária?”, Lex Familiae, ano 7, 13, 2010, 57-82]. Como refere Oliveira Ascensão, “o casamento não é um nome apenas suscetível de cobrir qualquer conteúdo”; pelo contrário, tem um sentido próprio e intrínseco que não pode ficar dependente da vontade de cada um ou sequer do legislador ordinário [Oliveira Ascensão, “O casamento de pessoas do mesmo sexo”, Revista da Ordem dos Advogados, 400]. Na verdade, não faz sentido que a CRP conceda um direito ao casamento e depois permita à lei suprimir a instituição ou desfigurar o seu núcleo essencial, como tem ocorrido no tocante às diversas leis que subvertem o sentido da conjugalidade. O casamento é protegido ao nível constitucional, não como um símbolo, mas como uma instituição, em nome da função social que cumpre. De outro modo, se apenas estivesse em causa um espaço de afirmação individual e individualisticamente concebido, não faria sentido tutelá-lo: na verdade, e essa é a questão pertinentemente colocada por muitos juristas, por que razão, se assim fosse, se haveria de disciplinar, tutelando-o, o casamento e não a amizade ou por que razão não se poderia conceber, como hoje muitos já reivindicam, os trios? [cf. Duarte Santos, “O casamento entre pessoas do mesmo sexo: uma perspetiva constitucional”, 16]. Se a descoberta da função social específica do casamento, que está na base do seu reconhecimento como direito fundamental e da disciplina que o legislador ordinário lhe devota, é suficiente para determinar a inconstitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ela será igualmente crucial para impedir qualquer deformação da relação conjugal que implique uma destruição do seu núcleo essencial. Ora, é exatamente isso que ocorreria se considerássemos que o casamento é um “assunto exclusivo dos amantes e cada casal é o seu próprio legislador”, ao ponto de se advogar o desaparecimento ou, pelo menos, a perda de importância dos deveres conjugais e o enfraquecimento do vínculo conjugal, do ponto de vista jurídico. Com este entendimento, aliás, operar-se-ia uma mutação: deixaríamos de ter uma conceção personalista do casamento, para aderirmos a uma conceção individualística. Simplesmente, sabemos que não só ela não corresponde à garantia institucional que a constituição nos comunica, como tal não está em consonância com o sentido e a intencionalidade predicativa da juridicidade alicerçada no ser pessoa e na sua dignidade. Donde, e porque a interpretação de uma norma ou de um instituto jurídico não pode prescindir da remissão para a dimensão normativa dos princípios em que a mesma ou o mesmo se fundam, não nos resta outra hipótese senão considerar a relação matrimonial na sua configuração personalística. À mesma conclusão podemos chegar do estrito ponto de vista civilístico, fazendo apelo à juridicidade, mais ampla que a constitucionalidade. Do mesmo modo, se é certo que o legislador ordinário facilitou, ao extremo, o processo de divórcio, eliminando formalidades e abdicando da sindicância da culpa para os devidos efeitos, isso não significa – nem pode significar – que os deveres conjugais sejam condenados ao desaparecimento ou à irrelevância. E é exatamente por isso, e sem contradição, que, apesar da configuração do divórcio como consequência da constatação da rutura da relação matrimonial (e não como uma sanção), a violação dos referidos deveres não pode deixar de acarretar consequências no plano jurídico, entre as quais a possibilidade de recurso à responsabilidade civil.
Bibliografia:
- Anatrella, Tony, “Casal hoje e confusões afectivas e ideológicas”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 82 s.
- Ascensão, José Oliveira, “O casamento de pessoas do mesmo sexo”, Revista da Ordem dos Advogados, 2009, 400 s.
- Barroso, Ivo Miguel, “Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: um direito fundamental à medida da lei ordinária?”, Lex Familiae, ano 7, 13, 2010, 57-82
- Campos, Diogo Leite, Nós. Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, 165 s.
- Santos, Duarte, Mudam-se os tempos, mudam-se os casamentos? O casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009
- Centrismo
por José Ribeiro e Castro, 2024
É difícil determinar ao certo se o centrismo é apenas um posicionamento, um pensamento ou até uma ideologia, um método ou processo de ação política. Provavelmente um pouco de tudo isto, dependendo as suas características concretas que sejam mais marcantes e definidoras dos respetivos intérpretes, geografias e contextos históricos. Um ponto é absolutamente essencial: a geometria é o principal, pois não há centrismo se não estiver ao centro – mais ou menos “rigorosamente ao centro”, mas sempre ao centro.
Esta dominância da geometria só existe no centrismo – não há outra corrente política para a qual o lugar no xadrez seja tão importante e determinante para a sua identidade. Olhando aos extremos, estes são mais hetero-determinados do que auto-assumidos: a extrema-direita e a extrema-esquerda rejeitam, frequentemente, serem “extremistas”, qualificativo que lhes é aposto por adversários. Não assim com os “centristas”, que o afirmam sem ambiguidades e assim querem ser reconhecidos. E, quanto às correntes de esquerda e de direita (que integram famílias de pensamento diversas tanto à esquerda, como à direita), também diferem, muitas vezes, entre a afirmação própria e na qualificação alheia. Além disso, estas correntes retiram as convicções e propostas programáticas da sua substancial construção histórica, doutrinária e ideológica e não do lugar de cada qual no tabuleiro político. Por isso mesmo o centrismo é a única corrente política que extrai de um lugar a sua identidade e denominação: centro = centrismo. Não há outra assim.
A atitude dominante do centrista corresponde a aforismos clássicos, muito enraizados na cultura ocidental, que já se encontram em Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) ou Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.): in medio virtus (no meio está a virtude). Aforismos que surgem também na cultura popular corrente: nem tanto ao mar, nem tanto à terra; nem oito, nem oitenta. Busca um posicionamento central entre esquerda e direita, longe dos extremos, para procurar harmonizar, compatibilizar, desenhar compromissos, selecionar o “melhor”, encontrar o ponto de equilíbrio. E procura colocar-se no terreno mais favorável a ser escolhido para governar, a “arte do compromisso”.
Em sistemas multipartidários, o centrismo desempenha papel relevante, facilitando a formação de coligações. O multipartidarismo é o ambiente que mais favorece o aparecimento e continuidade de partidos centristas com significado.
As críticas mais frequentes aos centristas apontam-lhes “oportunismo” e “falta de convicções”, por considerarem que as suas posições não resultam de convicções próprias, mas de bissetrizes entre posições alheias, e que correm principalmente para a oportunidade de exercer o poder. Ao que os centristas, em resposta, afirmam terem posições próprias, mas estão sempre abertos a melhorá-las com contributos de terceiros, e que são especialistas da moderação, da estabilidade e da concertação, como necessidade política vital das sociedades democráticas.
A agudização do grau de confrontação entre esquerda e direita nas sociedades democráticas pode constituir oportunidade propícia à afirmação de vozes centristas ou de forças políticas com esta inspiração principal. Porém, a experiência recente nos Estados Unidos da América e na Europa mostra que, se há vozes que efetivamente surgem, não há novas forças políticas centristas que se imponham ou sequer que apareçam. Uma evidência mais de que para uma força política surgir e se afirmar, a oportunidade não basta e não é o mais importante.
Na Europa, o partido centrista mais antigo foi o Deutsche Zentrumspartei (Partido Alemão do Centro), fundado em 1870, um partido católico, com cerca de 20% dos votos, que esteve no governo de 1919 a 1932. Após 1945, perdeu peso para a CDU. A partir do final do século XX, surgiram posições políticas que se afirmam do “extremo-centro” ou do “centrismo radical”, valorizando mais intensamente o pragmatismo e a necessidade do compromisso. Nesta linha insere-se o movimento multifacetado que apoia o Presidente francês Emmanuel Macron, eleito em 2017.
A nível internacional, a IDC – Internacional Democrática Centrista reúne, de todo o mundo, os partidos democratas-cristãos e outros partidos moderados ou do centro, no total de 86 membros, tendo ainda 10 partidos observadores. O PSD é o representante de Portugal na IDC. Até 1999, chamava-se IDC – Internacional Democrata-Cristã, nome adotado em 1982 pela UMDC – União Mundial da Democracia-Cristã, fundada em 1961.
Referências bibliográficas:
- ALEXANDRE VATIMBELLA, Le Centre et le Centrisme : de la Révolution à Macron, CREC (Centre de recherche et d’étude du Centrisme) Éditions, Paris (França) 2017
- DIOGO FREITAS DO AMARAL, Centrismo, Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura, vol. 19, col. 732-733, Lisboa 1979
- JOHN LAWRENCE HILL, The Political Centrist, Vanderbilt University Press, Nashville TN (EUA) 2009
- JOSÉ RIBEIRO E CASTRO, Centrismo, POLIS – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, 1, col. 766-772, Viseu 1983
- MANUEL CALVO JIMÉNEZ, Diez razones para ser de centro, Almuzara, Córdoba (Espanha) 2020
- YAIR ZIVAN (ed. – várias colaborações), The Center Must Hold: Why Centrism is the Answer to Extremism and Polarization, Armin Lear Press, Estes Park CO (EUA) 2024
- Classe Política
por Manuel Monteiro, 2024
1. A expressão «classe política» ou «classe dirigente», no significado que lhe foi dado por Gaetano Mosca, primeiro no seu livro Teorica dei Governi e Governo Parlamentare e depois nos Elementi di Scienza Politica, está associada ao grupo de pessoas que governam. De acordo com esta concepção “em todas as cidades há duas classes de pessoas: a dos governantes e a dos governados”, sendo que a primeira, a classe dos governantes ou classe política, “é sempre a menos numerosa, cumpre todas as funções políticas, monopoliza o poder e aproveita as vantagens que lhe estão associadas”. Estamos assim diante a perspectiva de que “em todas as formas de governo o poder verdadeiro reside numa minoria dirigente” (Gaetano Mosca, Elementi di Scienza Politica, 2ª ed., 1923, p. 52 e p. 342), minoria essa representada por uma classe que “inclui todos os detentores do poder político” (Gianfranco Pasquino, La classe politica, 1999, p. 22).
2. Deve esta «classe» ter características que a distingam positivamente? Gaetano Mosca acreditava que sim e daí ter dito que os indivíduos que a compõem possuem “uma certa superioridade material e intelectual ou mesmo moral” (Gaetano Mosca, Elementi di Scienza Politica, 2ª ed., 1923, p. 56). Essa superioridade e até independência, nomeadamente financeira, não deixou de ser assinalada por Weber quando falou dos “notáveis” como aqueles que podem viver da política sem dela dependerem” e que por isso a exercem por vocação. Mas se para Weber existiam os “notáveis”, também existiam aqueles para quem a política é uma profissão (Max Weber, Économie et société, v. 1, 1971, p. 379), devendo-se desse modo distinguir os que vivem para a política dos que vivem da política (Max Weber, Le savant et le politique, 1963, pp. 128-129).
3. Mas se a identificação dos que vivem para a política nos pode conduzir à tal classe dirigente possuidora da superioridade material, intelectual e moral de que falou Mosca, já o reconhecimento dos que vivem da política nos ajuda a compreender a existência de «funcionários políticos». Estes, integrando aquilo que Ostrogorski designou de “máquina política” quando quis caracterizar todo o conjunto de indivíduos cujas funções são indispensáveis ao funcionamento dos partidos (Moisei Ostrogorski, La Démocratie e les Partis Politiques, ed. de 1993, pp. 524-560), seriam essenciais na acção desenvolvida pelos que buscam a conquista e posterior manutenção do poder.
4. Sucede, porém, que as distinções feitas podem ser hoje questionáveis, desde logo se a «máquina política» dos partidos for constituída por “membros permanentes” que tudo controlam e tudo decidem (Max Weber, Le savant et le politique, 1963, pp. 171-172). Nesses casos a «classe dirigente» não só se afasta da ideia de elite sustentada por Gaetano Mosca e por Vilfredo Pareto, como é ela própria o espelho da funcionalização de uma carreira, a “carreira política”, essencialmente preenchida por pessoas politicamente profissionalizadas (José Miguel Júdice, «Classe Política», in Polis, 1º vol., 1983, p. 897). E, tal como a antiga, também esta nova classe política “possui um sentido muito apurado das suas possibilidades e dos seus meios de defesa” (Robert Michels, Les Partis Politiques, 1971, p. 292). Tendo por missão principal a sua individual sobrevivência e sustentabilidade, esta nova classe política ocupa o chamado “círculo interior” dos partidos, cabendo-lhe um papel predominante no recrutamento dos chefes políticos, dos deputados, dos ministros, e mesmo de uma parte relevante dos dirigentes do aparelho de Estado (Maurice Duverger, Les partis politiques, 1976, p. 225).
5. Uma última questão deve ser colocada: poderá a ideia de «classe política», enquanto «classe dirigente» positivamente diferenciada, ser conciliável com o governo democrático? Pensamos que sim. Tudo dependerá afinal da conjugação das seguintes condições: do reconhecimento de que a existência de elites intelectuais não é incompatível com a democracia, do grau de exigência cívica dos cidadãos, do sentido de missão e de dedicação ao bem comum de quantos se propõem dirigir e ainda da perspectiva não profissionalizante da acção política.
Bibliografia principal:
- Gaetano Mosca, Elementi di Scienza Politica, 2ª ed., Torino, Fratelli Bocca Editori, 1923.
- Gianfranco Pasquino, La classe politica, Bologna, il Mulino, 1999.
- Maurice Duverger, Les partis politiques, Paris, Armand Colin, 1976.
- Max Weber, Le savant et le politique [trad. para francês de Julien Freund], Paris, Union Générale d`Éditions, 1963.
- Économie et société, v. 1 [trad. para francês de Julien Freund, et al], Paris, Plon, 1971
- Robert Michels, Les Partis Politiques [trad. para francês por S. Jankelevitch], Paris, Flammarion, 1971.
- Comunicação
por Pedro Gil, 2024
A comunicação é o processo prolongado no tempo que leva a projetar a realidade daquilo que somos ou pensamos numa imagem fiel que os outros partilham. A comunicação é boa ou não boa em função do grau de sintonia entre realidade e imagem percecionada.
A comunicação dá-se no ilimitado mundo das relações interpessoais, e dá-se também no universo das organizações onde é muitas vezes designada comunicação institucional ou das organizações. Apesar da evidente diferença entre a comunicação interpessoal e a comunicação institucional própria das organizações, muitos princípios de comunicação são válidos para ambas. Mais: é cada vez maior a convicção de que aquilo que é qualidade comunicativa nas organizações vem de ser, antes, qualidade comunicativa nas pessoas e suas relações.
Por isso, cada vez se supera mais a estendida e difusa intuição de que a comunicação seja uma coleção imprecisa de ações e recursos, que têm a ver com conseguir “boas notícias”, sair-se bem em entrevistas, apagar polémicas, aprimorar a imagem, “tornar bonitas” as mensagens, e que por isso se pode confiar a um departamento opcional apêndice da organização, para cada vez se passar a olhar com muito mais realismo para a comunicação como o departamento que dá expressão concreta à preocupação da chefia da organização por aspetos nucleares, e nada cosméticos, de que depende a sua saúde - e com o tempo - a sua sobrevivência.
Assim, a comunicação gera uma cultura que a pouco e pouco incorpora elementos como os seguintes. As palavras têm o sentido, não que eu lhes dou, mas que lhes dá quem as ouve. Toda a comunicação recebida merece resposta. Se quero saber alguma coisa, pergunto; se quero que alguma coisa se saiba, digo. Se quero que alguma coisa se saiba, repetirei mil vezes amavelmente como na primeira vez. É normal receber sobretudo queixas; o elogio é muito mais lento que a crítica. Se há queixas pouco educadas, é normal; a queixa cala na fase da tolerância e explode ao chegar à fase da irritação. Quase sempre as queixas têm alguma razão, e obrigam sempre - sem quase - a pensar. É bom esperar sempre nas pessoas, e não cortar relações. É inútil e falível tentar adivinhar intenções; só é firme a terra dos factos. Informar os outros é homenageá-los; informar subalternos é elevá-los. Quanto mais informação dou; mais lealdade recebo. Os “nossos” têm de ser informados sempre por nós, e não por outros. Em especial, quando tenho uma má notícia, seja eu a dar, e não outros. Devo perguntar-me muitas vezes: sou consciente dos problemas e projetos “dos de baixo”?; quero um teste infalível para saber?: é perguntar-lhes. Para conhecer bem as pessoas devemos dedicar 80% a ouvir e apenas 20% a falar. Quando decidimos ter simpatia por alguém, então podemos compreendê-la. O respeito ao falar de ausentes deve ser ainda maior que o respeito ao falar dos presentes. Não posso exigir que os outros confiem em mim: a confiança conquista-se com as minhas ações. Não faça eu nada que não possa explicar, que não pareça razoável, que choque ou que desalente.
A comunicação das organizações, o tal processo que projeta a identidade numa imagem fiel partilhada, pode pois também ser definida como “ter relações pessoais de qualidade”.
Bibliografia
- Yago De la Cierva, Leading companies through storms and crisis: Principles and best practices in prevention, crisis management and communication, Ediciones Universidad De Navarra, S.A.
- Brad Phillips, The Media Training Bible : 101 Things You Absolutely, Positively Need To Know Before Your Next Interview, Barnes & Nobles.
- António Granado e José Vítor Malheiros, Como Falar com Jornalistas sem Ficar à Beira de um Ataque de Nervos - Guia para investigadores e profissionais de comunicação, Gradiva
- Juan Pablo Cannata, Los valores en el discurso público : comunicar la propia fe en la cultura del siglo XXI, LOGOS
- Austen Ivereigh, Como defender a fé sem levantar a voz - Respostas civilizadas a perguntas desafiantes, Paulinas
- Comunicação Social
por Pedro Gil, 2024
1. A vida das comunidades, sobretudo as democráticas, necessita da rede de publicações com carácter noticioso que permite saber o que acontece, escrutinar poderes públicos, conhecer diversos e novos modos de pensar, e exercer uma cidadania mais consciente. Desde a revolução de abril de 1974, muito mudou. Do cenário inicial habitado por poucos atores, num leque ideológico estreito, com uma só conversa pública relevante seguida por uma comunidade sedenta, chegámos hoje a um cenário sobrelotado de atores em conversas muitas e desconexas num leque ideológico alargado. Os atores mais tradicionais sobrevivem a custo. Os públicos, cuja atenção procuram, sentem-se informados, saturados de conteúdos, capturados pelas redes sociais e sem tempo nem cabeça. Mudaram os dois mundos: o de quem faz comunicação social e o que acede à comunicação social. Do lado dos meios de comunicação social, o sismo digital não parou de abanar a informação impressa, coração da opinião pública, ainda à procura de gerar receitas pelos canais digitais. Os anunciantes atraem-se pelos públicos que acorrem a influencers, instagramers e podcasters e agradecem aos algoritmos poder chegar a quem procuram. Quanto menos recursos, menos jornalistas; e, quanto menos jornalistas, menos jornalismo. A necessidade faz inovar: há mais jornalismo de investigação, mais informação por entrevistas ou narrativas, mais áudio, conteúdos breves, melhores títulos. As notícias falsas fazem aparecer ferramentas de validação (fact check). Agora coexistem notícias comuns, notícias verificadas por fact check, e notícias de conteúdo patrocinado, com impacto na credibilidade. Neste contexto difícil a “inteligência artificial” promete eficácia a baixo custo que levará à sua utilização intensiva, com efeitos que é prematuro antever. Do lado do consumidor, o cidadão já não depende de uma informação servida por alguns atores. Muitos já podem saber mais e de fontes mais credíveis. Muitos outros, porém, ficarão expostos à desorientação e à manipulação. Até se voltar a sentir a falta do jornalismo como mediação profissional que filtra, informa e dá contexto, teremos o cidadão que se informa “self service”, envolve em debates polarizados sem saber dos “bots” programados para incentivar artificialmente discussões, e é cativado por novidades trazidas por algoritmos feitos para que se não largue o telemóvel.
2. Esta evolução em curso, de futuro imprevisível, traz riscos. G.K. Chesterton, jornalista e polemista, em 1930, numa conferência sobre a “A cultura e o perigo futuro”, predisse que o perigo futuro não estaria no bolchevismo (pois “a melhor maneira de destruir uma Utopia é instituí-la.”) nem numa nova guerra (embora, disse, a próxima seria “quando a Alemanha tentar brincar com a fronteira da Polónia”). Estaria na “sobreprodução intelectual, educacional, psicológica e artística, que, tal como o excesso de produção económica, implica uma ameaça para o bem-estar da civilização contemporânea. A sociedade está inundada por uma enxurrada de exteriorizações vulgares e de mau gosto, que paralisa intelectualmente o homem e que não lhe deixa tempo livre para o ócio, para o pensamento, ou para a criação a partir de dentro”. Ao mesmo tempo, esta evolução traz já consigo aquisições importantes. Há condições para os públicos exercerem o espírito crítico de forma fundada, com acesso a modos rápidos de certificar informações. Há condições para os media reproporem o valor de uma informação que seja sobretudo informação e o menos possível serviço a ideias e interesses. O sistema melhora com um cidadão mais inconformista na procura da verdade, mais responsável para apenas partilhar informações que seriamente julgue verdadeiras, e que cultive o hábito de pensar por si próprio, com silêncio e calma (dois bens escassos) sobre ideias, factos e pessoas.
Bibliografia:
- Bruno Patino, A Civilização do Peixe-Vermelho - Como peixes-vermelhos presos aos ecrãs dos nossos smartphones, Lisboa, Gradiva, 2019.
- Paulo Couraceiro, António Vasconcelos, Miguel Paisana, Miguel Casquinho, Gustavo Cardoso, Vania Baldi, 50 anos de (R)evolução na comunicação, OBERCOM - investigação e saber em comunicação [disponível in https://obercom.pt/wp-content/uploads/2024/04/25Abril_50anos_PUB_23Abril.pdf (consultado em 24-06-2024)].
- Pordata, «Estatísticas de "Periódicos"» [disponível in https://www.pordata.pt/subtema/portugal/periodicos-16 (consultado em 24-06-2024)].
- Pordata, «Os jovens em Portugal - Retrato dos Jovens», [disponível in https://www.pordata.pt/retratos/2017/retrato+dos+jovens-47 (consultado em 24-06-2024)].
- Comunidade Internacional
por José Lynce Pavia, 2024
1. Existem diferentes concepções sobre a noção de comunidade internacional. A dicotomia entre os conceitos de sociedade (Gesellschaft) e de comunidade (Gemeinschaft) suscitada pelo sociólogo Ferdinand Tönnies (1955, [1887]), poderá ser útil na nossa tentativa de dilucidação destes conceitos. Segundo este autor, uma sociedade é uma associação voluntária, com limites temporais, onde todos os elementos se podem encontrar, sem que haja um pressuposto de continuidade e duração. Já uma comunidade implica uma pertença “sem escolha”, com uma identificação em termos de vida comum, interesses comuns, cooperação e interacção entre os seus membros, sem limite temporal (Moreira, 2002, pp.44-45). Transpondo esta dicotomia para os conceitos de sociedade internacional e comunidade internacional, poder-se-á dizer numa fórmula mais simples – como o fez Marcello Caetano - que numa sociedade internacional os seus membros permanecem separados apesar daquilo que momentaneamente os possa unir; já numa comunidade internacional os seus membros permanecem unidos apesar daquilo que os possa separar (Caetano, Apud: https://direitoportugal.fandom.com/wiki/DIPI/Introdução). É em função desta distinção, aparentemente menor, mas que encerra uma grande diferença, que nos inclinamos para o conceito de sociedade internacional, dado que a actual configuração dos diversos actores internacionais, se aproxima mais de uma sociedade do que de uma verdadeira comunidade. José Cutileiro (2003, p. 118), por exemplo, evoca o conceito de “comunidade internacional” fazendo as seguintes considerações: “(…) O nome evoca pertença às Nações Unidas, adesão aos valores da Declaração Universal dos Direitos do Homem e das Convenções de Genebra sobre a guerra, mas é enganador. Na prática não se trata de uma comunidade, mas de um grupo de países e de organizações, intergovernamentais ou não, mais vezes em competição do que em colaboração uns com os outros, e nesse universo só um número pequeno de países poderosos toma as decisões importantes. (…)”
2. Esta é uma perspectiva claramente realista que dado o actual alinhamento de forças no sistema internacional nos parece ainda mais adequada. A chamada “Ordem Liberal Internacional” na qual assentam muitos dos pressupostos que levam uma tendência mais “idealista” a designar o sistema internacional como uma comunidade está claramente em declínio e a ser cada vez mais contestada por diversos países e organizações, uma parte significativa deles pertencente ao que agora se designa por “Sul Global”, por antonímia relativamente ao “Ocidente Global”. As normas, princípios e valores que enformam a “Ordem Liberal Internacional” são contestados abertamente com o argumento de que são um produto dos interesses do “Ocidente Global”, liderado pela potência hegemónica que são os Estados Unidos da América. São apontadas hipocrisias, e um claro enviesamento, por exemplo, ao Tribunal Penal Internacional, à Organização Mundial de Comércio, ao Fundo Monetário Internacional e ao Grupo do Banco Mundial, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, entre outras organizações, que estariam primordialmente ao serviço de interesses do “Ocidente Global” e cujos normativos se encontrariam desfasados da actual realidade internacional. Nesse sentido, as palavras de José Cutileiro citadas acima e escritas há mais de duas décadas, estão ainda mais actuais no presente contexto. Designar o actual sistema internacional como uma comunidade parece-nos um claro “Wishful thinking” que não encontra adesão à realidade e, nesse sentido, parece-nos mais adequado o conceito de sociedade internacional.
Bibliografia:
- Caetano, Marcello. Apud: https://direitoportugal.fandom.com/wiki/DIPI/Introdução (acesso 22/10/2024).
- Cutileiro, José (2003) Vida e Morte dos Outros: A Comunidade Internacional e o Fim da Jugoslávia, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa.
- Moreira, Adriano (2002) Teoria das Relações Internacionais, Almedina, Coimbra.
- Tönnies, Ferdinand (1955) Community and Association, Routledge & Paul, London. [1887].
- Conservadorismo
por Manuel Monteiro, 2024
1. A palavra conservadorismo identifica as correntes de pensamento que se manifestaram e se manifestam, em defesa da preservação de valores considerados essenciais à manutenção de uma determinada comunidade política. Partindo de uma concepção do Homem enquanto ser naturalmente social, o conservadorismo privilegia politicamente a «nação», a «ordem», a «família», a «liberdade», a «propriedade privada» e o «bem comum». A defesa destes valores não significa, porém, que o conservadorismo deles possua uma visão unitária e uniforme, desligada da realidade histórica e das circunstâncias políticas e sociais da comunidade política concreta. E é precisamente por isso, ou também por isso, que não podemos falar de um conservadorismo, mas de e dos conservadorismos que respeitam as especificidades próprias de cada Povo na tradução e representação daqueles valores.
2. Se para um conservador, como ensinou Cícero, deve ser respeitado o legado que recebemos dos nossos antepassados, isso não significa que os conservadores tenham uma noção estática da sociedade e que desse modo reajam negativamente a toda e qualquer mudança. Mas a não rejeição da mudança, não pressupõe a confusão com ideologias que têm por objectivo a orientação transformadora dos comportamentos individuais e colectivos da sociedade nacional e internacional. Um conservador recebe e aceita as mudanças que melhor se adequam aos valores que considera perenes, procurando em cada momento promover a sua integração e conciliação com as tradições e costumes que de forma livre e natural as sucessivas gerações entenderam manter. Compreende-se assim que os conservadores sejam, por princípio, contrários à revolução – mesmo que promovida por via legislativa – salvo se para restaurar a ordem política que garanta a existência da família, da liberdade, da propriedade privada e do bem comum.
3. A defesa das instituições é também uma das características das correntes de pensamento conservadoras. Elas reflectem e traduzem a continuidade das gerações e ainda que a sua afirmação dependa de quem em cada época as representa, não deixam de sobreviver à vida sempre transitória dos representantes. Sendo as instituições o resultado e a expressão viva de uma Ideia – e não de uma ideologia –, a sua duração é um testemunho vivo da aceitação que recebem na e da comunidade. Fácil é, pois, perceber como para um conservador é importante a ideia de Nação, de Estado, de Igreja, de Família, de Universidade, de Património cultural e natural, de Propriedade privada, e que a sua reacção se manifeste sempre que há movimentos, partidos, tendências, que visam o seu enfraquecimento ou até destruição. Pode assim afirmar-se que a protecção das instituições não é para um conservador mero exercício de apego volátil e efémero a uma memória, mas a garantia de que o passado não só tem continuidade no presente, como terá projecção no futuro.
4. Sendo a liberdade, a liberdade individual, um valor a que os conservadores dão primazia, isso não pressupõe menor consideração pelo bem comum. Há em muitos conservadores, principalmente os católicos, a perspectiva de que a liberdade de cada pessoa não se confunde com a liberdade individualista e puramente utilitária, desprovida de um sentimento de pertença a uma comunidade em relação à qual têm de existir deveres de partilha e de solidariedade. Para estas correntes conservadoras, a felicidade e a liberdade individuais não possuem um valor absolutamente absoluto, precisamente por estarem limitadas por princípios éticos cuja substância não pode ser alterada, mesmo que essa alteração seja promovida por uma maioria escolhida democraticamente pelos eleitores. E pela simples razão de que essa maioria nunca deixará de ser temporária. E sendo temporária não deverá ser superior a valores que, pela sua essência, são permanentes.
Bibliografia:
- BRINTON, Crane, Las ideas y los hombres [trad. para espanhol de Agustin Caballero], Madrid, Aguilar, 1957.
- CÍCERO, Tratado da República [trad. do latim de Francisco de Oliveira], Lisboa, Círculo de Leitores, 2008.
- COUTINHO, João Pereira, Conservadorismo, Lisboa, D. Quixote, 2014.
- MORGADO, Miguel, Introdução ao Conservadorismo, Lisboa, D. Quixote, 2024.
- SCRUTON, Roger, Como Ser Um Conservador [trad. para port. de Maria João Madeira], Lisboa, Guerra e Paz, 2018.
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- Democracia
por Manuel Monteiro, 2024
Democracia – Manuel Monteiro – 2024
1. A democracia, nas palavras que Tucídides atribuiu a Péricles, é o governo em que “tudo depende não de poucos mas da maioria” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 1982, p. 109). Ora esse governo da maioria, que Platão classificou como o “governo das massas” (Platão, O Político, 2014, p. 134) e Aristóteles identificou como uma “degenerescência do regime constitucional”, já que apenas visa “o interesse dos pobres” (Aristóteles, Política, 1998, p. 283), viria muitos séculos depois, em 1863, a ficar popularmente conhecido como “o governo do povo, pelo povo, para o povo” (Abraham Lincoln, El Discurso de Gettysburg y otros escritos sobre la Unión, 2005, p. 254). Era a reafirmação do novo soberano e da democracia enquanto expressão dessa nova soberania, de uma soberania que recordava a ideia muito tempo antes defendida por Sólon segundo a qual “quando o povo é senhor do voto, torna-se senhor do governo” (Aristóteles, Constituição dos Atenienses, 2009, p. 34).
2. Mas a tese de que a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo é discutível e não anula a ideia de que a democracia é essencialmente o governo de uma “maioria numérica”. Na realidade, e como lembrou Tocqueville, a democracia é o governo da maioria porque “em todos os países onde o povo é soberano, é a maioria que governa em nome do povo” (Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 2022, p. 215). É certo que esse “governo da maioria” para ser considerado democrático está sujeito ao princípio do pluralismo constitucional (Raymond Aron, Démocratie et totalitarisme, 1998, p. 109) e estando sujeito a esse princípio está sujeito a um “conjunto de regras de procedimento para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas (Norberto Bobbio, «Democracia», in Dicionário de Política, v. 1, 2004, p. 326), mas isso em nada altera o facto do governo democrático ser o governo da maioria do povo que vota. Ele pode ser o governo para o povo, mas não é nem um governo que resulta da escolha de todo o povo, nem o governo pelo povo.
3. Sendo então a democracia o governo da maioria a compreensão sobre o governo democrático implica igualmente perceber o que significa essa maioria, desde logo porque a maioria dos que votam (nos casos em que o voto não é obrigatório) pode apenas ser a maioria da minoria, o que se traduzirá na existência de um governo que representa não a parte maioritária do povo, mas a parte maioritária de uma minoria desse povo (Manuel Monteiro, Do Recenseamento Eleitoral em Portugal, 2012, p. 412). Por outro lado a maioria pode resultar da soma dos que perderam as eleições, desvirtuando a substância do princípio inerente à própria ideia de opção popular democrática. Mesmo que possua suporte formal, esta situação configura a superioridade da soberania do parlamento sobre a soberania do voto e quando o parlamento é mais uma assembleia representativa de partidos do que uma assembleia representativa de eleitores, a maioria espelha a primazia das vontades partidárias face à vontade eleitoral.
4. Nenhuma das considerações anteriores ignora os princípios que devem identificar um regime democrático, princípios que em primeira instância garantem “uma ordem de valores fundada no carácter transcendente da dignidade da pessoa humana” (Paulo Otero, A Democracia Totalitária, 2001, p. 83) e que asseguram a existência da liberdade de opinião, do pluralismo competitivo para a conquista do poder político, da igualdade perante a lei e da separação de poderes. Todavia, o facto de não serem ignorados esses princípios não impede que a reflexão sobre a democracia nos leve ainda a questionar se o governo pela maioria escolhido através de eleição é verdadeiramente democrático. Aristóteles e depois dele Montesquieu consideravam que não. Este último afirmou mesmo que “o sufrágio pelo sorteio é da natureza da democracia; o sufrágio pela escolha é da natureza da aristocracia” (Montesquieu, O Espírito das Leis, 1996, p. 22). A democracia demonstra assim também ser selectiva, pelo que o modo que conduz a essa selecção não deva nunca ser desvalorizado.
Bibliografia principal:
- Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, [trad. para port. de Carlos Monteiro de Oliveira], João do Estoril, Principia, 2002.
- Aristóteles, Política, 1ª ed. [trad. para port. a partir do grego, de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes], Lisboa, Vega, 1998.
- Paulo Otero, A Democracia Totalitária, Cascais, Principia, 2001.
- Raymond Aron, Démocratie et Totalitarisme, Paris, Gallimard, 1998.
- Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, [trad. do grego de Mário da Gama Kury], Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982.
- Democracia Cristã
por José Ribeiro e Castro, 2024
1. Corrente política que se desenvolveu no século XX, a democracia cristã inspira-se na Doutrina Social da Igreja. Afirmou-se a partir do pensamento social dos Papas, desde finais do século XIX. Numa Europa em profunda crise social e confrontada com a emergência do socialismo marxista, a Igreja tomou posição, em várias Encíclicas, a favor de uma terceira via, que rejeita o liberalismo capitalista, sem preocupações sociais, e o marxismo. O primeiro Papa a fazer estes pronunciamentos foi Leão XIII, pela encíclica Rerum Novarum (A sede de inovações), em 15 de maio de 1891, que denunciou as condições desumanas de trabalho da classe operária e definiu os princípios cristãos perante as questões sociais e económicas do tempo. Escreveu ainda a Graves de communi re (As graves discussões sobre questões económicas), em 1901, especificamente sobre a democracia cristã. Pio XI actualizaria com a Quadragesimo Anno (No 40.º aniversário), em 1931. São João XXIII escrevia a Mater et Magistra (Mãe e mestra), em 1961, e Pacem in Terris (A Paz na Terra), em 1963. São Paulo VI, publicou a Populorum Progressio (O desenvolvimento dos povos), em 1967. São João Paulo II completou com a Laborem Exercens (É mediante o trabalho), em 1981, a Sollicitudo rei socialis (A solicitude social), em 1987, e a Centesimus Annus (O Centenário), em 1991. Bento XVI deixou-nos a Caritas in Veritate (A caridade na verdade), em 2009. E o Papa Francisco actualizou com a Laudato Si' (Louvado sejas), em 2015, que ampliou o pensamento da Igreja às questões ambientais, e a Fratelli Tutti (Todos irmãos), em 2020. Os filósofos franceses Jacques Maritain (1882-1973) e Emmanuel Mounier (1905-1950) inspiraram também os democrata-cristãos.
2. A democracia cristã segue princípios filosóficos cristãos: concepção da história com raiz espiritual e não materialista, primado da moral, dignidade da pessoa, a paz, bem comum e justiça social. Prossegue o personalismo comunitário, com a pessoa no centro, princípio e fim de toda a acção política. Defende a cultura da vida, a liberdade religiosa, a descentralização administrativa e a economia social de mercado. Tem como valores básicos a liberdade, a participação democrática, a livre empresa, a função social da propriedade, a solidariedade, a família, a liberdade de educação, a subsidiariedade e o humanismo integral. É não-confessional.
3. Os primeiros partidos e movimentos democrata-cristãos surgem na viragem entre os séculos XIX e XX, como o Partido Popular de Luigi Sturzo, em Itália (fundado em 1919), e o Partido do Centro, na Alemanha, partido católico fundado em 1870. Em Portugal, o Centro Académico da Democracia Cristã, CADC, associação cívica e social, foi fundado em 1901. Mas é sobretudo após a 2.ª Grande Guerra que a Democracia Cristã conhece o seu apogeu na Europa, juntando ao pensamento político, económico e social, um forte compromisso com a Paz e contribuindo marcadamente com a reconstrução da Europa, devastada pela guerra, e para a integração europeia a partir das Comunidades lançadas na década de 1950 – partidos e dirigentes democrata-cristãos (normalmente destaca-se Adenauer, de Gasperi e Schuman) lideravam nos países fundadores da, então, CEE: Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Países Baixos. O CDS aproximou-se da família democrata-cristã após a fundação em 1974, sendo recebido na UEDC logo em 1975. Na mesma época, a democracia cristã conheceu também expansão significativa na América Latina, com maior relevo no Chile, Venezuela e República Dominicana. Na Europa, é de centro-direita, sem expressão onde há tradição de partidos conservadores, que ocupam o seu espaço; na América Latina, inclina-se mais à esquerda.
4. No plano internacional, organizou-se nas Novas Equipas Internacionais (NEI, fundadas em 1947), a que se seguiram a União Mundial Democrata-Cristã (UMDC, 1961) e a União Europeia Democrata-Cristã (UEDC, 1965), no período de maior apogeu. Hoje, na Europa, organiza-se no Partido Popular Europeu (PPE, 1976) e, no mundo, na Internacional Democrática do Centro (IDC, 1982) – “DC” era “Democrata-Cristã”, em 1982, e “Democrática do Centro”, desde 1999, a fim de traduzir a crescente adesão de partidos não-cristãos. Na América Latina, existe a Organização Democrata-Cristã da América (ODCA, 1947).
5. Depois do apogeu nos anos 1960 a 1980, a democracia cristã entrou em crise e conhece atualmente algum declínio. Contribuíram para isso a descristianização de muitas sociedades e a emergência de novas correntes à direita, na Europa; e, na América Latina, ter-se confundido com correntes mais à esquerda, da área da “teologia da libertação”. Ainda assim, está presente em mais de 80 países, incluindo alguns no continente africano. E, no Parlamento Europeu, o PPE mantém-se como maior grupo político, com 177 eurodeputados (25,4%) – Legislatura 2019/24.
Bibliografia:
- DIOGO FREITAS DO AMARAL, As ideias políticas e sociais de Jesus Cristo, Bertrand Editora, 2019
- ENCÍCLICAS: todas as encíclicas papais referidas no texto podem ser encontradas em https://www.vatican.va/offices/papal_docs_list_po.html, quase todas com tradução em língua portuguesa.
- Grupo PPE, O futuro da Democracia Cristã - Uma bússola para as gerações futuras, EPP group dezembro de 2020 – in https://www.eppgroup.eu/pt/noticias/o-futuro-da-democracia-crista (descarga livre)
- MARCEL PRÉLOT e GEORGES LESCUYER, Histoire des Idées Politiques, pp. 881 e segs., 9.ª edição, Dalloz 1986
- PEPIJN CORDUWENER, The Rise and Fall of the People’s Parties, em especial pp. 94-111, Oxford University Press, 2023 – in https://academic.oup.com/book/46848 (descarga livre)
- RAFAEL CALDERA, A Revolução da Democracia Cristã, ed. APR, Lisboa 1974
- Dignidade da Pessoa
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. O conceito de dignidade humana caracteriza-se pela sua ambivalência, ao ponto de ser invocado para sustentar posições diametralmente opostas. Tal ambivalência pode ser explicada não só pela sua complexidade, como pela ausência de linearidade histórica na construção do conceito, ao ponto de muitos autores entenderem que o sentido moral que hoje se lhe reconhece generalizadamente (mas também acriticamente) só foi estabilizado com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (Remy Debes, “Dignity”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2023). Ainda que se duvide deste entendimento, por não ser estável o conteúdo da dignidade humana nos nossos dias, é seguro afirmar que em tempos mais recuados a dignidade surgia associada a uma ideia de mérito, de honra, de estatuto, de gravitas, de nível social (Josiah Ober, “Meritocartic and civic dignity in Greco-Roman Antiquity”, The Cambridge Handbook of Human Dignity (ed. Marcus Düwell, Jens Braarvig, Roger Brownsword, Dietmar Mieth), Cambridge University Press, 2014, 53-63). Na Grécia e Roma Antigas, ser digno significava manter a cabeça erguida na companhia dos outros, o que implicaria que as reivindicações de cada um fossem reconhecidas pelos restantes. Estar-se-ia, portanto, diante de uma dignidade meritocrática e cívica, diversa, nas suas bases e nos seus fundamentos, da dignidade baseada nos direitos humanos (Josiah Ober, “Meritocartic and civic dignity in Greco-Roman Antiquity”, 53), apesar de autores como Cícero parecerem aproximar-se de um sentido generalizante de dignidade, associando-a às capacidades distintivas do ser humano relativamente às outras espécies, entre as quais se destacava a capacidade reflexiva, a partir das quais seria possível estabelecer um padrão ético (Remy Debes, “Dignity”). A possibilidade de se extrair a dignidade humana da racionalidade seria depois desenvolvida em autores como Pico della Mirandola, na sua De hominis dignitate oratio. Se Mirandola extrai a dignidade da antiga doutrina cristã da Imago Dei, o homem feito à imagem e semelhança de Deus (Brian Copenhaver, “Dignity, Vile Bodies, and Nakedness: Giovanni Pivo and Giannozzo Manetti”, Dignity: A History, Oxford University Press, New York, 2017, 134 s.), o seu pensamento surge fortemente influenciado pela cabala e pelas ideias de superação do corpo, próprias dos gnósticos e dos cátaros, por forma a aproximar-se dos anjos, de tal modo que a dignidade surge como uma aspiração e com uma dimensão desencarnada e racional. Haveria, assim, de preparar o caminho para a lenta desencarnação da dignidade de que nos fala Puppinck, a culminar nas posições defendidas por Huxley, numa linha evolutiva que retira ao homem parte da sua dignidade, por o amputar de dimensões essenciais. Não se pense, contudo, que a chamada à colação da ideia de imago Dei encontra em Mirandola a sua génese. Muito pelo contrário, esta ideia já está presente em muitos textos medievais (Dieter Mieth, “Human dignity in late-medieval spiritual and political conflicts”, The Cambridge Handbook of Human Dignity, Cambridge University Press, 2014, 74 s.). Neste período, ao contrário da filosofia mais antiga que olhava para o ser humano como um ser racional, social e político, passa a compreender-se o homem como um ser criado à imagem e semelhança de Deus (Dieter Mieth, “Human dignity in late-medieval spiritual and political conflicts”, 79 s). A dignidade já não decorreria, aí, de uma qualquer característica do ser humano, mas da qualidade de ser pessoa. Trata-se, agora, de um conceito axiologicamente densificado que foi aprofundado à luz do debate sobre a Trindade e a natureza de Deus, superando-se, assim, avant la lettre, o contributo de Kant para a densificação da dignidade humana, que, com recurso às suas categorias a priori e ao teste da generalização e da universalização, não nos ofereceu um conteúdo da dignidade senão formal.
2. Fruto de uma evolução não linear, o conceito de dignidade humana pode hoje ser compreendido à luz de diversas perspetivas: a) uma perspetiva formalista-racionalista, que, recusando qualquer conteúdo material à dignidade, porquanto se preocupa menos com a delimitação das características da dignitas do que com a definição das condições a priori do seu exercício, a serem reconduzidas à razão pura prática e à possibilidade de definição de fins, abre as portas a um problema complexo, que se verifica sempre que o ser humano deixa de se reger racionalmente ou quando, distopicamente, como se prognostica, surgirem outros entes que se mostrem capazes de atuar autonomamente e demonstrem uma capacidade até superior ao do homem natural, não permitindo cumprir a função normativa que lhe é destinada; b) perspetivas céticas, que, considerando que a dignidade se converteu numa categoria ambígua, passível de uma mobilização abusiva e de servir de instrumento para o confronto de posições ideológicas divergentes (Michael Rose, “Dignity: The Case Against”, Understanding Human Dignity, Oxford University Press, Oxford, 2013, 143–154), que são, também, alimentadas por visões procedimentais e liberais, que, recusando todo e qualquer referente de sentido, colocam o acento tónico ou na capacidade de, no seio de sociedades democráticas, se estabelecer um consenso argumentativo ou num ficcional consenso obtido sem pressuposição axiológica do bem e do mal, que nos encaminha para o relativismo irrealizável; c) perspetivas funcionalistas, de índole muito variada, centradas nas condições de vivência da dignidade e nas hipóteses de violação dessa mesma dignidade, as quais se tornam percetíveis mesmo sem uma definição exata do que ela é (Adam Etinson, “What’s so special about human dignity?”, Philosophy & Public Affairs, 48/4, 2020, 353–381; Oscar Schachter, “Human Dignity as a Normative Concept”, American Journal of International Law, 77/4, 1983, 849), nas quais se integra a perspetiva das capacidades de Sen; d) perspetiva material, que, ultrapassando uma visão ontológica pura alicerçada na natureza do homem, que nos deixa, ainda, à mercê de possíveis desenvolvimentos degradantes, faça apelo a uma dimensão axiológica.
3. Sendo chamada a cumprir o papel de fundamentação do direito, a dignidade não pode ser senão a dignidade da pessoa, que pressupõe uma dimensão onto-axiológica, implicando, por um lado, a compreensão do homem como intelecto, vontade, espírito e alma, e por outro lado uma estrutura relacional que, envolvendo a mobilização de uma específica axiologia comunicada pelo quadro filosófico-cultural e teológico de que somos herdeiros, estabelece como fundamental uma ligação em termos de cuidado-com-o-outro, em que se virá a traduzir uma certa compreensão da liberdade responsável do sujeito. A identificação da dignidade da pessoa (e não simplesmente do ser humano) como a base da fundamentação da juridicidade não deixa incólume o seu sentido e o sentido das soluções concretas com que o jurista se vai deparando. De outro modo não poderia ser, na medida em que em cada realização concreta do direito haverá de estar sempre presente o sentido e a intencionalidade dos princípios normativos que projetam no sistema a ideia do direito enquanto direito. Enquanto princípio, participa ativamente na interpretação e integração dos concretos critérios predispostos pelo legislador, derramando a sua eficácia sobre as específicas soluções de quid iuris; funciona como instância de controlo da justeza das soluções contidas nos diversos critérios normativos já constituídos, de tal modo que, se uma norma concreta se afirmar em aberto conflito com tal princípio, enquanto fundamento de validade de uma ordem jurídica, estaremos diante de uma lei injusta, devendo ser desaplicada; e, nas hipóteses em que o conflito não é radical, nem irreconciliável, a norma deve ser interpretada conforme aos princípios, optando-se pelo sentido que se mostre em conformidade com a validade pressuposta.
Bibliografia:
- Brian Copenhaver, “Dignity, Vile Bodies, and Nakedness: Giovanni Pivo and Giannozzo Manetti”, Dignity: A History, Oxford University Press, New York, 2017, 134 s.
- Remy Debes, “Dignity”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2023
- Adam Etinson, “What’s so special about human dignity?”, Philosophy & Public Affairs, 48/4, 2020, 353–381
- Dieter Mieth, “Human dignity in late-medieval spiritual and political conflicts”, The Cambridge Handbook of Human Dignity, Cambridge University Press, 2014, 74 s.
- Josiah Ober, “Meritocartic and civic dignity in Greco-Roman Antiquity”, The Cambridge Handbook of Human Dignity (ed. Marcus Düwell, Jens Braarvig, Roger Brownsword, Dietmar Mieth), Cambridge University Press, 2014, 53-63
- Michael Rose, “Dignity: The Case Against”, Understanding Human Dignity, Oxford University Press, Oxford, 2013, 143–154
- Oscar Schachter, “Human Dignity as a Normative Concept”, American Journal of International Law, 77/4, 1983, 849
- Direita
por Paulo Otero, 2024
1. A direita é a expressão de uma ideologia política que, opondo-se à esquerda, tem a sua origem histórica mais recente no posicionamento dos membros dos Estados Gerais, resultantes da Revolução Francesa, situando-se nesse lugar, em relação ao seu presidente, as classes privilegiadas, numa simbologia que tem as suas raízes na tradição cristã, pois, à direita de Deus, encontram-se os bons.
2. A direita do século XIX, ao invés do que sucedeu com a extrema-direita, converteu-se aos postulados moderados da Revolução Francesa, defendendo a liberdade, a segurança, a propriedade e a igualdade de todos perante a lei: a direita tornou-se constitucional e liberal, integrando-se dentro do sistema. É a direita que, expressa no conservadorismo britânico de Burke, está presente na restauração dos Bourbons, em França (1814), e nos Cartistas, em Portugal (1826), procurando fazer a síntese entre a revolução e a contrarrevolução, por via do contributo de Benjamin Constant. A direita oitocentista lega ao século XX uma ordem de quatro valores nucleares: Deus, Pátria, Autoridade/Rei e Família.
3. A direita, sem prejuízo da multiplicidade de manifestações que alberga, desde o século XIX e até ao presente, assenta nas seguintes características: (i) mostra-se na sua essência antirrevolucionária, preferindo a ordem natural das coisas a quaisquer intervenções políticas de rotura arbitrária com a tradição; (ii) nunca olha para o futuro sem ter presente o passado, submetendo as inovações das suas reformas ao crivo da tutela da confiança e de valores de génese histórica; (iii) suporta as desigualdades decorrentes da natureza, sem fazer da igualdade um valor prevalecente face à liberdade, apesar de não tolerar discriminações arbitrárias; (iv) configura a propriedade privada como um direito pessoal e natural, apesar de dotado de uma função social, dentro do contexto de uma economia de mercado alicerçada na iniciativa privada e na subsidiariedade do papel do Estado; (v) o trabalho e os direitos dos trabalhadores entendem-se à luz da dignidade da pessoa humanam, num modelo de cooperação ou concertação entre trabalho e capital, e nunca dentro de uma visão de luta de classes; (vi) aceita a democracia baseada no pluralismo político e na tolerância, num contexto de uma sociedade aberta, valorizadora da autonomia da pessoa e da sociedade civil; (vii) prefere um modelo governativo assente num executivo forte, capaz de manter a ordem e garantir a segurança de pessoas e bens.
4. Reconhecendo-se hoje a autonomia política da extrema-direita face à direita, o século XXI veio mostrar a existência de dois modelos distintos de direita: (i) existe, em primeiro lugar, uma “direita conservadora” que, partindo de uma base assente em valores éticos e religiosos judaico-cristãos, defende a inviolabilidade da vida humana, a família tradicional, numa total oposição aos postulados da designada cultura woke, apesar de revelar preocupações de justiça social justificativas de intervenção do Estado, visando a garantia mínimos de uma existência condigna a todos os cidadãos necessitados, sendo possível recortar nesta direita conservadora e defensora do Estado social, tendo por base a questão europeia, duas variantes – (1) há uma direita nacionalista que olha com desconfiança a progressiva federalização da União Europeia, e, em sentido diferente, (2) uma direita europeísta que acolhe e deseja um aprofundamento do modelo federal da União Europeia; (ii) existe, em segundo lugar, uma “direita liberal”, contaminada pelo neoliberalismo, tendencialmente laica, desligada dos valores conservadores, aceitando a mais ampla operatividade da liberdade no plano económico, defendendo o retorno a um Estado mínimo, e no plano social, sufragando a liberalização dos costumes, a dissolução da família tradicional, a relativização da inviolabilidade da vida humana e a implementação da ideologia de género, tudo à luz de uma hipervalorização da autonomia da vontade do indivíduo.
5. Na postura colaboracionista da “direita liberal” com a esquerda, formando uma oligarquia de interesses e acolhendo até propostas libertárias da esquerda, radica a moderna crise da direita e a ascensão política da extrema-direita: a “direita liberal”, sufocando o espaço da “direita conservadora” e deixando-se capturar ou colonizar pelo espírito revolucionário da esquerda, corre o risco de ser a coveira da direita política e abrir a porta ao radicalismo.
Bibliografia:
- Diogo Freitas do Amaral, Uma Introdução à Política, Lisboa, 2014, pp. 391 ss.
- Norberto Bobbio, Destra e Sinistra, 2ª ed., Roma, 1995
- Joan Antón Méllon (ed.), Ideologías y Movimentos Políticos Contemporáneos, 2ª ed, reimp., Madrid, 2008, pp. 45 ss
- Philippe Nemmo, Histoire des Idées Politiques aux Temps Modernes et Contemporains, Paris, 2009, pp. 27 ss., 699 ss. e 1009 ss
- Direito
por António Pedro Barbas Homem, 2024
1. Definir o que é o direito é uma tarefa impossível sem a consideração da sua historicidade enquanto conceito e enquanto instituição. Gregos, romanos e as sociedades medieval ou moderna tiveram respostas distintas a esta questão. Cada Estado teve e tem as suas próprias leis e costumes, instituições políticas e sociais. Todos os Estados continentais da Europa têm as suas constituições e os seus códigos, frequentemente semelhantes, mas também com muitas diferenças quanto ao modelo de organização do poder – temos repúblicas e monarquias, Estados unitários e Estados federais, regimes presidenciais e parlamentares – e quanto à estrutura da sociedade – por exemplo, com diferenças quanto ao regime do casamento, do poder paternal ou dos contratos – ou quanto à natureza das penas para os crimes. Muitos Estados do mundo ainda admitem a pena de morte e alguns inclusivamente os castigos corporais e a tortura. Quando analisamos a história e a situação actual específica do direito de cada Estado e comunidade damo-nos conta deste paradoxo do particularismo perante uma ideia universalmente válida de direito.
2. Se o direito é uma norma ou um conjunto de normas, para evitar o niilismo dos Estados e dos poderes, durante séculos prevaleceu no ocidente cristão o princípio da existência de princípios e regras superiores ao direito de cada Estado. Na tradição cristã, era essa a função do direito natural, de um lado decorrente da vontade de Deus revelada aos homens e, de outro, construído a partir dessa vontade de modo dedutivo.
Nos nossos dias, as grandes declarações e convenções de direitos humanos ao nível mundial, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, e regional, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assentam na existência de direitos inerentes aos homens que cada Estado tem a obrigação de assegurar.
Do mesmo modo, no constitucionalismo contemporâneo, na Europa continental posterior à segunda guerra mundial, os direitos fundamentais são também formulados a partir de uma mesma convicção acerca da existência de direitos anteriores ao Estado, que este deve garantir.
Os três elementos centrais dos direitos humanos e dos direitos fundamentais são a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade perante a lei.
Direitos naturais e direitos fundamentais são, assim, uma primeira face do direito dos nossos dias.
3. De outro lado, existem princípios gerais que, mesmo não sendo universalmente aceites, constituem o pecúlio do que frequentemente designamos como ocidente ou civilização ocidental e que resumimos na fórmula Estado de direito (ou, em inglês, rule of law).
Foi com o liberalismo que se definiu um princípio que ainda hoje continua válido: é livre (lícito ou conforme à lei) tudo o que não for proibido por lei. A liberdade ou autonomia privada é, assim, um princípio do direito. Esta autonomia é mais protegida em certas matérias que designamos por vida privada e intimidade.
O perímetro do que entendemos como direito e, portanto, dos comportamentos judicialmente exigíveis, confronta-se, então, com as matérias que entendemos que ou não têm dignidade jurídica ou entendemos que estão para além do direito. O jurista francês Jean Carbonnier utiliza a divertida expressão o sono do direito para referir que a vida afectiva, a vida espiritual e a vida em família devem estar livres da intervenção do direito, isto é, do legislador e do juiz.
A autonomia privada apenas pode ser limitada por lei, lei que desempenha uma função essencial de garantir a liberdade e, de outro lado, de a concretizar.
Este é outro paradoxo do direito. De um lado os direitos são garantias contra o Estado, mas, de outro, as leis do Estado são necessárias para concretizar os direitos.
Em vários códigos civis diz-se, a este respeito, que os contratos valem como lei entre as partes.
Hoje, no entanto, existe uma ofensiva para reduzir a reserva de liberdade e de autonomia. Como se generalizou o entendimento de que qualquer pretensão de um indivíduo ou de um grupo tem dignidade de direito fundamental e está protegido pela constituição e pode ser levado para decisão de um tribunal – porque os tribunais e, por último, o tribunal constitucional, exercem uma função de tutela de todos os direitos e interesses – cabe então aos tribunais decidir em última instância dessas pretensões.
4. O funcionamento do direito exige, em caso de conflito, a intervenção de um terceiro imparcial. É a heteronomia: para além da lei e dos direitos, outras instituições básicas do direito são o tribunal e o julgamento.
Para o cristianismo, o julgamento de Cristo constitui uma das recordatórias mais importantes acerca da necessidade de um julgamento justo e das suas instituições, um conjunto ou feixe de princípios e de regras que também designamos como juiz natural e processo devido ou justo (due process). Lei prévia, acusação responsável, garantias de defesa, especialmente direito ao contraditório, tribunal independente e juiz imparcial são concretizações institucionais destes princípios. Direito ao recurso, isto é, uma nova instância que julgue os julgamentos tornou-se outra das instituições do processo devido, de modo a procurar evitar o erro judiciário. Que estes julgamentos sejam feitos por um colégio de juízes – e não por um só – é outra exigência organizativa que acresce às anteriores.
Estas ideias justificam a importância que adquiriram nas ordens jurídicas ocidentais o processo e o procedimento. São instituições fundamentais, quer para a qualidade da democracia, quer do processo judicial e do procedimento da administração.
5. Cabe aos terceiros imparciais, os juízes, aplicar nos casos de conflito, as sanções especificamente jurídicas. Também aqui, apenas o estudo da marcha histórica do direito ocidental permite compreender a nossa situação actual, que aboliu a pena de morte, as penas corporais, a tortura, a chamada morte civil, o cárcere privado, os castigos corporais. Recordo, como exemplo, que até recentemente, era permitida a aplicação de castigos corporais aos menores nas famílias e nas escolas.
A responsabilidade civil tornou-se exclusivamente patrimonial. A responsabilidade criminal assenta na aplicação da pena de privação da liberdade, ao lado de outras penas.
6. Mas como reagir perante a injustiça de uma lei, de uma sentença ou de um contrato?
Uma das mais importantes contribuições para o direito e para a política de uma visão que hoje conhecemos como tradição do direito natural ou ainda jusnaturalismo (esta uma expressão contemporânea) é precisamente a doutrina da justiça e do direito justo. Na verdade, e em especial na visão mais antiga, por exemplo de São Tomás de Aquino, o direito natural era o fundamento do direito positivo, no duplo sentido em que este se devia fundar naquele e, quando se afastasse, deixaria de ser exigido o acatamento das normas positivas.
O Compêndio de Doutrina Social da Igreja Católica recolhe o essencial dessa tradição, na verdade muito complexa e por vezes contraditória no seu desenvolvimento histórico, sob a forma do direito de objecção de consciência e do direito de resistência (n.ºs 393 ss., especialmente, 400-401). A consciência individual e a consciência colectiva do justo são instâncias que, nesta visão, examinam a obrigação de cumprimento das leis ou de ordens quando elas implicam colaborar em ações moralmente erradas.
De acordo com estas doutrinas do direito existe um conjunto de regras objectivas ou pressupostas chamadas direito natural, que são o fundamento e referência para o direito positivo criado pelos Estados, assim estabelecendo a ligação entre o direito e a moral.
7. De modo distinto em relação às doutrinas do direito natural, uma outra posição doutrinária sustenta a separação entre o direito e a moral e a ausência de qualquer tipo de referências supra-positivas. No plano filosófico, o positivismo encontra-se associado ao utilitarismo e ao liberalismo oitocentistas. Existem muitas formulações diferentes desta visão positivista, aqui resumida à rejeição da existência de regras superiores ao direito positivo.
8. O direito e a ciência do direito encontram-se hoje perante desafios complexos resultantes das transformações dos Estados, das sociedades e das mentalidades. Ao lado de uma revolução industrial – com a inteligência artificial, a robotização e a Internet das coisas, entre outras manifestações – e de transformações aceleradas na economia e na estrutura laboral, as sociedades confrontam-se também com uma revolução cultural e social, acelerada pelas redes sociais e na qual muitos protagonistas exigem novos direitos e uma nova ordem jurídica. Com a globalização, fala-se de um constitucionalismo global e multinível, na medida em que, ao lado das fontes nacionais, em cada Estado também se aplica o direito criado por instituições internacionais. O papel criador desempenhado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Tribunal de Justiça da União Europeia e Tribunais Constitucionais no plano interno convoca uma discussão acerca da crise da legitimidade democrática do direito e do Estado, agravada pela omnipresença de comissões de especialistas não eleitos na formulação de políticas públicas e na manipulação da opinião pública.
Saber se estas transformações se concretizam num novo tipo de sociedade pós-moderna é um tema controvertido e da maior actualidade.
BIBLIOGRAFIA:
- António Castanheira Neves, Digesta, Coimbra, Coimbra Editora, I-II, 1995
- José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Coimbra, Almedina, 2022
- Stephan Kirste, Introdução à Filosofia do Direito, trad., Belo Horizonte, Fórum, 2013
e
- Economia de mercado
por Inês Neves, 2024
1. Modelo, programa e princípio de ordem e de organização económica(s), assente na autorresponsabilidade do empresário e na(s) liberdade(s) económica(s) dos agentes económicos (privados). Caracteriza-o a adesão aos princípios da concorrência e da alocação descentralizada, encontrando no mercado a respetiva garantia institucional.
2. O mercado é, além de fórum-lugar de coordenação social e de trocas voluntárias, garantia do alinhamento dos planos e das motivações individuais dos, pelos e entre os agentes económicos, funcionando, também, como mecanismo de formação (livre) dos preços.
3. Uma economia de mercado surge legitimada, em primeira linha, pelos seus pressupostos apriorísticos e pelas respetivas condições de funcionamento: o respeito e a garantia de direitos e liberdades fundamentais, entre os quais o livre desenvolvimento da personalidade, as liberdades de consumo e de investimento, a autonomia privada, a liberdade de profissão, o direito de propriedade e a liberdade de iniciativa económica privada. A posteriori, é justificada, também, pelas suas promessas em termos de paz, autonomia, eficiência, crescimento, inovação e bem-estar. Pela sua natureza, pelos seus objetivos, e pela sua especialidade, os agentes económicos privados e o mercado encontram-se mais bem posicionados para prover grande parte daqueles fins.
4. Caracterizam uma economia de mercado, numa aceção pura ou como modelo perfeito, os princípios da individualidade, da subsidiariedade e da mão invisível, a que acrescem postulados básicos, como igualdade de acesso; informação perfeita; racionalidade das escolhas económicas; capacidade de internalização das externalidades; correção das falhas por tentativa-erro; alinhamento dos interesses egoísticos da decisão económica com a necessidade geral; inexistência de produtos e serviços não comercializáveis, e compensação de eventuais distorções da concorrência no mercado através da concorrência pelo mercado (v.g. disputabilidade). Opõe-se ao(s) modelo(s) de economia centralizada, planificada ou de direção central, caracterizado(s) pelo controlo da produção e da economia pelo Estado, e incompatíveis com o Estado de Direito como Estado de direitos fundamentais.
5. Pese embora potencialmente redutível a uma significância em estado puro, deve, e só poderá hoje ser lida, como economia social de mercado (fórmula originária do enquadramento institucional económico alemão do pós 2.ª Guerra, entretanto beneficiária das colorações dos diferentes contextos socioculturais em que experimentada). Se é, para uns, alternativa liberal à economia planificada, surge, para outros, como alternativa social à economia de mercado pura. É, em todo o caso, mais do que um modelo alternativo, uma leitura necessária da economia de mercado, na ausência da verificação efetiva de todos os postulados dos quais depende.
6. Numa economia (social) de mercado, os ideais do mercado livre e das liberdades (económicas) não perdem primazia nem primado. Surgem, pelo contrário, pontuados por exigências de justiça social, dignidade e segurança. É assim que, sem substituir o mercado e os agentes económicos privados (porventura, a pior solução à exceção de todas as outras), se assiste à orientação-regulação do poder económico pelo poder político, assegurando a internalização de valores societais básicos por quadros regulatórios que, sem arbitrariamente procurar domar o indomável (tentativa sempre fiscalizável pelos direitos fundamentais como escudos e trunfos), visam, antes, i) a prossecução de objetivos macroeconómicos (também eles pré-condições do mercado), ii) a correção de falhas de mercado (de que são exemplo os monopólios naturais, as distorções da concorrência e o fornecimento deficitário de bens públicos) e iii) a devida consideração de externalidades.
7. A rede de relações necessárias para o bom funcionamento de uma economia de mercado sempre dependeu (ainda que em diferentes graus) de dimensões públicas e privadas. Não obstante, se é certo não ser o Estado - não hoje, pelo menos - mero garante abstencionista e formal dos direitos e promotor agnóstico do mercado, é-lhe, em economia de mercado, vedada a assunção arbitrária das vestes de gestor ou de empresário, colonializando um espaço que é, por destinação natural, dos privados, e que com estes deverá permanecer, enquanto produto do exercício da respetiva liberdade-autonomia.
Bibliografia:
- Capitalism and Freedom, Chicago: University of Chicago Press, 1962
- Rolf H. Hasse, Schneider, Hermann & Weigelt, Klaus (eds.), Social Market Economy: History, Principles and Implementation - From A to Z, Ferdinand Schöningh, Paderborn, Germany Konrad-Adenauer-Stiftung, 2008
- Lisa Herzog, Inventing the Market. Smith, Hegel, and Political Theory, Oxford: Oxford University Press, 2013
- Michael J. Sandel,What Money Can’t Buy: The Moral Limits of Markets, Nova Iorque: Farrar Straus Giroux, 2012
- Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, Nova Iorque: Harper & Brothers, 1942
- Esquerda
por Paulo Otero, 2024
1. A esquerda política entende-se por oposição ideológica à direita, apesar de ambas terem a sua origem designativa numa mera disposição dos corpos sociais na assembleia dos Estados Gerais subsequente à Revolução Francesa: situada a burguesia e o povo à esquerda do respetivo presidente, aqui se localizam os protagonistas da revolução e do liberalismo radical, os inconformados com a ordem sociopolítica vigente, os impulsionadores das transformações dos valores e das instituições do “Ancien Régime” – dentro da lógica revolucionária, a esquerda representa os progressistas, apostados na edificação de um novo futuro, por contraste com aqueles que, situados à direita, simbolizando a defensa de uma ordem edificada no passado.
2. A esquerda está longe, porém, de ser uma realidade política homogénea. Não obstante a pluralidade de “esquerdas”, podem identificar-se traços característicos comuns: (i) desprezando o passado e a existência de uma ordem natural, a esquerda procura implementar um programa de roturas, se necessário por via revolucionária, tentando edificar uma sociedade utopicamente igualitária, acreditando na edificação de um homem novo; (ii) conferindo prevalência à igualdade sobre a liberdade, a esquerda olha com desconfiança a propriedade privada, a religião e a iniciativa económica privada, preferindo sempre a intervenção do Estado a qualquer postulado de subsidiariedade; (iii) o Estado é instrumento de reforma e reconfiguração da sociedade, da economia e da cultura, limitando a autonomia das pessoas, das famílias e da sociedade civil, numa preferência do coletivo sobre o individual que tem expressão no primado dos direitos sociais sobre os direitos individuais: (iv) as relações de trabalho e os direitos dos trabalhadores são entendidos no contexto da luta de classes, numa dicotomia maniqueísta que separa explorados e exploradores, justificando políticas de nivelação social, por via da redistribuição de rendimentos, e de coletivização dos meios de produção; (v) afirmação autorreferencial de uma pretensa superioridade moral e cultural, mostrando-se, no presente, empenhada na implementação de políticas libertárias em matéria de costumes, direitos de minorias e ideologia de género.
3. Reconhecendo a autonomia política da extrema-esquerda diante da esquerda, podemos dizer que esta alberga duas diferentes modalidades: (i) existe, por um lado, uma “esquerda democrática”, própria de sociedades abertas, aceitando sem reservas o pluralismo e convivendo com o capitalismo, respeitando a propriedade privada, no contexto de uma economia social de mercado e até passível de ser contagiada pelo neoliberalismo – é a esquerda que se identifica com o “socialismo democrático” e a social-democracia; (ii) existe, por outro lado, uma “esquerda pseudodemocrática”, meramente tolerante ao pluralismo, inimiga da subsidiariedade do Estado, enfadada com a economia de mercado e crítica de um modelo de sociedade aberta, pois acha-se dotada de certezas absolutas e sem simpatia por quem pensa diferente, usando uma linguagem agressiva, sempre pronta a qualificar de “fascistas” ou de “(qualquer coisa)-fóbicos” os seus opositores, preferindo aliar-se ou aderir à agenda política da extrema-esquerda, podendo assumir uma vertente europeia de origem marxista ou, pelo contrário, sob influência norte-americana, defender postulados da cultura woke – trata-se de uma esquerda populista e libertária, dominada por discursos inclusivos e emancipatórios de minorias, que se encontra em transição para a extrema-esquerda ou, numa diferente ótica, estamos substancialmente diante de uma extrema-esquerda que, por razões de maior facilidade política de acesso ao poder, se infiltra e disfarça de esquerda.
Bibliografia:
- BOBBIO, Norberto, Destra e Sinistra, 2ª ed., Roma, 1995
- MELLÓN, Joan Antón (ed.), Ideologías y Movimentos Políticos Contemporáneos, 2ª ed, reimp., Madrid, 2008, pp. 63 ss.
- NEMO, Philippe, Histoire des Idées Politiques aux Temps Modernes et Contemporains, Paris, 2009, pp. 27 ss., 700 ss. e 779 ss.
- TIERNO GALVÁN, Enrique, O que são as Esquerdas?, Lisboa, 1976
- Estado
por Francisco Carmo Garcia, 2024
1. Falar do Estado é, como surge invariavelmente nos manuais dedicados ao tema, falar do que parece ser a forma paradigmática de organização política de um povo. Desse modo, na sociologia e na ciência política encontramos normalmente associados ao conceito de Estado os seus elementos constitutivos: o «povo», o seu elemento humano; o «território», como elemento geográfico; e o «poder político». Num mundo composto de Estados, como é o mundo moderno, estes parecem ser os seus traços genéricos, de uma forma ou outra generalizáveis por toda a experiência humana.
2. Fazer do Estado a unidade política paradigmática implica usar a sua imagem para explicar todas as experiências políticas registadas historicamente. Ou seja, dizer que tanto a pólis grega, a civitas romana, a experiência do império, a respublica christiana, as cidades renascentistas, etc., são todas formas distintas desta mesma unidade política que é o Estado. No entanto, esta generalização precipitada acaba por esconder a essência peculiarmente moderna da ideia de Estado. Com efeito, não se nos pode escapar a novidade que o uso do termo «Estado» (State, État, Staat, Stato) significou na história do pensamento político: um exercício genealógico demonstra que apenas a partir dos séculos XV/XVI o termo começou a ser utilizado para articular aquilo que hoje queremos com ele significar – a ideia de comunidade política – e que se afastou progressivamente do seu significado tradicional, ainda verificado em Maquiavel, de «estado» enquanto condição distintiva de um agrupamento de homens em hierarquia ou função. A evolução do uso do termo sugere seguir o aviso de Carl Schmitt, quando lembrou que o conceito de Estado remete a um «fenómeno histórico» específico e não ao fenómeno político concreto, testemunhado em todos os tempos e geografias.
3. O primeiro traço distintivo do conceito de Estado em relação às restantes formas de unidade política é a sua artificialidade, contrária a toda uma tradição de pensamento político que via no homem um animal naturalmente político e a cidade uma forma de comunidade natural. Aqui não interessa tanto se o Estado é de facto um artifício, mas sim que na sua forma mais articulada se concebe precisamente como um artifício – como uma obra humana. Esta artificialidade está patente nas teorias contratualistas que são a fonte intelectual do Estado moderno, e que fazem deste um produto da vontade humana. Não é um mero acaso que à imagem mitológica do Estado como «grande Leviatã» esteja associada a imagem secularizada do fiat originário – uma criação que já não é divina, mas exclusivamente humana. Tal como o conceito de soberania, indelevelmente ligado ao de Estado, também este último significou um passo na «autonomização» do domínio político face ao teológico, e neste processo a articulação teórica do Estado encontrou o seu contexto histórico: a Europa tardo-medieval, palco para incessantes conflitos religiosos e políticos, fruto do cisma protestante que multiplicou as interpretações subjectivas das Escrituras. A tarefa dos primeiros teorizadores do Estado foi precisamente a de ultrapassar esta condição permanente de conflito – poderíamos dizer «conflito natural», que apenas seria ultrapassado mediante uma solução artificial que se colocasse acima de todas as contendas. Daí o seu segundo traço distintivo: o seu objetivo primeiro, a garantia da ordem. O Estado surge como o instrumento dotado do poder unitário – da soberania - que vai imprimir a ordem num mundo desordenado.
4. O Estado, enquanto fenómeno histórico, corresponde ao momento em que o problema da ordem toma a primazia sobre todos os restantes problemas políticos. É neste sentido que a imagem do Estado adquire os traços de toda a sua artificialidade. O Estado surge como máquina, como um instrumento a cumprir uma função meramente técnica: assegurar a ordem perante a desordem. Para trás ficam todas as considerações teleológicas que animavam a tradição aristotélica da filosofia política, que encontravam na cidade o espaço para a concretização plena do ser humano, para a concretização de um determinado modelo do «melhor homem». Surge nesta figura do Estado-máquina a imagem tipicamente moderna do «Estado neutro», do Estado sem opinião, que apenas cumpre a função para a qual foi edificado pelo homem. A forma como o Estado surge enquanto artifício que se coloca acima de todas as contendas cristaliza-se na dicotomia típica da modernidade que divide o domínio público do privado: privado e público separam-se nitidamente porque o segundo se coloca sobre o primeiro, encarregando-se de regular os seus excessos; na separação público-privado encontramos os resquícios da dicotomia elementar natureza-artifício, e nela testemunhamos as principais aporias da modernidade (a oposição hegeliana entre cidadão e burguês constará na lista, ganhando uma intensidade particular com todas as suas consequências).
5. Obra da vontade humana, imagem de máquina com a função de assegurar a ordem, a ideia moderna de Estado abriu as portas a um horizonte alargado de possibilidades que, exceptuando algumas experiências históricas, partilham de um denominador comum: a ausência de toda a referência teleológica a um modo de concretização humana. Seja o Estado liberal, dedicado a proteger os direitos ou a «autonomia» individuais; o Estado social-democrata, que aliou a garantia da ordem com a construção da «sociedade de bem-estar»; sejam os sonhos marxistas de um «fim da História» no qual o Estado seria destroçado e, com ele, eliminado todo o conflito humano. Este mesmo Estado que resolveu o problema da ordem no mundo tardo-medieval e moderno vê-se a braços com uma dupla investida: por parte de órgãos supranacionais que neutralizam a sua capacidade de agir e tentam limitar o seu direito à soberania; por parte de unidades infra-políticas que vão desde blocos regionais a grandes empresas multinacionais que, se não minam o Estado internamente, adquirem externamente um poderio tal que ultrapassa frequentemente o de muitos Estados. É possível que este novo problema encaminhe o mundo para um novo tipo de organização do poder, do qual o mais exemplificativo historicamente seria o feudalismo; contudo, perante a desordem material e espiritual que se vive hoje, a necessidade de um agente de ordem é cada vez mais premente, e, até ver, não se encontrou nenhum substituto à altura do Estado.
Bibliografia:
• GOYARD-FABRE, Simone. L’État : figure moderne de la politique. Paris: Armand Colin, 1999.
• HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1990.
• HOBBES, Thomas. Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Common-Wealth Ecclesiastical and Civil. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
• SKINNER, Quentin. «A Genealogy of the modern State», em Proceedings of the British Academy, Volume 162 (2009), pp. 325.• IBSEN NORONHA, Lições de História da Cultura Jurídica, Caminhos Romanos, Coimbra, 2024.
• SANTO TOMÁS de AQUINO, Tratado da Lei, Resjuridica, Porto, 1992.
• WILSON COIMBRA LENKE, A Lei e sua ordem a Deus segundo Santo Tomás de Aquino, Contra Errores, São Paulo, 2024.
- Estado de Direito
por José Luis da Cruz Vilaça, 2024
1. Noção e princípios. A democracia moderna não se contenta com a existência de assembleias representativas dos cidadãos para funcionar de maneira pacífica, ordeira, respeitadora dos direitos e opiniões de todos e com subordinação ao interesse geral. Compatível com estruturas constitucionais diversas, o Estado de Direito compreende um conjunto de princípios e procedimentos relativos à forma como uma comunidade é governada e à proteção efetiva dos sujeitos de direito. Essencialmente, requer: (i) regras gerais, claras e não-discriminatórias, publicadas e acessíveis a todos, estáveis, adotadas por órgãos constitucionais legitimados pelo sufrágio universal (“the rule of law”, na terminologia anglo-saxónica, princípio da legalidade ou primado da lei, no sentido de que ninguém está acima desta ou isento de respeitá-la); (ii) separação e equilíbrio de poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial); (iii) consenso sobre um conjunto de valores democráticos da sociedade e das suas instituições, incluindo um catálogo escrito de direitos fundamentais cujo respeito é controlado pelos tribunais; (iv) tribunais independentes e imparciais, que assegurem uma tutela judicial efetiva dos direitos dos particulares (entre si e relativamente ao Estado), capazes de resolver conflitos com transparência, celeridade e equidade, no respeito dos direitos de defesa e de acordo com os princípios de não-discriminação, “igualdade de armas” e presunção de inocência. Normas que impõem sanções (penais ou outras) ou encargos (fiscais ou de outra natureza) a quaisquer indivíduos ou entidades são adotadas por assembleias legislativas representativas (nullum crimen, nulla pena, sine lege; no taxation without representation) e não se aplicam retroativamente. Num Estado de Direito, também a Administração deve pautar-se pelos princípios de participação dos cidadãos e de boa administração, de imparcialidade e transparência, de segurança jurídica e proteção das expetativas legítimas, de proporcionalidade e de subsidiariedade. Além disso, qualquer pessoa deve poder criticar livremente a legislação e a forma como é aplicada sem sofrer sanções ou incómodos por havê-lo feito.
2. Estado de Direito em Portugal e na União Europeia (UE). O artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) define a República Portuguesa como um Estado de Direito democrático. A importância deste é constitucionalmente sublinhada nos artigos 7.º, n.º 6, e 8.º, n.º 4, CRP, bem como pela sua inclusão entre as tarefas fundamentais do Estado (artigo 9.º, b) e c), CRP), em conjugação com os direitos fundamentais enunciados na Parte I da CRP (artigos 12.º a 79.º). Na UE, são essenciais os artigos 2.º (valores da UE), 6º (direitos fundamentais), 7.º (suspensão dos direitos por violação do artigo 2.º), 9.º a 12.º (princípios democráticos), 19.º (tutela judicial efetiva) e 49.º (condições de adesão de novos Estados-membros, na linha dos chamados “critérios de Maastricht”), do Tratado da UE (TUE), bem como o artigo 15.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE) (transparência da administração e acesso a documentos). A Carta dos Direitos Fundamentais da UE, à qual o artigo 6.º, n.º 1, confere “o mesmo valor jurídico que os Tratados”, consolida a UE como uma União de Direito. O Tribunal de Justiça da UE, na sequência do acórdão de 2017, C-64/16, Associação sindical dos juízes portugueses, tem-se aplicado em reforçar o Estado de Direito na UE face às derivas autoritárias e antidemocráticas de certos Estados-membros, em especial, a violação da independência dos juízes.
Bibliografia
- CRAIG, Paul, EU Administrative Law, Oxford University Press, 3.ª ed., 2016; Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2016: https://plato.stanford.edu/entries/rule-of-law/ .
- HOFMANN, Herwig, General principles of EU law and EU administrative law, in Barnard and Peers (eds.), European Union Law, Oxford University Presspp. 222-233.
- KELSEN, Hans, Pure Theory of Law, M. Knight (trans.), Berkeley: University of California Press, 1960/1967.
- MONTESQUIEU, De l’esprit des lois - Anthologie, Denis de Casabianca, ed., Flamarion, 1748/2019.
- Estado Social
por Inês Neves, 2024
1. Princípio estruturante da ordem jurídico-constitucional e imagem do Estado constitucional, representativo e de Direito que conhece as suas primeiras manifestações significativas no período subsequente às duas Guerras Mundiais (ainda que, como fórmula, tenha raízes anteriores).
2. Enquanto Estado social de Direito, aponta para uma realização material do Estado de Direito, movida pela prossecução de fins de solidariedade e de justiça social, lidos e compreendidos, também, numa lógica inter-, transgeracional e de futuro. É, também por isso, elemento natural e não meramente acidental ou conjetural numa cultura político-constitucional promotora da igual dignidade social da pessoa humana.
3. Sucede (sem o substituir ou aniquilar) ao Estado liberal - anorético, invisível, negativo e formal -, num movimento que é mais reformista do que revolucionário. Colora, completa e densifica, por isso, o primeiro, com um conjunto de critérios axiológico-políticos, concretizados nos direitos económicos, sociais e culturais, como posições jurídicas subjetivas e decisões de valor, garantes da libertação da necessidade e inarredavelmente dependentes de um intervencionismo estritamente necessário, e na origem de um esbatimento das fronteiras da tríade Estado-sociedade-economia.
4. No domínio económico, o mercado e a cena económica deixam de se apresentar como prius espontâneos, naturais e prévios ao poder político, para se converterem em objetos reguláveis, e suscetíveis de conformação e de configuração segundo standards heteronomamente impostos por uma ordem pública e institucional do mercado e da economia. Contestada a mão invisível e os seus pressupostos, procuram-se respostas para as falhas do mercado, as externalidades inevitáveis, e a inarredável necessidade de prover ao fornecimento de bens públicos e à prossecução de tarefas estaduais.
5. No plano dos direitos, soma-se à igualdade jurídica e abstrata a concretude de uma igualdade material, autêntica e efetiva, através da formulação de políticas públicas, da densificação de prestações com base em critérios contributivos e assistenciais, e da cooperação e abertura do Estado aos cidadãos e a outras formações sociais.
6. Pese embora as diferentes conceções, intensidades e leituras ideológicas a que frequentemente agrilhoado, não há como equivaler o Estado social ao Estado-providência, assistencial ou de bem-estar (welfare state, Wohlfahrstaat) - obeso, ineficiente, excessivamente paternalista, desresponsabilizante e colonizador da vida. Assim como não pode também, e naturalmente, confundir-se com o Estado socialista, corporativo-fascista, soviético-marxista, ou assente numa economia central planificada.
7. Face ao Estado liberal e ao ideário liberal, dá-se um processo de evolução na continuidade. Não há substituição revolucionária, não sendo sequer legítima (em Estado de Direito) uma qualquer exclusividade, sistematicidade ou primazia do Estado (na cena económica e sobre os demais atores sociais). Ao respeito pela autonomia e pela liberdade dos privados, e à garantia do mercado e da economia de mercado como condição de vigência e de efetividade (e, hoje, exigência do projeto europeu), acresce, porém, a atenção à dignidade da pessoa humana, refreando os ímpetos do liberalismo oitocentista e do neoliberalismo absolutizante.
8. Em termos jurídico-político-administrativos, assistiu-se a um recuo do alcance e da dimensão das primeiras manifestações do Estado social, que em si concentra(va) as vestes de poder soberano, empresário, prestador de serviços, gestor e regulador. Este vê-se hoje substituído pelo Estado-garantia (Gewährleistungsstaat). Um Estado ativador ou capacitador, possibilitante, e regulador, a cuja responsabilidade pela prestação-produção sucede a responsabilidade pela garantia. Todavia, nem o recuo do Estado (sobretudo em domínios onde apenas se deverá encontrar se, quando e na medida da sua legitimidade), nem a negação do respetivo monopólio na garantia do bem-estar, afastam a perentoriedade e a deverosidade de uma permanência latente, acionável por deveres estaduais de proteção. As referências a uma crise, rutura ou substituição do Estado social são, por isso também, resolúveis pela adoção de uma perspetiva aberta, flexível e plástica dos respetivos postulados, alcance e possibilidades ou limites.
Bibliografia:
- João Pacheco de Amorim, Direito Administrativo da Economia - Vol. I (Introdução e Constituição Económica), Coimbra: Almedina, 2021
- Catarina Santos Botelho, Os Direitos Sociais em Tempos de Crise - Ou Revisitar as Normas Programáticas, Coimbra: Almedina, 2017
- João Carlos Loureiro, “Adeus ao Estado Social? O insustentável peso do Não Ter”, Boletim da Faculdade de Direito: Universidade de Coimbra, 83: 99-182, 2007
- Jorge Miranda, “Os novos paradigmas do Estado social” in Conferência proferida em 28 de Setembro de 2011, em Belo Horizonte, no XXXVII Congresso Nacional de Procuradores de Estado, disponível em: <https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/1116-2433.pdf> [último acesso em 26.04.2024]
- Paulo Otero, Direito Constitucional Português Volume I - Identidade Constitucional, Coimbra: Almedina, 2017
- Ética
por António Bagão Félix, 2024
1. A ética pode ser definida tanto como uma disciplina filosófica que nos ensina a distinguir entre o que é bom e mau para a pessoa e para a sociedade, ou uma ciência prática que nos guia do ponto de vista do bem e do mal na acção, na decisão e na conduta. Sócrates sumariou-a “como devemos viver, e porquê”. Aristóteles definiu-a com a pergunta “por que razão viveu a pena ter nascido?”. Kant incidia a sua abordagem deontológica “no que devo fazer na relação com o outro”. Já Pierre Reverdy dizia que “a ética é a estética de dentro”.
2. Muitas vezes utilizadas como palavras sinónimas, ética e moral não devem ser confundidas. A moral é um conjunto de princípios, normas e valores entendidos a um nível abstracto e pessoal, normalmente associados a preceitos de raiz religiosa ou espiritual. Já a ética tem que ver as práticas, hábitos e costumes aferidos a um nível concreto e relacional. Por outras palavras: na moral a distinção é entre bem e mal (por exemplo, uma situação moralmente aceite ou inaceitável). Na ética, a separação é entre o bom e o mau para uma dada situação (um acto eticamente correcto ou errado). A ética consiste no estudo das regras e dos princípios que avaliam ou determinam o certo e o errado, o bom e o mau para um contexto concreto. Por isso, o livre arbítrio da pessoa é uma condição necessária para o escrutínio ético da sua conduta.
3. A abordagem ética pode ser feita segundo vários ângulos: o da ética normativa ou prescritiva, orientadora do comportamento (o dever ser); o da ética descritiva, ou seja factual, objectiva e verificável (o que é) e o da ética conceptual da análise e significação dos conceitos e padrões comportamentais.
4. O conjunto do que é eticamente aceitável (o legítimo) é mais restrito e exigente do que é juridicamente aceitável (o legal). Nem tudo o que a lei permite se nos deve impor, e há coisas que a lei não impõe, mas que se nos podem e devem impor. Nenhuma lei proíbe em absoluto a mentira, a desonestidade, a deslealdade, a malvadez, o ódio, o desprezo, a vilanagem, como nenhuma norma jurídica só por si assegura valores éticos imperativos, como a decência, a verdade, a amizade, a lealdade, a solidariedade, etc.
5. Fazer as coisas bem feitas poderá ser uma medida de eficiência. Mas só fazer as coisas certas é uma medida de ética. Juntando estas duas asserções, isto é, fazer as coisas certas de um modo certo, chega-se à plenitude do imperativo ético. Para tal. buscando os fins na sua relação com o outro e consigo próprio. E sabendo escolher os meios necessários para alcançar os fins. Com liberdade e responsabilidade. Quase sempre em confrontação dilemática, em contextos e situações que podem implicar escolhas difíceis e custos associados a renúncias. No fim de contas, em presença das sempiterna questão ética: pode um fim eticamente bom justificar meios eticamente maus?
6. As teorias éticas clássicas dividem-se em dois grupos: as consequencialistas ou teleológicas e as não consequencialistas ou deontológicas. Para as primeiras - de que o utilitarismo é a expressão mais conhecida - a sua base reside na avaliação dos resultados ou consequências da acção: se são os desejáveis, úteis ou bons. Para as segundas - teorias baseadas em deveres e direitos - a sua essência é o julgamento moral dos princípios subjacentes à motivação da pessoa que age ou decide, independentemente dos seus prováveis efeitos ou consequências.
7. Já nas chamadas teorias contemporâneas, destacam-se quatro: a ética das virtudes, de raiz aristotélica, centrada no carácter e nas particularidades da pessoa e da situação; a ética dos cuidados, que enfatiza a relação interpessoal em detrimento de regras mais impessoais e abstractas; a ética discursiva ou persuasiva, desenvolvida por Jürgen Habermas, que aspira a resolver conflitos éticos através de um processo de geração de normas por via da reflexão racional sobre a experiência de todos os participantes relevantes; e a chamada ética pós-moderna, que coloca a ética para lá da esfera de racionalidade, e apela à inteligência emocional acerca do que é certo ou errado numa decisão ou acção.
BIBLIOGRAFIA:
- Aristóteles, Ética a Nicómaco, ed. Quetzal 2004
- Immanuel Kant, Leçons d’éthique, Ed. Classiques de poche 1997
- André Comte-Sponville, Petit traité des grandes vertus, ed. PUF, 2020
- Maria do Céu Patrão Neves (coord.), Ética : dos fundamentos à prática, ed. 70, 2017
- José Manuel Santos, Introdução à ética, ed. Documenta, 2012
- António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso, Victor Gil (coord.), Temas de Ética - reflexões e desafios, ed. Principia, 2022
- Ética Económica
por João César das Neves, 2024
1. A atividade económica tem forte relação com a ética, pelo menos a três níveis. A primeira questão, e a mais direta, tem a ver com a atitude moral na própria operação do sistema. Quando alguém rouba, manipula o preço ou explora o trabalhador gera uma violação da equidade na relação. O termo clássico para a orientação envolvida é “justiça comutativa”, promovendo a igualdade nas transações.
2. Outro problema bastante diferente liga-se ao resultado dessa operação. É comutativamente justo que quem não produz nada receba. Mas se a razão disso é a pessoa ser criança, idoso, doente ou habitante de uma zona desfavorecida, surge outra exigência ética, a que se costuma chamar “justiça distributiva”, que se destina a conseguir um acesso de todos a uma vida digna.
3. Estes dois requisitos éticos conflituam frequentemente. Por exemplo, o pagamento de um imposto é, em si mesmo, um atropelo à justiça comutativa, com o contribunte a ficar com menos do que lhe compete, mas justificado por razões distributivas. Grande parte das discussões políticas resultam desta contraposição. As orientações liberais tendem a sublinhar a primeira justiça em detrimento da segunda. Quando o Nobel da Economia Milton Friedman afirmou que “A responsabiidade social dos negócios é aumentar os lucros” (New York Times Magazine 13/Set/1970), assumia que as empresas “se mantinham dentro das regras do jogo”, a justiça comutativa, mas suprimia nelas as considerações distributivas. Por outro lado, muitos socialistas propõem enormes atropelos à equidade pecuniária na luta por uma sociedade mais justa.
4. Um terceiro elemento tem a ver, não com a operação ou os resultados da economia, mas a sua natureza. Desde sempre que os negócios carregam uma forte suspeita moral, independentemente da forma como são conduzidos ou dos efeitos que causam. Este elemento, em geral ligado ao vício da ganância e ao fascínio do ouro, não surge de atropelos às justiças comutativa ou distributiva, mas da baixeza essencial da atividade produtiva e comercial, que nas sociedades clássicas competia a escravos. Aristóteles concedeu o seu prestígio à tese quando, após definir a atividade natural da gestão familiar (ekonomiké), afirmou: “uma vez inventada a moeda por causa das necessidades da troca, nasce uma outra forma de arte de adquirir (chrematistikê), a forma comercial, (…) que procura o maior lucro possível” (Política 1257b.1-5). Assim, há 2300 anos que a crematística anda condenada. Karl Marx invocou explicitamente este texto na definição de capitalismo (Das Kapital I, 2, 4), incriminando o sistema por razões intrínsecas, como o fazem tantos hoje, mesmo com orientações opostas. Esta terceira dimensão é bem visível precisamente no tema mais complexo e controverso da ética económica, a questão da usura, juro e finança. Tradicionalmente as sociedades repudiam tais práticas ou, as poucas que as aceitam, exigem fortes regulamentações. Apesar disso o crédito manteve-se sempre popular, havendo mesmo quem defenda que as primeiras leis, como o Código de Hammurabi (Mesopotâmia, 1754 aC), nasceram para lidar com a questão e que a ciência económica surgiu das tentativas escolásticas para justificar a condenação.
5. A ética económica, nestas suas três dimensões, traduz-se nas várias doutrinas sociais, as quais se distinguem mais pela combinação particular dos três vetores que pelo conteúdo deles. Todos identificam e repudiam fraude, desigualdade e cobiça, mas cada uma destas viu-se frequentemente justificada ideologicamente para combater as outras.
6. Um dos casos mais influentes desse equilíbrio é a doutrina da Igreja Católica, que tem a relevância adicional de, orientada para a salvação eterna, não se centrar na economia, sem no entanto a desprezar. Cristo afirmou: «quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é infiel no pouco também é infiel no muito. Se, pois, não fostes fiéis no que toca ao dinheiro desonesto, quem vos há-de confiar o verdadeiro bem? » (Lc 16, 10-11). Fica assim clara a distinção entre os planos, mantendo no entanto a justiça no inferior, do “dinheiro desonesto”, pela sua ligação ao superior.
7. As afirmações eclesiais mais radicais surgem na distribuição. Conceitos como “destino universal dos bens” (CDSI 171-184), “dimensão subjectiva do trabalho” (id. 270-280) e “gratuidade” (id. 20-32, 196, 221, 391), diretamente resultantes do fundamento da doutrina, a dignidade da pessoa humana (id. Cap. III), implicam fortes exigências sobre a estrutura da sociedade, da empresa e do mercado. Sem rejeitar a propriedade privada, a colaboração entre capital e trabalho e o comércio, propõe-se uma sociedade de caridade na verdade, concebida para atender às necessidades de todos.
8. Quanto à maldade intrínseca da economia, desde Santo Agostinho que a Igreja rejeitou a condenação da crematística: «Eu, comerciante, não passo a minha culpa para o negócio; pois se minto, sou eu que minto, não o negócio (…) Só sei uma coisa: se eu fôr mau, o que me faz mau não é o negócio, mas a minha iniquidade.» (Comentário aos salmos, salmo 70, 17). O Papa Bento XVI esclarece a mesma questão ao dizer: «Não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.» (Caritas in Veritate, 36).
9. Não existe economia sem ética, como não existe sociedade sem economia. Os dilemas persistem devido à necessidade de balancear as várias exigências em busca de uma economia justa.
Bibliografia:
• CDSI - Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Lisboa, Principia, 2005.
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html
• Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral, A vocação do líder empresarial. Uma reflexão, Lisboa, Editora Paulus, 2018
https://www.humandevelopment.va/en/risorse/documenti/vocation-of-the-business-leader-a-reflection-5th-edition.html
• Hausman, Daniel M., Michael S. McPherson and Debra Satz, Economic Analysis, Moral Philosophy, and Public Policy, 3rd ed. Cambridge, Cambridge University Press, 2017.
• Hoffman, Michael, Robert E. Frederick e Mark S. Schwartz (eds.), Business Ethics: Readings and Cases in Corporate Morality, 5th ed., New Jersey, John Wiley & Sons, 2014
• Sen, Amartya, On Ethics and Economics, Oxford, Basil Blackwell, 1990 - Ética Política
por António Bagão Félix, 2024
1. A ética política é a expressão da confluência entre a ética como referencial axiológico e a política como promotora do bem comum. Não são realidades antagónicas, antes se completam. Como escreveu São Tomás de Aquino, “O Poder é serviço e não benefício ou privilégio de quem o exerce: o governante é aquele que age para o bem comum da sociedade” (A Monarquia, I, 1, 8 e 9). O bem comum é a razão de ser da autoridade política. Como consequência, a autoridade só é exercida legitimamente na medida em que procurar o bem comum e em que, para o atingir, emprega meios moralmente lícitos. As primeiras e fundamentais premissas de ética política são a do uso do poder como poder-dever e a do imperativo do contrato moral pelo qual a ética da primeira pessoa (a auto-exigência) deve ser sempre a primeira condição para a ética da terceira pessoa (ser-se exigente com os outros). Como tal, à ética política subjaz sempre uma necessária conciliação entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade.
2. O teste de ouro no plano ético - saber se os fins justificam ou não os meios usados - é central no exercício da política. Há valores, que sendo essenciais em quaisquer circunstâncias ou actividades, são indissociáveis e estruturantes da ética política. Citam-se, a título exemplificativo, a honradez, a integridade, a rectidão, a honestidade, a autenticidade, a exemplaridade, a bondade moral, a coerência, a sensatez, a generosidade, a temperança, a lealdade, a perseverança, a prudência, a equidade, a exactidão, a compaixão, a gratidão.
3. Vemos, porém, que a ética política pura e intensiva se vem relativizando pela abordagem do que podemos designar por uma ética quantitativa e adversativa. Para tal, “inventou-se” um novo arquétipo moral entre os actos bons e os maus: os actos indiferentes, uma espécie de silenciosa amiba onde se acolhem as maiores perversidades éticas. Em ética, não há o meio-termo, lugar geométrico da indiferença moral. O imperativo ético passou a ser moldável por um qualquer ou oportuno se, mas, talvez, quase sempre, salvo se, mais ou menos e pela invocada separação entre a pessoa e a função, como se o carácter fosse divisível. Diz-se que, em política, “basta parecer”. No plano ético, não basta parecer, não basta o marketing da ética, a “markética”. É mesmo preciso ser.
4. A ética política é mais ampla e exigente do que a estrita legalidade. A ética política não se limita ao direito. Não basta cumprir e fazer cumprir a lei. A ética é maximalista, sendo que o direito positivo é, por definição, contido. A norma jurídica não pode assegurar a capacidade de se limitar a si própria. A nível colectivo, há exemplos dramáticos na história que nos evidenciam que o legislador (mesmo que sustentado na soberania do povo ou vontade de maiorias em determinados momentos) pode fazer o melhor e o pior do ponto de vista ético e humano.
5. Duas notas finais, em redor da ética política. A primeira, sobre Aristóteles que nos deixou na obra Retórica a sua tese sobre a argumentação. Fê-lo com base em três conceitos: Ethos, Pathos e Logos. Ethos que se exprime numa argumentação radicada no carácter do orador. Diríamos hoje, baseada numa praxis de valores, princípios de conduta e virtudes. Através do ethos, o discurso torna-se digno de confiança e de credibilidade. Pathos que significa uma retórica centrada na emoção. Aquilo que hoje associamos ao dom do carisma e da capacidade de convencimento, através da inteligência emocional e da persuasão que induzam à receptividade de quem ouve. Se for exclusivo na retórica argumentativa, o pathos pode degenerar facilmente em manipulação e demagogia. Diferentemente do ethos, centrado na pessoa do comunicador e do pathos, percepcionado do lado do receptor da comunicação, o logos valoriza a própria comunicação e argumentação. Apela por isso à razão, à logica e estruturação da linguagem e à solidez baseada no saber e no conhecimento.
Percebemos quão importantes são a harmonia entre estes três pilares da argumentação política e a conjugação plena do ethos, pathos e logos. E constatamos como escasseiam as personalidades que preencham estes três requisitos. Ou como, em política, se evidencia a diferença entre um vulgar político, um esforçado líder e um denso estadista.
6. A segunda nota, sobre a verdade entendida como o eixo central da ética política. A verdade é um bem público. Até no sentido estrito da teoria económica. Ou seja, nem é rival, nem exige o princípio da exclusão. Não é rival, porque a verdade não é apropriável por uns em detrimento de outros. Nem é excludente, porque é de acesso universal.
Porém, a mentira tornou-se um adversário poderoso da ética política. Uma nova especiaria comportamental, bem aceite (ou consentida) nos corredores do poder e das diferentes formas de comunicação e redes sociais. A verdade tem sido confrontada, senão mesmo suplantada, pelas múltiplas formas da mentira: a meia-verdade, o rumor, a dilação, o exagero, a quimera, a publicidade encapotada, a ilusão, a insinuação, a manipulação, a fantasia e outras formas capciosas de abastardar a factualidade. Uma porta meio aberta é uma porta meio fechada, mas uma meia-mentira jamais será uma meia-verdade. Embora “gratuita”, a verdade dá trabalho e exige a consonância da sua essência com o carácter e a consciência da pessoa.
Bibliografia:
- André Comte-Sponville, Petit traité des grandes vertus, ed. PUF, 2020
- António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso, Victor Gil (coord.), Temas de Ética - reflexões e desafios, ed. Principia, 2022
- José Manuel Moreira, Ética, Democracia e Estado, ed. Principia, 2002
- Maria do Céu Patrão Neves, Ética : dos fundamentos à prática, ed. 70, 2017
- Eutanásia
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. A palavra eutanásia tem origem no grego – eu (boa) e thanatos (morte) –, significando boa morte. A expressão, ao tentar concitar a piedade do interlocutor, torna-se permeável a equívocos, exigindo um esforço definitório. Assim, quando convocamos o conceito de eutanásia, não falamos de situações em que a pessoa está cerebralmente morta (e, portanto, juridicamente morta), mesmo que se encontre, ainda, ligada a um suporte de vida (designadamente para efeitos de transplantação de órgãos); não falamos de situações de combate à obstinação terapêutica; nem falamos de situações em que o médico ministra certos medicamentos ao paciente (para alívio das dores e do sofrimento), que podem ter como consequência lateral o encurtamento da sua vida. A eutanásia corresponde a dar a morte a alguém, antecipadamente, a pedido da própria pessoa (daí que se fale de eutanásia voluntária, que é a única – para já e contra aquela que parece ser a consequência da rampa deslizante a que se assiste noutras latitudes onde o fenómeno foi liberalizado), quando esta se encontre em determinadas circunstâncias, o que significa que o sujeito não pode abdicar de viver em qualquer caso, mas apenas naquelas hipóteses que são previstas pelo legislador.
2.Na base da invocação do direito a morrer está uma ideia de autonomia, o que suscita o problema de saber se na autonomia da pessoa cabe a decisão de deixar de viver, ou seja, o problema da compreensão do sentido da própria autonomia. Em confronto surgem duas perspetivas irreconciliáveis: uma perspetiva individualística, que encerra a pessoa sobre si mesma; e uma perspetiva pessoalista, que convoca uma dimensão ética de responsabilidade comunitária (pelo outro e perante o outro) e de responsabilidade por si mesmo. Para a primeira, o direito a morrer seria absolutamente legítimo, por aquele indivíduo reivindicar para si uma liberdade negativa de ausência de constrição, muitas vezes traduzida num direito a estar só; para a segunda, o direito a morrer seria absolutamente ilegítimo. Um ordenamento jurídico que se queira de direito e do direito não pode deixar de abraçar a segunda perspetiva, assente na pessoalidade responsável. A liberdade não pode ser entendida num sentido individualístico, empobrecedor, como uma mera ausência de constrição heterónoma. O homem, tido por autossuficiente, é compreendido, nesse quadro, como um ente que se situa antes de qualquer contacto social, um indivíduo, em confronto com os demais – tidos como obstáculos à realização das suas aspirações – e com o Estado. A grande preocupação que avulta, aí, é, portanto, a da limitação do poder daquele – forjado com base no mecanismo do contrato, através do qual o indivíduo lhe transfere parte dos seus direitos, de modo a garantir a ordem e sair do estado de natureza – e qualquer imposição ou proibição surge como anómala, como uma limitação da vontade do indivíduo. A liberdade seria, então, a mera liberdade negativa. A ela associar-se-ia uma ideia de liberdade positiva, entendida como autonomia ou poder de autodeterminação, e caracterizada pela possibilidade de opção entre diversas alternativas de ação. Sem que, contudo, essa liberdade positiva seja, também ela, adequadamente compreendida, já que nenhum fundamento postula para a escolha que se haverá de operar. A eutanásia livre representaria isso mesmo, uma forma de exercício da autonomia, ainda que de um modo radical e inultrapassável. Contudo, esta ideia de liberdade só seria defensável se olhássemos para o direito como uma pura forma, totalmente dependente da voluntas do legislador. Simplesmente, o direito não pode ficar dependente da pura vontade (tendencialmente arbitrária) do legislador, nem se sustenta num ficcional consenso a priori ou num dialógico consenso a posteriori. Antes implica uma pressuposição ético-axiológica, que faz apelo à pessoa, com a sua dimensão comunicacional, relacional e de autotranscendência. De outro modo, correríamos o risco de forjar uma ordem regulativa – como foram muitas ordens ordenadoras de condutas – que, ainda que formalmente fosse uma ordem de direito, não seria uma ordem do direito. Com o exercício da autonomia que pretende fundamentar o fim da própria vida, o homem nega o seu estatuto de pessoa, porque corta radicalmente a ligação com o outro, que o permite ser na sua integral dignidade. Amputa os outros do eu, pelo que não poderá configurar o exercício de uma liberdade, mas o abuso de uma liberdade. Ao pedir para morrer, o sujeito impede os outros do exercício da responsabilidade em relação a si, priva-os de uma dimensão essencial da sua humanidade, impedindo-os de se reconhecerem na sua integral dignidade que também é desvelada na fragilidade do corpo e da mente, pelo que a legalização da eutanásia deixa de ser compatível com o próprio sentido do direito.
3. Em rigor, a tentativa de fundamentação da morte a pedido com base na autonomia esbarra no facto de o suposto direito não ser reconhecido a todo e qualquer sujeito, mas apenas àqueles que se encontram em determinadas circunstâncias, o que mostra que, afinal, não está em causa o reconhecimento de uma liberdade mal compreendida, mas o apelo a uma ideia de vida digna. O ordenamento jurídico passa a considerar duas categorias de pessoas: as pessoas dignas, que têm de ser protegidas contra elas próprias, não podendo atentar contra a sua vida ou pedir para morrer; e as pessoas com uma vida indigna que podem solicitar o aniquilamento da sua existência, repristinando-se, embora com um sentido funcionalista, um conceito que foi herdado de um radical biologismo defensor do abandono de qualquer vida inútil, tanto mais que poderia constituir um peso para o Estado, a abrir as portas às leis eugénicas do nacional socialismo alemão.
4. Apesar de o pedido para morrer ser feito pelo titular do direito, é um terceiro (o legislador) que fixa a priori as condições com base nas quais cada um pode ajuizar se quer ou não renunciar ao seu direito à vida, pelo que, previamente, será o Estado a definir quem é e quem não é digno. E se a qualidade de vida que se chama à colação é agora funcionalista, este não deixa de ser, por um lado, um funcionalismo desumanizador que procura esconder o sofrimento e lhe retira qualquer sentido, dando a entender que a dignidade da pessoa não radica nela própria, mas nas circunstâncias que a rodeiam, e, por outro lado, um funcionalismo perigoso, que abre as portas a uma racionalidade eficientista de pendor económico, oferecendo aos Estados a solução mais fácil – mas ainda assim mais aterradora – para os problemas do défice na segurança social e na saúde.
Bibliografia:
- BARBOSA, Mafalda Miranda, “Dignidade e autonomia a propósito do fim da vida”, O Direito, ano 148º, tomo II, 2016, pp. 233-283
- Fikentscher, Wolfgang, Modes of Thought: A study in the Antropology of Law and Religion, 1995
- Neves, Castanheira, “Arguição nas provas de agregação do Doutor José Francisco de Faria Costa – comentário crítico à lição O fim da vida e o direito penal”, Digesta, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, 618 s.
- Extrema-Direita
por Paulo Otero, 2024
1. A extrema-direita começou por ser saudosista do passado e, sem embargo de ter as suas raízes mais remotas, pode dizer-se que nasceu de uma postura de oposição radical e violenta à Revolução Francesa: manteve-se fiel aos valores do “Ancien Régime” e assumiu-se, durante o século XIX, como contrarrevolucionária, anticonstitucional, antiliberal e antiparlamentar. A extrema-direita oitocentista nunca se converteu ao liberalismo, nem aceitou o princípio democrático de base rousseauneana na legitimação do poder, tendo encontrado expressão, em Portugal, nos partidários do miguelismo, e, em Espanha, nos carlistas.
2. Durante a primeira metade do século XX, a extrema-direita capitaliza os descontentes do modelo liberal, as vítimas sociais da Grande Depressão, e chega ao poder, afirmando a necessidade de um Estado nacional, dirigista e hegemónico, por via de um executivo autoritário, chefiado por um messias dotado de poderes ilimitados, à luz de uma conceção hegeliana transpersonalista e de uma visão de prevalência absoluta do interesse da coletividade sobre a esfera dos indivíduos, diluídos e absorvidos pela mobilização das massas ou, se opositores, sufocados pela violência da máquina repressiva do Estado – “tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado” foi o lema do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemão, enquanto experiências políticas totalitárias que, em 1945, são derrotadas.
3. O termo da II Guerra Mundial determina, se excetuarmos as experiências políticas autoritárias de Portugal e de Espanha, até aos anos setenta, o hibernar da extrema-direita europeia até às décadas de oitenta e noventa do século XX, sem prejuízo de pontuais provas de vida, através de atos de violência terrorista. Houve aqui, durante este intervalo, um tempo de reorganização e de redefinição estratégica que, após a queda do muro de Berlim, deixou de se poder alicerçar no puro discurso anticomunista: a extrema-direita teve que se reinventar, criou novas bandeiras de mobilização coletiva de emoções e novas abordagens políticas, aproveitando a curta memória de cada geração.
4. A extrema-direita do século XXI, sem embargo de ainda albergar correntes defensoras da violência e de nostálgicos de regimes políticos anteriores, tornou-se politicamente pragmática, apresentando uma conversão formal às instituições democráticas e às liberdades fundamentais: a nova extrema-direita procura, por via eleitoral, conquistar o poder, assumindo um discurso antissistema, nacionalista, potencialmente racista e xenófobo, visando captar eleitorado desiludido e o voto de protesto, num apelo emotivo à segurança, ao patriotismo, ao protecionismo e à reserva para os nacionais do bem-estar social, fazendo uma crítica radical à governação dos partidos tradicionais da esquerda e da direita-liberal que, partilhando uma alegada teia obscura de interesses comuns, se revelam colaboracionistas com as políticas neoliberais da União Europeia e favorecem leis de imigração descontrolada e de atribuição ilimitada da nacionalidade a estrangeiros, fazendo emergir o perigo de perda da soberania e da identidade nacional.
5. A nova extrema-direita abandonou os ideais nostálgicos tradicionais e uma metodologia assente na violência como meio de ação, servindo-se da influência das redes sociais junto das novas gerações, converteu-se a uma lógica de poder e de mercado, tendo agora como bandeiras aquilo que, em cada momento e lugar, intui captar e mobilizar as emoções do eleitorado: aspira chegar ao governo, num propósito messiânico de salvação da pátria, prometendo, depois de o conquistar pelo voto, proceder à sua transformação radical.
6. A extrema-direita europeia compreendeu, porém, que pouco mudará na política interna de cada Estado, se a União Europeia não mudar e, por isso, servindo-se desta dupla frente eleitoral, numa concertação estratégica de âmbito transnacional de forças congéneres, aguarda que a União Europeia, tal como se conhece, se desmorone e sobre os seus escombros seja possível edificar um novo paradigma político interno e europeu centrado (i) no combate ao multiculturismo e à globalização, valorizando a assimilação cultural e a identidade própria de cada região e de cada pais, e (ii) no desmantelamento do neoliberalismo, do igualitarismo e do mercado livre dentro de um espaço sem fronteiras.
Bibliografia:
- António José de Brito, Para a Compreensão do Pensamento Contra-Revolucionário: Alfredo Pimenta, António Sardinha, Charles Maurras, Salazar, Lisboa, 1996Friedrich Engels, A Origem da Família da Propriedade e do Estado, 3ª ed., Lisboa, 1976
- Fernando Campos, O Pensamento Contra-Revolucionário em Portugal, 2 vols., Lisboa, 1931 e 1932
- Paul Hainsworth, The Extreme Right in Europe and the USA, London, 1992
- Piero Gnazi L’Estrema Destra in Europa, Bologna, 1994;
- José Luis Rodríguez Jiménez, La Extrema Derecha Europea, Madrid, 2004
- J. Ueltzhöffer “Rechtsextremismus”, in NOHLEN, D. (org.): Lexikon der Politik, München, 1992, pp. 382 ss
- Extrema-Esquerda
por Paulo Otero, 2024
1. A extrema-esquerda traduz a radicalização dos postulados políticos da esquerda, surgindo com o período jacobino da Revolução Francesa, sob a influência das coordenadas da democracia antiliberal de Rousseau: fazendo da revolução um meio normal de conquista do poder, visa assegurar o igualitarismo, acelerando a imposição de reformas que pretendem abolir a propriedade privada dos meios de produção, por via do confisco, desmantelar a religião e as suas instituições, sem tolerância face aos opositores que são mortos, exilados ou presos.
2. A extrema-esquerda nega a democracia, preferindo a ditadura, eliminando as liberdades dos cidadãos, dissolve a pessoa na coletividade, e, sem acolher a separação de poderes, usa um modelo de Estado omnipotente e omnipresente como instrumento de repressão e de edificação da nova ordem, recorrendo à violência para garantir a imposição das suas conceções: a extrema-esquerda nega a sociedade aberta, procurando instaurar um regime totalitário, servindo-se das instituições democráticas, se existirem, para as subverter, por via do terrorismo, da subversão revolucionária, ou da participação em processos eleitorais, e suprimindo-as, se alcançar sozinha o poder.
3. Em termos evolutivos, se, no final do século XVIII, a extrema-esquerda surge associada ao período do Terror da Revolução e ao protagonismo de Robespierre, durante o século XIX continua ligada a uma matriz revolucionária de origem francesa, apostada no fomento de insurreições, gerando destabilização social, através de movimentos revolucionários e de grupos anarquistas.
4. No século XX, por via da revolução bolchevique, a extrema-esquerda chega ao poder, alicerçada na ideologia marxista-leninista e visando a edificação da sociedade comunista; primeiro, através do sovietismo, depois do maoismo, sem prejuízo da tese trotskista da revolução permanente. Em comum, a extrema-esquerda é contrária à democracia pluralista, preferindo o autoritarismo e a violência, usando da força do aparelho do Estado contra os adversários políticos – o seu exercício do poder não reconhece oposição oficial, pois todos os dissidentes políticos são inimigos, apelidados de “fascistas”, “contrarrevolucionários” ou “traidores”. Paralelamente, o discurso da extrema-esquerda europeia, dominado ainda por uma lógica de luta revolucionária igualitarista, torna-se, através de uma linguagem radical e agressiva, anticapitalista e antiamericano, promovendo a conflitualidade social e o confronto físico com a autoridade.
5. No século XXI, a extrema-esquerda europeia, alicerçada numa nova intelectualidade de cultura linguística anglo-saxónica, e órfã da União Soviética, apesar de continuar a integrar alguns fiéis da ideológica marxista-leninista e trotskista, foi colonizada nas suas novas causas pelo pensamento norte-americano dos woke lefties, e, continuando a primar pela radicalidade da soluções e a intolerância face a quem discorda, passou a acolher no seu discurso as bandeiras da cultura woke, num claro propósito de rotura com a ordem axiológica judaico-cristã, defendendo políticas de proteção de grupos minoritários em função da orientação sexual, favorecendo a difusão da ideologia de género e promovendo uma “cultura do cancelamento”, silenciamento ou neutralização dos opositores – o wokismo reinventou o totalitarismo no século XXI, sem necessidade de Estado, substituído pelo controlo informal dos meios de comunicação social e das redes sociais.
6. Em termos estratégicos, a extrema-esquerda do século XXI recuperou o pensamento gramsciano, procurando, por via silenciosa e subtil, começar por mudar os valores culturais e morais da sociedade, desde logo através do sistema de ensino e dos meios de comunicação, manipulando a linguagem e os quadros mentais de referência histórica e axiológica, produzindo uma paulatina revolução cultural que, num segundo momento, produzirá a mudança política: a revolução abrupta é substituída por uma revolução passiva que, pouco a pouco, se infiltra no plano cultural, gerando um novo quadro social e mental propício às futuras mudanças políticas.
Bibliografia:
- Jean-François Braunstein, A Religião Woke, Lisboa, 2023
- Friedrich Engels, A Origem da Família da Propriedade e do Estado, 3ª ed., Lisboa, 1976
- J.V, Stalin Problems of Leninism, Peking, 1976
- Leon Trotsky,, La Revolucion Traicionada, Buenos Aires, 1938
- Mao Tsetung, Obras Escolhidas, 3 vols, Pequim, 1971 e 1973
f
- Família
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. A família é uma realidade natural e uma instituição social que se impõe ao próprio direito que a reconhece. Recuando a Roma, a família integrava todos os sujeitos que vivessem sob na casa do dominus, numa hierarquia que mantinha num lugar cimeiro o pater familias e, abaixo dele, a mulher, os filhos e os servos, que viviam sob domínio do primeiro [Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, Theologica, 2ª série, 41/1, 2006, 52 s.]. Em causa um conceito muito alargado de família, que “chegou a designar os «agnati», parentes pertencendo à linha paterna, e os «cognati», parentes concernentes à linha materna, assim como o conjunto dos parentes unidos pelos laços de sangue, vindo a tornar-se em sinónimo de «gens»” [Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, 52 s.], e que haveria de conhecer a sua primeira restrição fruto da influência do Cristianismo, que forjou a família nuclear conjugal baseada no amor [Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, 60; Tony Anatrella, “Casal hoje e confusões afectivas e ideológicas”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 82], assente no casamento elevado à dignidade de sacramento e no livre consentimento dos nubentes, que tinha na família de Nazaré o seu arquétipo. Proibindo-se certas práticas no seu seio, como decorrência da moral imposta pelo catolicismo, a família surge como um núcleo privilegiado de afirmação do cuidado com o outro e, nessa medida, de realização do amor – caritas.
2. O panorama familiar haveria de começar a modificar-se com a alteração de mentalidades, primeiro com o iluminismo, e o consequente individualismo que ele forjou, e, posteriormente, com a industrialização saída da Revolução Industrial. A importância crescente da privacidade, por um lado, e, por outro lado, a galvanização dos afetos, fruto do romantismo oitocentista, foram determinantes neste processo, do mesmo modo que se assistiu a uma crescente atenção dada às crianças e à sua educação, contribuindo, assim, para uma centralidade da afeição na constituição familiar. Simultaneamente, assiste-se, por força da valorização da educação, a uma valorização do mérito, o que terá contribuído para uma sociedade menos hierarquizada e menos imobilista, na qual o estatuto se pode adquirir e não apenas herdar. O liberalismo e as revoluções que lhe andam associadas haveriam de ser igualmente determinantes nesta evolução. Por um lado, prioriza-se o indivíduo, distante da pessoa e, como tal, afastado de qualquer nota de relacionalidade; por outro lado, do ponto de vista político, acentua-se uma tendência para a laicização do mundo, com a consequente introdução do casamento civil nos ordenamentos jurídicos, perdendo-se a sacramentalidade do vínculo, exceto quanto tal correspondesse a uma escolha dos nubentes, e, como tal, fragilizando-se a instituição, para o que também terá contribuído a introdução da possibilidade de divórcio. A ordem harmoniosa da família constituída a partir do casamento indissolúvel ficou submetida à vontade do indivíduo, e o casamento transformou-se numa forma de afirmação da liberdade individual. Aos poucos, a instituição foi sendo suplantada pela expressão do direito do sujeito, ao ponto de a própria conformação do divórcio prescindir, mais recentemente, da descoberta da culpa, para se contentar com a mera rutura da conjugalidade.
3. De uma comunidade assente no recíproco cumprimento de deveres, segundo os papéis estabelecidos, a família passou a ser um espaço de afirmação de individualidades. Uma certa funcionalização do jurídico, que acompanha uma visão política da sociedade, determinou que se fosse transformando uma instituição sólida, através da qual se cumpria o sentido da solidariedade intergeracional e na qual o homem encontrava as condições para o livre desenvolvimento da sua personalidade, num agregado de relações líquidas, fugidias, egoístas e potencialmente conflituosas, moldada segundo a vontade arbitrária de cada um. A família deixa, assim, de ser um espaço de afirmação da pessoalidade para se transformar num domínio de realização da individualidade, o que não pode deixar de gerar a sua própria crise, correspondente a uma marginalização da sua importância na realização de funções que lhe eram tradicionalmente cometidas. Abandonada a família na sua conceção tradicional, esta deixa de ser um grupo coeso, ligado por laços invioláveis, para se reduzir a um conjunto de indivíduos que perseguem a sua própria felicidade. E com isto é o próprio direito da família que passa a estar em causa. Para tanto terão contribuído não só as modificações da estrutura social, como também a evolução no campo filosófico-jurídico: o formalismo próprio do pensamento positivismo em que desembocou o jusnaturalismo racionalista conduziu, pela necessidade de conter os excessos do nominalismo e do voluntarismo, à afirmação de direitos de personalidade que, tematizados como direito subjetivos, assentes na vontade, acabam por, se predicados na individualidade reivindicadora de uma liberdade negativa e de uma liberdade positiva dissociada de qualquer conteúdo material, poder levar à escravização do homem por si mesmo; posteriormente, no quadro da superação do próprio positivismo, assiste-se, pela complexidade do mundo atual, a tentativas várias de, por via de alterações legislativas, se imporem formas de funcionalização da família, transformando-a num campo de ensaio privilegiado para a afirmação de micro-causas. Se o triunfo do individualismo potenciou o surgimento de uma nova geração de direitos totalmente ancorados na vontade arbitrária do sujeito, entendida no sentido de desejo e aspiração, que encontravam na família um campo privilegiado de afirmação, o aproveitamento da visão individualista radical do ser humano levou a que o materialismo histórico, despojado da sua dialética luta de classes, transferisse a conflitualidade para o seio das relações humanas, subvertendo o sentido da própria família. Um certo voluntarismo político abriu as portas à consagração de novos direitos desenraizados de qualquer sentido ontológico e despojados qualquer referencial axiológico. E o poder judicial, sobretudo em instâncias com conotações políticas claras, acabou por assumir a interpretação das normas como um expediente para a consagração de novos direitos, sem embargo do sentido da juridicidade, numa redução clara da decisão judicativa a um instrumento de prossecução de uma ideologia.
4. Porque o direito não é uma pura forma, mas uma ordem regulativa que não pode deixar de fazer apelo a um fundamento axiológico que lhe permita ser justo, então haveremos de o encontrar no sentido da pessoalidade, enquanto categoria ético-axiológica. Não pode ser na mera ontologia que apenas atenta nas suas características essenciais, sem ligação à razão fundadora e criadora de todas elas, que nos comunica um quadro valorativo específico, que podemos encontrar a raiz fundamentadora do direito. Na verdade, não é o encontro do Eu com o Tu que garante o respeito cuidadoso pelo outro, no respeito pela sua dignidade, mas o encontro do Eu que, reconhecendo-se como pessoa, dotada de uma ineliminável dignidade ética, vê no Tu um semelhante igual a si, com o qual estabelece uma plena comunhão. Na compreensão da família, haveremos de pressupor o personalismo assente na pessoalidade, que se afasta de construções marxistas, mas nos encaminha para o sentido cristão da nossa civilização.
5. Resulta daqui a necessidade de o direito tutelar a família. O ser humano, entendido como pessoa, encontra no núcleo familiar o meio fundamental para o integral desenvolvimento da sua personalidade, pelo estabelecimento de laços de amor, confiança, lealdade, partilha. Além disso, é na família e através da família que a pessoa se reconhece a si mesmo, que desenvolve as suas potencialidades, que encontra a proteção necessária e os meios para a sua edução e a sua subsistência. O direito não poderia ser alheio a estes dados; e o direito civil, que coloca no centro da sua regulamentação a pessoa, não poderia deixar de derramar a sua eficácia protetiva sobre a família. Mas, se assim é, o direito não cria a família; antes a tutela. Se o direito civil se dirige à família é porque existe a necessidade de garantir, por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, o bom funcionamento da célula básica da sociedade, uma vez que tal garantirá a estabilidade da própria sociedade, que se estrutura em torno da categoria axiológica da pessoa. Nessa medida, não é possível impor soluções que, em abono da micro causas próprias do neo-marxismo, aliado a um certo liberalismo, subvertam o sentido da família e a transformem em algo que, em vez de cumprir o seu sentido social e ético que lhe é reconhecido, degrade o homem no seu hedonismo, egoísmo e individualismo.
Bibliografia:
- Conselho Pontifício para a Família, Léxico da família, Princípia, 2010
- Grégor Puppinck, A família, os direitos do homem e a vida eterna, Princípia, 2018
- Leite Campos, Eu-Tu: o amor e a família (e a comunidade) (eu-tu-eles)”, Nós. Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, 165 s.
- Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, Theologica, 2ª série, 41/1, 2006
- Fortuna e Destino
por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. A articulação entre fatum e fortuna no desenrolar dos acontecimentos humanos remonta à antiguidade clássica romana, com antecedentes na tragédia e na literatura arcaica gregas. A Fortuna personifica (no caso da respectiva deusa greco-romana) ou coisifica (no caso da famosa “roda”) o que é aleatório ou errático, fruto do acaso, do azar ou da sorte. O destino é, aparentemente, o oposto: o que é fatídico, pré-determinado, “escrito nas estrelas”, de acordo com uma qualquer vontade superior que ordena os eventos segundo um certo desígnio. A fortuna é cega; o destino “pre-vê”. No entanto, também se combinam ou coincidem: às vezes, parece haver um encadeamento quase necessário de múltiplas e minúsculas acções individuais e de erros “fatais” (aquilo a que os gregos chamavam hamartia), misturados com eventos casuais, parecendo conduzir inexoravelmente ao desfecho final, como se de uma conjugação cósmica se tratasse. Não que se invalide necessariamente o livre arbítrio: alguns personagens são responsáveis pelos seus actos. Contudo, as acções e propósitos humanos seriam fúteis, insignificantes e impotentes: o porvir estaria quase completamente fora do controlo humano.
2. Todavia, apesar de imperiosa, volúvel e caprichosa, a adorada deusa Fortuna poderia ser capturada pelos verdadeiros homens: audentis Fortuna iuvat (a fortuna favorece os audazes), como disseram Virgílio (na Eneida, pela boca de Turnus) ou Terêncio, por exemplo. Depois, já em ambiente cristão, Agostinho de Hipona (na Cidade de Deus), Boécio (na Consolação da Filosofia) e Dante (no Canto VII do “Inferno”), nomeadamente, “reconduziram” a fortuna à providência divina (embora com muitos matizes e não insignificantes variações): nada aconteceria por acaso, embora aos olhos humanos seja isso que parece; e tudo o que acontece está compreendido em Deus. No Renascimento (particularmente, em Leon Battista Alberti e Pico della Mirandolla, e já antes, em Petrarca), ante o tumulto dos tempos, e com a reconstrução da imagem clássica do mundo, dá-se uma mudança de ênfase (embora permaneça um fundo cristão): o terrível poder da fortuna volta a ser acentuado, em prejuízo da providência; e, ao mesmo tempo, é valorizado o livre arbítrio e o homem é exaltado como senhor do próprio destino. Maquiavel entronca de algum modo nesta tradição, como quando afirma que cerca de metade, ou pouco menos, do que nos acontece depende da própria virtù, e a parte restante da fortuna. Quando menos se espera, «rios caudalosos, enraivecidos, alagam planícies, destroem árvores e edifícios, arrancam terras…». Mas nada «impede que os homens, nos tempos de calma, possam tomar providências e construir muralhas e diques», para que o ímpeto das águas não seja tão devastador (O Príncipe, XXV). Mas, neste ponto, Maquiavel não é inovador. Curiosamente,o seu exemplo lembra o do «homem prudente» (Mt 7, 24-26) que «construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram e investiram os ventos contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava fundada sobre rocha».
3. A providência já foi descrita como sendo uma cristianização do fado ou destino pagão. Não será bem assim: a diferença entre os dois é semelhante à que separa o Deus bíblico dos caprichosos deuses pagãos. Em sentido cristão, a «Providência consiste nas disposições pelas quais Deus conduz, com sabedoria e amor, todas as criaturas para o seu último fim» (Catecismo da Igreja Católica, § 321). Aí, «Deus guarda e governa, pela sua Providência, tudo quanto criou, “atingindo com força dum extremo ao outro e dispondo tudo suavemente” (Sb 8, 1). Porque “tudo está nu e patente a seus olhos” (Heb 4, 13), mesmo aquilo que depende da futura acção livre das criaturas» (Dei Filius, c. 1). Isto não implica uma intervenção directa de Deus na história, mas não deixa de remeter para a discussão milenar – e para os mistérios – da conciliação entre predestinação e livre arbítrio, por um lado, e entre a omnisciência, omnipotência e benevolência divinas e a existência do mal (o velho problema de Epicuro), por outro.
4. «Você está enganado se pensa que se pode ir ou não ir a Alcácer Quibir», terá dito um político português do século XX em conversa com um colega, lamentando a exiguidade do espaço de manobra nas decisões de governo. Recorrentemente, somos assombrados quer pelos espectros de “leis de ferro” e determinismos psicológicos, sociológicos ou teológicos, físicos ou metafísicos, quer pela roleta da fortuna. Se fosse assim, os actores políticos – na sua pessoalidade – não seriam já protagonistas reais do drama político, mas um joguete ou marioneta dessas leis e processos necessários ou de forças obscuras, impessoais e aleatórias. Raymond Aron sugeriu ser possível fazer justiça, simultaneamente, quer ao “drama” quer ao “processo” da história dos assuntos humanos: à história política tradicional, baseada na liberdade e responsabilidade pessoal, por um lado; e às grandes tendências gerais, geológicas e sistémicas que tantas vezes parecem escapar ao domínio humano, por outro. A política não enfrenta uma alternativa radical entre a pura voluntariedade, por um lado, e a ocorrência casual inelutável ou a necessidade intolerável, por outro, mas admite espaço – mais ou menos apertado – para a livre agência humana: o homem é feito de herança, matéria circundante e sociedade, sim, mas também de liberdade moral; a história política apresenta padrões e regista macrotendências, a par de descontinuidades imprevisíveis, é verdade; mas é feita também de razão e virtude: das escolhas, acções, omissões e interacções livres das pessoas. E a Providência não elimina – mas acompanha – essas intervenções livres, num futuro aberto.
Bibliografia:
- FRAKES, J., The Fate of Fortune in the Early Middle Ages, Leiden: Brill, 1988
- SKINNER, Quentin, The Foundations of Modern Political Thought, Vol. 1, Cambridge: Cambridge University Press, 1978,
i
- Ideologia de Género
por Diogo Costa Gonçalves, 2024
1. Noção. Entende-se por Ideologia de Género a visão antropológica que concebe a masculinidade e a feminilidade como puras construções sociais, absolutamente independentes da realidade biológica, impostas heteronomamente ao individuo através das instituições e dos processos perpetuação de uma cultura dominante (a cultura judaico-cristã), em particular através da família, escola e da educação moral ou religiosa.
Não se confunde, por tanto, com a necessária igualdade entre homens e mulher. Tão pouco se confunde com a utilização da distinção entre sexos como critério investigação de realidades empíricas (teoria de género), desde que o substrato filosófico em que assentam tais estudos não assuma as premissas antropológicas próprias desta ideologia.
2. Do corpo-sujeito ao corpo-objeto. Na antropologia clássica, corpo foi compreendido como constitutivo da própria pessoa. A pessoa (rationalis naturae individua substantia, na famosa definição de Boethius) era compreendida a partir da sua radical unidade (unidade substancial de corpo e alma). Toda a realidade biológica era, portanto, realidade pessoal. A determinação sexual do corpo humano constituía, também ela, uma determinação da pessoa. A sexualidade, transcendendo a biologia, não era compreendida independentemente desta e menos ainda se concebia uma identidade sexual construída a pesar da biologia ou contra a biologia.
Com a modernidade, o conceito de pessoa tornou-se, paulatinamente, num puro estado subjetivo de consciência. Pessoa deixou de ser id quod est, para passar a ser entendida como id quod cogito: passou a consistir na reflexão do sujeito sobre si mesmo, sem qualquer referencial externo de objetividade.
Neste contexto, a relação com o próprio corpo alterou-se radicalmente: de um corpo-sujeito, próprio da antropologia clássica, passamos a um corpo-objeto, em que a realidade biológica é extrínseca à pessoa: o Homem possui um corpo, mas não é um corpo.
3. Sexo vs. género. Neste contexto cultural, o conceito sexo é reservado para designar a realidade biológica, extrínseca à pessoa. O conceito de género surge associado à representação psicológica, cultural e social do masculino e feminino. O sexo é-nos dado à nascença, mas em nada nos condiciona. Já o género é construído pelo sujeito, numa constante abertura e redefinição, pois «os conceitos para designar o género nunca se estabelecem de uma vez por todas e surgem em constante processo de recriação» (Robert Stoller, Sex and Gender – The Development of Masculinity and Femininity, 1968, 78). Ser masculino ou feminino é, portanto, absolutamente independente do sexo de cada um e corresponde a uma forma de autodeterminação pessoal (autodeterminação de género).
4. Estrutura ideológica. Em qualquer sistema ideológico, o ideal substitui o real. Quando a realidade empírica não se adequa à ideia, não é esta que se corrige, é a realidade que se procura manipular. No caso da ideologia de género, algumas notas merecem ser sublinhadas: (i) a ideologia de género corresponde a uma estrutura neo-marxista de pensamento, onde a luta de classes é substituída pela luta de géneros: «tal como o objetivo final da revolução socialista não era apenas a eliminação do privilégio da classe económica, mas da própria distinção de classe económica, também o objetivo final da revolução feminista deve ser, ao contrário do primeiro movimento feminista, não apenas a eliminação do privilégio masculino, mas da própria distinção de sexo: as diferenças genitais entre os seres humanos deixariam de ter importância cultural» (Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex – The case for feminist revolution, 1970, 10-11); (ii) a ideologia género vive de um reducionismo simplista: na sexualidade humana, ou tudo é cultura ou tudo é biologia; como nem tudo biologia, logo, tudo será cultura (ignorando a complexa relação entre natureza e liberdade); (iii) por fim, a ideologia de género pressupõe uma linguagem performativa: a realidade em si não existe; as coisas são como forem ditas. A linguagem constrói, portanto, a realidade: controlar a linguagem (linguagem de género) permite reconstruir a realidade social de acordo com os pressupostos antropológicos de que se parte.
5. Ativismo de género. A concretização sócio-política da ideologia de género exige uma intervenção transversal na sociedade (ativismo de género), que visa assegurar: (i) a compreensão do feminino e do masculino como produtos de um cultura hegemónica que faz crer ser natural o que é puramente cultural; (ii) a promoção de uma educação axiologicamente neutra, a fim de garantir a plena liberdade de construção da identidade de género; (iii) a abolição de todas as estruturas de perpetuação da cultura dominante.
Bibliografia:
- Alison M. Jaggar /Iris Marion Young, A Companion to Feminist Philosophy, 2000
- Angela Aparisi Miralles, “Persona y género: ideologia y realidade”, Persona y género, 2011, 19‑36
- Diogo Costa Gonçalves/Pedro Afonso/Margarida Neto, “Uma visão integral da identidade sexual humana – Ideologia de género e antropologia: o que é o Homem e o seu corpo?”, Reflexões sobre ética médica, 2019, 285‑30
- Jane Flax, Thinking Fragments – Psychoanalysis, Feminism, and Postmodernism in the Contemporary West, 1990
- Judith Butler, Gender Trouble – Feminism and the Subversion of Identity, 1990
- Igreja
por P. Gonçalo Portocarrero de Almada, 2024
1. Definição. A Igreja é o instrumento da redenção de todos os homens, “o sacramento universal da salvação, pela qual Cristo manifesta e actualiza o amor de Deus pelos homens.” “Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas acções litúrgicas. Está presente no sacrifício da missa, quer na pessoa do ministro – ‘o que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz' – quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente na sua Palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: ‘Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles’ (Mt 18,20)” (Catecismo da Igreja Católica, nº 1088).
2. Etimologia. O termo ‘Igreja’ é a tradução portuguesa do vocábulo latino ecclesia que, por sua vez, tem a sua origem no étimo grego ekklesia, que significa “assembleia dos convocados”, ou chamados. Refere, portanto, dois principais elementos: a vocação dos fiéis para a santidade e para o apostolado; e a sua união orgânica pois, embora o dom da fé seja pessoal, só pode ser vivido em comunidade, ou seja, em Igreja.
3. Igreja visível e espiritual. A Igreja é sacramento porque, embora como instituição seja uma entidade visível, é sobretudo uma realidade invisível, composta por todos aqueles que estão na graça de Deus. Para além da Igreja triunfante, da qual fazem parte todos os Anjos e Santos no Céu; também há a Igreja purgante, constituída pelas benditas almas do purgatório, que já têm garantida a salvação eterna, mas ainda estão em estado de purificação; e a Igreja militante, composta por todos os fiéis católicos, ou seja, todos os baptizados, cuja salvação ainda não está garantida.
Pela comunhão dos santos, também fazem parte da Igreja todos os que, mesmo não baptizados, a ela pertencem espiritualmente, como são os que agiram sempre com recta consciência e que, por uma ignorância invencível, desconhecem a Igreja, ou a necessidade de a ela pertencer para a salvação. Neste sentido se afirma que “extra Ecclesiam nulla salus”, ou seja, fora da Igreja não há salvação.
4. Fundamento bíblico. O termo ecclesia só consta uma vez nos Evangelhos: quando Jesus, em Cesareia de Filipe, constitui a Pedro como o alicerce sobre o qual Ele próprio constrói a Sua Igreja, à qual promete a infalibilidade, pois as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16,18). O Papa é o sinal visível da Igreja católica: “ubi Petrus, ibi Ecclesia, ibi Deus”, ou seja, “onde está Pedro, aí está a Igreja, aí está Deus”.
5. A eclesiologia paulina. Quando, já depois da sua ascensão ao Céu, Jesus Cristo apareceu a Saulo de Tarso, identifica-se com a Igreja que ele até então perseguia (At 9,3-6). A eclesiologia paulina será uma aplicação dessa imagem: da mesma forma como o corpo humano é um só, não obstante a multiplicidade dos órgãos, assim a Igreja é una na multiplicidade dos seus membros (1Cr 12,4-30).
6. A missão da Igreja é a de Cristo, realizada pela graça do Espírito Santo: a pregação do Evangelho e a administração dos Sacramentos. A Igreja também realiza, desde a sua fundação, um intenso trabalho social e cultural em todo o mundo.
7. Organização. A Igreja é, por instituição divina, hierárquica e carismática. Enquanto hierárquica, depende do Papa, que governa a Igreja em comunhão com o episcopado mundial, sendo os bispos coadjuvados pelos presbíteros. Os diáconos têm algumas funções litúrgicas, mas foram instituídos sobretudo em ordem ao serviço da caridade. As ordens religiosas e os movimentos apostólicos são de origem carismática: não fazem parte da hierarquia, mas muito contribuem para a salvação das almas e para a santidade de Igreja.
8. Notas: A Igreja católica é definida por quatro propriedades essenciais: é una na fé e no regime ou comunhão; é santa na sua origem, nos meios que utiliza e no fim que se propõe; é católica porque é universal; e apostólica, porque todas as sedes episcopais têm origem num dos doze apóstolos.
9. Conclusão: Na Igreja, o importante é Deus e a sua acção nas almas e no mundo. Todos os fiéis são chamados à santidade e ao apostolado, mas por diferentes caminhos vocacionais. Os santos são o protótipo do cristão, porque são “o sal da terra” (Mt 5,13) e “a luz do mundo” (Mt 5,14-16).
Bibliografia:
- Catecismo da Igreja Católica, Gráfica de Coimbra, 1993.
- Código de Direito Canónico, 2ª edição revista, Ed. Theologica, Braga, 1997.
- Vaticano II, Documentos Conciliares, União Gráfica, 1966.
- Dominique Le Tourneau, Les mots du christianisme, Fayard, Paris 2005
- Igualdade
por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. Aristóteles observou que as pessoas são iguais em certos aspectos e desiguais em outros. E insinuou que os problemas advêm de se assumir que elas são simplesmente iguais em todos os aspectos ou, ao invés, simplesmente desiguais. Todavia, aparentemente, sugeriu que aqueles aspectos em que as pessoas se diferenciam ou sobressaem são mais importantes do que os outros. Ao contrário, pode sustentar-se que a dignidade básica e fundamental reside não naquilo que distingue as pessoas – e as faz grandes ou pequenas, amarelas, pretas ou brancas, ricas ou pobres, mulheres ou homens… – mas naquilo que elas têm em comum e, ao mesmo tempo, de modo único: precisamente a igual natureza humana, que é – por si mesma – portadora de valor. Com efeito, cada um de nós tem um rosto diferente e um nome próprio; mas todos nós temos um rosto e um nome singulares. É difícil negar que esta ideia – a da essencial e inerente igual dignidade – seja uma “invenção” (no sentido de descoberta) cristã: só no cristianismo a desigualdade natural ou social se superou, porque aí já «não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher» (Gal 3, 28), porque todos são filhos de Deus, criados à Sua imagem (Gn. 1, 27).
2. Como se podem articular, politicamente, esta radical igualdade, as evidentes diferenças de capacidades naturais, e a universal e constante desigualdade social? Será que alguém merece (tem direito a) ter melhores condições de vida do que outrem? Alguns autores (como J. Rawls) salientaram a arbitrariedade moral da desigualdade: ela resultaria basicamente da “lotaria genética” e da “lotaria social” (neste caso, do berço e educação). O “mérito” e a meritocracia não seriam realmente merecidos: seriam fortuitos, no melhor dos casos; e, às vezes, seriam cristalização de privilégios, velhos ou novos. Entretanto, é razoável admitir que entre as razões do sucesso social haja algum lugar para o esforço moral (para esse tal “mérito”), mas só mesmo Deus será capaz de isolar o efeito desse factor. Daí, a sugestão rawlsiana de que as desigualdades apenas se justificariam na medida em que fossem vantajosas para os menos favorecidos. Ao mesmo tempo, não dispomos de nenhuma fórmula que nos indique quanta desigualdade uma sociedade saudável pode tolerar, sem que avilte a igual dignidade de todas as pessoas humanas, nem quanta igualdade uma sociedade saudável pode comportar (e financiar), sem que constitua uma camisa-de-força que sufoque a liberdade e o dinamismo económico e, consequentemente, a diminuição da pobreza.
3. Em qualquer caso, numa sociedade livre, as desigualdades serão espontâneas e inevitáveis. Elas são resultado de um jogo de liberdade, talento e sorte (o país onde nascemos e quem são os nossos pais, entre outros factores…), coisas que não é possível ou desejável suprimir (embora algumas das suas consequências possam, e devam, ser corrigidas). A igual liberdade (formal) para todos – mesmo ajustada por mecanismos institucionais visando uma igualdade real de oportunidades – nunca produzirá igual valor da liberdade para todos, porque alguns aproveitarão melhor do que outros essa liberdade e essas oportunidades. A única solução seria eliminar a liberdade, o que não parece aceitável. Por outro lado, pode aduzir-se que nossa preocupação principal neste campo, em prioridade e urgência, não deve ser a minimização das desigualdades, mas sim a minimização da pobreza absoluta (sendo que a interdependência entre as duas é discutível…) e a garantia de um “chão comum”: um mínimo de condições que permitam uma vida digna, para todos.
4. Mesmo que, em parte, seja produto da aleatoriedade referida por Rawls, a desigualdade social é, até certo ponto, benigna, enquanto expressão legítima da diversidade de personalidades e da liberdade individual. Numa perspectiva cristã, aquela “lotaria” aparente é manifestação da providência de Deus, que distribui sabiamente os Seus dons (cf. Mt 25,14-30), que de todos espera fruto, e do qual nos pedirá contas. Daí que, sobre o talento e fortuna daqueles que os auferem – sobre esses dons –, impende uma espécie de ónus ou hipoteca social: o usufruto dessas vantagens estará onerado por uma correlativa obrigação (moral) de serviço, pelo dever de procurar que esses dons redundem também em benefício dos menos dotados ou afortunados.
5. No seu espectro global, é muito difícil medir as desigualdades e descobrir se têm aumentado ou não, convergido ou divergido. (Trata-se de uma questão empírica: as estimativas variam consoante os métodos de estimação e os períodos de referência; por outro lado, podem referir-se a desigualdades na repartição do rendimento – e, dentro deste, ao rendimento bruto ou ao rendimento disponível –, ou da riqueza, ou do consumo.) De qualquer modo, a concentração extrema e as desigualdades excessivas de riqueza, saúde e educação – quer entre países quer dentro de cada país – são problemáticas, embora secundariamente face a eliminação da pobreza absoluta. Frequentemente, são percebidas como obscenas, injustas e indignas. Debilitam a solidariedade cívica e política. Suscitam ressentimentos potencialmente perigosos, porquanto reflectem uma real desigualdade de atenção, “reconhecimento” e respeito. Promovem uma certa segregação residencial e educacional. E geram também indesejáveis desigualdades de acesso à justiça e de poder social e político.
Bibliografia:
- Angus Deaton, The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality, Princeton University Press, 2015
- Deirdre Mccloskey, Why Liberalism Works: How True Liberal Values Produce a Freer, More Equal, Prosperous World for All, Yale University Press, 2019
- Thomas Michael Scanlon, Why Does Inequality Matter?, Oxford University Press, 2018
- Iniciativa Económica Privada
por Inês Neves, 2024
1. A iniciativa económica privada é um bem jusfundamental, garantido e protegido, entre nós, pelo direito fundamental consagrado no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa de 1976 (‘CRP’). Enquanto direito fundamental económico clássico, a liberdade de iniciativa económica privada ou liberdade de empresa afirma-se - logo no constitucionalismo liberal português, e ainda que então sob as vestes de “liberdade de comércio ou indústria” - pela sua história e constância (indícios da respetiva natureza e valor jusfundamental). Através de um conteúdo plúrimo e rico, a liberdade de iniciativa económica privada logra assegurar aos privados um espaço de liberdade (dimensão negativa) e uma garantia justiciável, qualificada e centralizada, de iniciativa e de atuação no mercado (dimensão positiva).
2. Pese embora também se lhe adequem as vestes de garantia institucional, de princípio fundamental da organização económica, e de elemento caracterizante do modelo económico acarinhado pela Constituição portuguesa - uma economia social de mercado -, a sua localização sistemática e, acima de tudo, os valores que a suportam - autonomia, liberdade, igualdade e solidariedade -, atestam e fundam a sua jusfundamentalidade, i.e., a sua natureza de verdadeiro direito fundamental, não hipotecado nem instrumentalizado a quaisquer outros (direitos, interesses, e, muito menos, políticas estaduais).
3. A iniciativa económica privada traduz a escolha e o exercício autónomo por um privado (pessoa singular ou coletiva, isoladamente ou em conjunto), de determinada(s) atividade(s) económica(s), consistente(s) na produção-oferta de bens e/ou na prestação de serviços em determinado(s) mercado(s), em termos minimamente organizados e estáveis, assente(s) ou não num substrato des-subjetivado ou em estabelecimento com valor a se no mercado. Caracteriza a iniciativa económica privada o ter como fim a satisfação de necessidades que, começando por ser as do próprio titular (e, portanto, egoísticas), não deixam, também e simultaneamente (desde logo pela extroversão e destinação ao mercado suas prototípicas), de se afirmar como garantia de prosperidade económica e da efetivação da democracia económica, social e cultural.
4. O justificativo para uma sujeição mais recorrente, e quiçá mais intensa, a cenários de conflito e/ou de colisão, na origem do recuo da liberdade enquanto direito prima facie, poderá, porventura, encontrar-se no facto de se estar perante uma liberdade referencial ou relacional. Não é um tal recuo (do direito em potência) sintomático de menor valor axiológico nem, muito menos, credencial para um discurso de subordinação, funcionalização ou instrumentalização da liberdade de empresa a outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. A extroversão é, pelo contrário, manifestação do specialis e da importância da iniciativa económica privada em sociedade, não obscurecendo a sua jusfundamentalidade.
5. Enquanto direito-feixe (‘Bündelungsgrundrecht’), a liberdade de iniciativa económica privada apresenta-se-nos como um quid pluris com um conteúdo a se. A ele se reconduzem um conjunto de faculdades jusfundamentais, entre as quais a liberdade de acesso, de atuação e de expansão no mercado, e a liberdade de organização, direção e gestão da empresa, todas vinculando o(s) outro(s) e, em particular, o Estado (lato sensu), a quem, além de vedada a ingerência arbitrária e a apropriação indevida de um espaço naturalmente reservado aos privados, se acometem deveres positivos de garantia e de proteção, materializados em enquadramentos normativos garantes e potenciadores da atividade económico-empresarial privada.
6. A iniciativa económica privada não é exclusivo pátrio. Além do seu reconhecimento e tutela em vários textos constitucionais nacionais, é objeto de garantia clara nos sistemas de proteção de direitos da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (‘CEDH’) e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (‘CDF’), onde conhece, aliás, positivação expressa (cf. artigo 16.º CDF). Seja como direito fundamental ancorado nos valores da liberdade, da democracia e do Estado de Direito, seja como direito instrumental ou veículo de prosperidade económica e riqueza, ou condição de efetividade dos demais direitos e liberdades, seja, ainda, como parte da herança comum das tradições políticas dos vários Estados, eis atestado o consenso em torno da sua natureza e força jusfundamental.
Bibliografia:
- João Pacheco de Amorim, “A liberdade de empresa” in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008
- Antonio Cidoncha Martín, La libertad de empresa en el marco de la economía de mercado: el artículo 38 de la Constitución Española, Madrid: Facultad de Derecho (Departamento de Derecho) - Universidad Autónoma de Madrid, 2004
- Everson, Michelle/Gonçalves, Rui Correia, “Article 16 - Freedom to Conduct a Business” in Peers, Steve et al. (coord.) The EU Charter of Fundamental Rights: A Commentary, Oxford: Hart/Beck, 2021
García Vitoria, Ignacio La libertad de empresa: ¿un terrible derecho?, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008 - Fritz Ossenbühl, “Las libertades del empresario según la Ley Fundamental de Bonn”, Revista Española de Derecho Constitucional, 11(32): 9-44, 1991
- Integração Europeia
por Inês Neves, 2024
1. Numa aceção lata, poderá traduzir e abarcar as diferentes experiências de integração no continente europeu. É, porém, aqui mobilizada para caracterizar o processo único, gradual-evolutivo, histórico- político, da dinâmica de institucionalização regional na origem da União Europeia - uma entidade política sui generis e uma comunidade de direito não diretamente recondutível aos postulados prototípicos da intergovernamentalidade ou da estatalidade.
2. Na originalidade da integração europeia está a simbiose. Por um lado, é, ainda, cooperação estreita entre Estados-Membros, visível, desde logo, nas instituições intergovernamentais - o Conselho Europeu e o Conselho da União Europeia -, e no poder que, pese embora se procure impor como primário, é inarredavelmente derivado e limitado pela voluntas e pela atribuição, acompanhadas da subsidiariedade. Por outro lado, visa a prossecução comum de objetivos, não já económicos (apenas), mas também políticos, jurídicos e sociais, irrompendo e impregnando os ordenamentos político-jurídicos, atuados por instituições supranacionais independentes (a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça da União Europeia ‘TJUE’, sem esquecer os órgãos, os organismos e as agências, e as novas species).
3. Na origem do projeto europeu está a 2.ª Guerra Mundial, o seu pós, e a busca pela paz, requisito kantiano de prosperidade económica ou, quiçá, consequência desta, se recordada a lógica de Montesquieu de uma cooperação-interdependência económica como pré-condição de paz (prosperidade e estabilidade).
4. O aprofundamento e os alargamentos que acompanham a integração europeia e a sucessão dos Tratados, - a saber, o Tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951); os Tratados de Roma (1957); o Tratado de Bruxelas (1965); o Ato Único Europeu (1986); o Tratado de Maastricht (1992); o Tratado de Amesterdão (1997); o Tratado de Nice (2001) e o Tratado de Lisboa (2007) -, concretizam-se nos planos i) horizontal, com o alargamento dos objetivos, das competências e das políticas, e ii) vertical, com a delegação de autoridade (ou soberania) pelos Estados-Membros e a consequente supranacionalização das instituições europeias.
5. Não se verifica, porém, um qualquer incrementalismo acético, em estado puro, unidirecional ou irreversível. Pelo contrário, há recuos, diferenciação e desintegração, além de crises sucessivas: da euroesclerose da cadeira vazia à crise da dívida soberana, seguida de uma pandemia e de uma guerra, sempre acompanhadas pelos estruturais, como o euroceticismo.
6. A questão da participação de Portugal na integração europeia é anterior ao pedido de adesão (em 1977), e à respetiva formalização (em 1986). O Atlanticismo, o ceticismo da diluição da soberania nacional, e as condicionantes de um país pequeno, periférico, de trajetória histórica e regime político desalinhados com o projeto europeu, viriam a soçobrar perante as promessas da democracia liberal, da prosperidade económica e da modernização da sociedade, somadas ao risco da marginalização na sombra dos grandes espaços da cena internacional. A relação com o projeto europeu é, também ela, evolutiva. Começa com a reabilitação - com a construção dos pilares de uma economia de mercado -, continuando, depois, com a afirmação do bom aluno, capaz de capitalizar as relações privilegiadas com os países de língua portuguesa, e jogar, assim, a cartada lusófona, qual contrapeso da sua dependência em potência.
7. São várias as teorias explicativas (do futuro) da União, como objeto político não identificado, como entidade política sui generis ou além do Estado, como federação soft, ou, e em todo o caso, como realidade político-jurídica contestada. Desde o neofuncionalismo, pai do spillover de Schuman e de Monnet, ao intergovernamentalismo liberal, sem esquecer o federalismo dos Estados Unidos da Europa, todas logram explicar o que são apenas dimensões do fenómeno, condenadas à interdependência na busca pela completude.
8. A aceitação da União pelos Estados e pelos cidadãos (também eles sujeitos da nova comunidade de direito) não depende nem pressupõe a estadualidade. É, antes, dependência da perspetivação como Politeia. E se a atuação pretoriana do TJUE é jurísgena de uma nova ordem, assente no primado, no efeito direto e na aplicabilidade direta, não deixará aquela de ser temperada pela subsidiariedade, pela proporcionalidade e pela identidade constitucional. Não já, certamente, como contra-poderes em choque, mas, e antes, como motores de um processo de retroalimentação recíproca, de downloading e de uploading, na origem da confluência e da identidade, quais respostas necessárias à policrise.
Bibliografia:
- Graça Enes Ferreira,Unidade e Diferenciação no Direito da União Europeia - A diferenciação como um princípio estruturante do sistema jurídico da União, Coimbra: Almedina, 2017
- Laura Ferreira-Pereira, “Portugal in the European Union: Chronicling a Transformative Journey” in Fernandes, Jorge et al. (eds.) The Oxford Handbook of Portuguese Politics, Oxford, 2022
- Vital Moreira,“Respublica” Europeia - Estudos de Direito Constitucional da União Europeia, Coimbra: Coimbra Editora, 2014
- Aurelien Portuese, “European Integration” in Marciano, Alain/Ramello, Giovanni Battista (eds.)Encyclopedia of Law and Economics, Nova Iorque: Springer, 2021
- Jo Shaw, “European Integration” in Garben, Sacha/Gormley, Laurence (eds.)The Oxford Encylopedia of EU Law [OEEUL], Oxford, 2022
- Inteligência Artificial
por Mafalda Barbosa, 2024
1. A inteligência artificial pode, numa perspetiva simplificadora, ser concebida como a capacidade que sistemas computacionais têm de simular a inteligência humana, aprendendo pelos seus próprios meios e realizando determinadas atividades forma autónoma. Os algoritmos inteligentes, capazes de processar, massivamente e a uma velocidade avassaladora, enormes quantidades de dados, através dos quais constroem o seu próprio conhecimento, que depois utilizam para se reconfigurarem, podendo chegar a reescrever a sua própria programação, oferecem, desta forma, desempenhos outrora inimagináveis, anunciam benefícios consideráveis quer nas atividades do quotidiano, quer em domínios específicos: veículos autónomos, motores de pesquisa, sistemas de diagnóstico médico, robots cirúrgicos, sistemas preditivos nos mais variados domínios, sistemas de decisão automática, aplicações múltiplas são alguns dos exemplos com que nos confrontamos já no presente. As vantagens destes sistemas inteligentes não apagam os riscos que lhes andam associados: riscos que se repercutem quer ao nível da intromissão nos dados pessoais, de que a inteligência artificial se alimenta, com a possibilidade de criação de situações de manipulação informativa, de condicionamento decisório e de discriminação, mas também de riscos de ocorrência de lesões, por os comportamentos dos algoritmos se tornarem cada vez mais imprevisíveis e incontroláveis.
2. Acresce a tudo isto o anúncio utópico ou distópico, consoante a perspetiva, de uma alteração do próprio homem, que não pode ser senão compreendida como uma degradação do mesmo. Na verdade, não raras são as vozes que anunciam, por força da miscigenação entre a tecnologia e a biologia, a transformação do homem num ciborgue ou a sua vivência como um avatar, operando-se uma metensomatose, isto é, “a passagem (meta-) de um corpo (soma) – no caso vertente, o nosso invólucro biológico – para (en-)outro, o computador” [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade. Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018, 15]. O ser humano, pós-humano ou transumano, conheceria um novo período, marcado pela superação das suas limitações. Desde logo, encontramos os que, na prática ou em teoria, propõem a implementação de componentes tecnológicas no corpo humano (v.g. implantação de sensores subcutâneos (chips), que medem constantemente a temperatura corporal ou os níveis de glicose; colocação de implantes com íman, para se conseguirem abrir portas sem utilização de chaves; injeções de ADN, usando a tecnologia de edição de genes CRISPR). Por outro lado, no momento em que se atingir um nível de inteligência artificial forte, existirá uma nova forma de o homem se alimentar, o sistema digestivo será redesenhado, o sangue será reprogramado, dispensar-se-á o coração, pela utilização de nano partículas que o tornam despiciendo na sua função de bombear o sangue, poderá ser redesenhado o cérebro humano, designadamente através da introdução de implantes para substituir retinas danificadas, para resolver problemas cerebrais, ou de sensores que garantam a mobilidade de pessoas paralisadas, chips que viabilizem a leitura de pensamentos entre humanos (Ray Kurzweil, Singularity is near, When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006). Atingir-se-á o homem versão 3.0, com a possibilidade de mudança do corpo, pela introdução de MNT-based fabrications, que viabilizarão a alteração rápida da manifestação física pela vontade. Ademais, alguns autores profetizam o surgimento de dispositivos tecnológicos superinteligentes. A evolução culminaria com a possibilidade de se transferir a mente humana para um computador. Para tanto, seria necessário fazer um scan detalhado de um particular cérebro humano, reconstruindo a partir daí o network neuronal que o cérebro implementou e combinando isso com os modelos computacionais de diferentes tipos de neurónios, o que seria potenciado pela computação quântica. A mente humana, com a memória e a personalidade intactas, poderia ser transferida para um computador, no qual passaria a existir como um software, podendo habitar o corpo de um robot, ou no qual existiria como um avatar [Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005 12].
3. Estão aqui em causa duas perspetivas diversas, que convergem no otimismo em relação ao futuro da inteligência artificial. Uma primeira perspetiva coloca o acento tónico na ideia de que surgiria um novo homem, resultado da miscigenação entre homem e máquina, ou pela introdução de componentes humanas na máquina ou pela implantação de componentes tecnológicas nos corpos humanos; uma segunda perspetiva que afirma a existência futura de dispositivos super inteligentes que, adquirindo consciência, passariam a agir por si mesmos e para si mesmos e, subsequentemente, disseminar-se-iam, dotando-se de meios mais poderosos que levariam à destruição do homem, sucedendo-lhe na grande cadeia de evolução. [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade, 26 s.]
4. São inúmeras as questões ético-filosóficos que se suscitam. Não só a singularidade tecnológica conduz a um dualismo radical próprio do pensamento gnóstico e do materialismo positivista, incompatível com a adequada compreensão do homem enquanto pessoa, na sua unicidade transcendente [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade , 17 s.], como somos confrontados com a questão de saber onde se situa o limite da intervenção sobre o corpo humano, ou, de uma forma mais ampla, qual o limite da própria humanidade. Por outro lado, se o anúncio profético de uma pós-humanidade que, ou por empobrecimento da condição humana, ou por criação de uma espécie de super-humanos que colocariam numa posição de inferioridade todos aqueles que não pudessem ter acesso às novas tecnologias, levando à extinção da própria humanidade, chocaria com o sentido axiológico da pessoalidade em que radicam os ordenamentos jurídicos e se revela (ou parece revelar) utópico, porquanto a inteligência não se reduza a um processo físico de produção de sinapses, antes sendo entretecida por múltiplas dimensões que não são vivenciáveis na ausência da dimensão espiritual do homem, no tempo presente parecem já concretizar-se ameaças próprias da literatura distópica.
5. Entre esses problemas contam-se: o potencial de intromissão na esfera de privacidade de cada um; a possibilidade de, com base nas decisões algorítmicas, o homem ser colocado numa caixa de ressonância; o risco de manipulação informativa; o risco de discriminação (em sentido estrito ou em sentido económico-comercial, fruto ou do enviesamento originário do algoritmo ou da incapacidade que ele denota de compreender a dimensão semântica dos signos que mobiliza) ou mesmo de manipulação emocional; o risco de produção de deep fake news e de, com isso, se agravar um fenómeno de desinformação. Acresce que os diversos sistemas autónomos podem gerar lesões e, consequentemente, danos, de natureza patrimonial ou não patrimonial, tornando-se particularmente difícil garantir o ressarcimento dos mesmos, quer pela dificuldade de prova da culpa do programador ou do utilizador, quer pela dificuldade de estabelecimento de um nexo de causalidade, tanto mais que os sistemas autónomos operam como verdadeiros ecossistemas. O problema, aliás, agrava-se pela necessária interferência dos dados no processo de aprendizagem e tomada de decisão do algoritmo. Na verdade, se a simples corrupção de dados é suficiente para determinar um resultado errado, os problemas agravam-se a partir do momento em que o sistema autónomo pode ser alimentado por dados de segunda geração, criados pelos próprios algoritmos, que podem, atentas as limitações do seu funcionamento, baseado exclusivamente no estabelecimento de correlações estatísticas, não identificáveis com relações de causalidade, eles mesmos conter deturpações.
6. Torna-se, por isso, fundamental disciplinar a IA, existindo diversos modelos para tanto, entre os quais destacamos o modelo regulatória aprovado ao nível europeu, com o IA Act. Mas torna-se também fundamental consciencializar o ser humano para a necessidade de desenvolver as suas capacidades especificamente humanas que, por mais desenvolvida que seja a inteligência artificial, jamais estarão ao alcance de algoritmos autónomos. Escapar-lhes-á sempre a dimensão de pensamento crítico, de criatividade, de ajuizamento ético e a capacidade de se autotranscender.
Bibliografia:
- Mafalda Miranda Barbosa, Inteligência artificial. Entre a utopia e a distopia. Alguns problemas jurídicos, Gestlegal, 2021
- Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005 12
- Pedro Domingos, A Revolução do Algoritmo Mestre, Manuscrito Editora, 2017
- Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade, Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018, 17 s.
- Ray Kurzweil, Singularity is near, When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006
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- Justiça
por Manuel Carneiro da Frada, 2024
Segundo uma noção clássica, possivelmente a mais consensual de todas, a justiça corresponde ao acto (e à virtude) ou ao efeito de dar a cada um aquilo que é seu.
Expressão da justiça é o imperativo de tratar de modo igual aquilo que é igual e de modo diferente o que é (essencialmente) diferente, segundo a medida da diferença (traduzidos simbolicamente pelo prumo da balança, que manifesta também a proporcionalidade do “meio” entre dois extremos). No que vai implicado o carácter analógico do Direito enquanto “ordem de justiça”, a postular, não uma igualdade de tipo formal, mas a igualdade como relação de adequação à “natureza das coisas”.
Há, por certo, diversas concepções de justiça. Posições acentuadamente relativistas – negadoras da possibilidade de produzir asserções sobre o que a justiça implica com pretensão de verdade - conduzem fatalmente a uma desvalorização da pergunta acerca da justiça perante, no plano social, (i) as orientações reitoras da política, tidas então por definitivas e expressas nas determinações da potestas do legislador (positivismo jurídico-normativista) ou face (ii) ao que (meramente) na sociedade se reconhece ou afirma ser justo (positivismo sociológico). Em ambos os casos, a questão da justiça é, em último termo, relegada para o plano da pura subjectividade e do “metajurídico” (propiciando capturas ideológico-políticas).
No contexto relativista da actualidade, estão especialmente em voga concepções procedimentalistas, consequencialistas, utilitaristas, consensualistas ou libertárias da justiça.
Enquanto as primeiras vêem a justiça como termo meramente formal (independente de conteúdos) da observância de um mero procedimento normativamente estabelecido, as demais procuram já uma perspectiva material da justiça. Todas elas captam exigências da justiça, mas são, em si mesmas, redutoras. Ou porque a medem apenas pelas consequências sociais que se geram e/ou a cingem ao que é economicamente útil ao bem-estar social geral (ainda que sacrificando, em seu nome, sem limites, o que pode ser elementarmente devido a alguns ou a muitos), ou porque a aprisionam aos entendimentos política ou sociologicamente dominantes (expondo a sociedade e os indivíduos aos abusos e totalitarismos das maiorias, tragicamente comprovados por muitas ideologizações da justiça ao longo da história), ou porque, desligando a autonomia da pessoa do seu sentido responsabilizante, não explica nem dá qualquer critério para a forma de harmonizar a liberdade de todos entre si, resolvendo os conflitos de liberdades.
Embora relevantes, a justiça transcende, assim, essas concepções. De harmonia com um entendimento generalizado e comprovado ao longo da história, constitui um referente objectivo, racionalmente acessível, invocável por todos e de que todas sociedades, afinal, carecem.
O que é devido e pode ser exigido em nome da justiça é constituído por uma pluralidade de bens para os mais variados fins humanos. No seu cerne está, portanto, a dignidade da pessoa humana e o que se torna necessário à sua realização em cada tempo e lugar: é justo aquilo que serve a dignidade da pessoa, na sua circunstância concreta. Só uma concepção não relativista, nem subjectivista da dignidade humana confere um conteúdo objectivo à justiça, susceptível de possibilitar a crítica e impulsionar e mover os sujeitos, assim como a comunidade em que se inserem, em direcção a ela. A consideração da pessoa humana enquanto ser social conduz a uma conciliação entre as exigências do bem individual e o que constitui o bem comum de todos (sendo, portanto, incompatíveis com a justiça, quer o individualismo, quer o colectivismo totalitário). Expressando as exigências da razão prática num contexto de alteridade (isto é, de diversidade dos sujeitos) e de exterioridade (com autonomia, que não separação, da regra moral), ela integra-se na virtude da prudência, como saber ou arte do justo.
Tradicionalmente distingue-se entre a justiça distributiva e a justiça comutativa. Esta última determina o que pertence, numa relação horizontal de igualdade entre os indivíduos, a cada um de acordo com a equivalência de prestações ou de reciprocidade, sendo a justiça correctiva uma sua modalidade particular destinada a repor a igualdade perturbada. Diversamente, a justiça distributiva reparte os bens comuns e os sacrifícios entre todos os membros de uma comunidade (em função, vg., da necessidade, do mérito, do esforço, da aptidão). A igualdade implicada opera dentro dessa comunidade política, no âmbito de uma relação vertical de autoridade e sujeição entre o Estado e os cidadãos, vedando a discriminação infundada entre estes. A justiça legal será, por sua vez, aquela que corporiza as obrigações que os sujeitos têm para com a comunidade em que se inserem (por exemplo, de pagar impostos) enquanto contribuição para o bem comum.
Distingue-se também a justiça natural e a justiça positiva (ou legal positiva), consoante tem o seu fundamento na natureza (das coisas) ou na potestas do legislador. Contrapõe-se, por sua vez, com frequência, a justiça à equidade, que visa uma justiça extralegal, superando ou corrigindo as eventuais deficiências ou insuficiências da lei.
Fala-se ainda da justiça para significar a função jurisdicional e, mais amplamente, todo o sistema estadual destinado a assegurá-la.
A relação entre o Direito e a Justiça é complexa, sendo debatidos os seus termos. Independentemente da dimensão que cabe à Justiça numa noção inclusiva do Direito, os dois conceitos são correlativos (tal qual se encontra profundamente implantado na consciência humana e na experiência histórica). Ao primeiro interessa a objectividade do justo (prescindindo das motivações do sujeito, e ainda que a regra jurídica possa expressar, igualmente, uma exigência moral), integrando também a dimensão da segurança (e, ainda, para alguns, um juízo de adequação/oportunidade). A ordem jurídica corresponde, ou incorpora em si, uma ordo iustitiae. O Estado de Direito deverá ser, em conformidade, um estado de justiça.
Bibliografia
- António Castanheira Neves – «Justiça e Direito», in Digesta/Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, I, Coimbra, 1995, 241 ss
- Artur Kaufmann - Rechtsphilosophie, München, 1997, 152 ss
- Tomás de Aquino – Tratado da Justiça (Summa Theologica), qq. 57-122
- Mário Emílio Bigotte Chorão – “Justiça”, in Enciclopédia Polis
- Michael J. Sandel – Justiça/Fazemos o que devemos?, 2.ª ed., Lisboa, 2011
- Franz Bydlinski – Der Begriff des Rechts, Wien, 2015
- Roberto Alexy – Law´s Ideal Dimension, Oxford, 2020
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- Laicismo
por P. Gonçalo Portocarrera de Almada, 2024
1. Definição. A palavra leigo tem origem grega: procede do termo ‘laos’, que significa povo. Neste sentido, o leigo é aquele que pertence ao povo de Deus, ou seja, o fiel cristão. Também se chama leigo ao que não recebeu nenhum grau do Sacramento da Ordem. Neste segundo sentido, tanto são leigos os fiéis que vivem no meio do mundo, geralmente em família e realizando algum trabalho profissional, como os religiosos que não receberam ordens sagradas, os irmãos leigos. Numa terceira acepção, são leigos, propriamente ditos, os fiéis católicos não ordenados nem membros de nenhuma ordem religiosa ou instituição similar.
2. Leigos e laicos, laicado e laicismo. Na língua portuguesa distinguem-se dois termos que, embora com a mesma origem etimológica, têm, no entanto, diferentes significados. Se leigo é, como se disse, o fiel cristão que não recebeu nenhum grau do Sacramento da Ordem, nem é religioso, o laico é, pelo contrário, o cidadão que não professa nenhuma religião e defende a total separação entre a Igreja e o Estado. Esta distinção entre leigos e laicos tem correspondência nos substantivos colectivos ‘laicado’, o conjunto dos leigos que são fiéis da Igreja; e ‘laicismo’, a ideologia que defende a total separação entre o Estado e as religiões.
3. As ordens espiritual e temporal. Nas primitivas organizações políticas, o titular do poder temporal era também titular do poder sagrado. Os imperadores romanos eram também máximos pontífices e podiam ser divinizados. Em Israel, o povo eleito, embora por vezes se distinguisse o sacerdote, ou profeta, do rei, também o monarca era escolhido por Deus – assim aconteceu com Saúl e David – e, como tal, ungido. Devia governar tendo em conta a protecção divina: David, por ter feito um recenseamento do seu povo, atitude que expressava desconfiança em relação a Deus, incorreu em falta.
4. O messianismo judaico. No princípio desta era, Israel vivia na expectativa do Messias. A sua vinda era muito necessária, pois o povo eleito, ao ser convertido numa mera província do império romano, tinha perdido a sua independência e liberdade. Embora conservassem algumas das suas instituições civis e religiosas, tinham que se submeter à autoridade romana militar e pagar impostos. O Messias era desejado, como sendo o chefe político e militar que, supostamente, iria libertar Israel do humilhante jugo estrangeiro.
5. Cristo e o reino de Israel. Embora em Cristo se tenham cumprido as profecias messiânicas – nasceu da linhagem do Rei David, em Belém, de uma mãe virgem, etc. – não correspondeu à expectativa política de alguns dos judeus do seu tempo. Várias vezes as multidões o quiseram proclamar rei, mas nunca aceitou essa investidura popular, nem sequer na sua entrada triunfal em Jerusalém, por ocasião da Páscoa, nas vésperas da sua paixão e morte. Também os seus apóstolos partilhavam essa ambição política: dois deles pedirem a Jesus lugares importantes no seu reino, e vários esperavam que restaurasse o Reino de Israel.
6. Jesus Cristo foi falsamente acusado pelos fariseus de se intitular rei dos Judeus, título que foi o da sua condenação à morte. Diante de Pilatos, Jesus afirma que é rei, mas o seu reino não é deste mundo. Quando, em relação ao tributo, afirmou “dai a César o que é de César, e a Deus que é de Deus” (Mt 22,21), não disse que o que é temporal não depende de Deus, pois ele próprio disse a Pilatos que não teria nenhum poder se o mesmo não lhe tivesse sido dado do alto (Jo 19,11), mas que há uma relativa autonomia do que é temporal, embora tudo dependa, em última instância, do Criador.
7. Laicismo e relações entre a Igreja e o Estado. Enquanto o laicismo propugna uma separação absoluta da Igreja e do Estado, a Doutrina Social da Igreja advoga uma relação de respeito mútuo e de colaboração, até porque se o Estado pode ser laico, a sociedade o não é, pois todos os homens são naturalmente religiosos, e o bem comum dos cidadãos inclui também o seu bem espiritual. O laicismo está conotado com ideologias anticlericais, como o liberalismo radical e todos os totalitarismos, por razão da sua pretensão totalitária e incompreensão da liberdade religiosa.
Bibliografia:
- Catecismo da Igreja Católica, Gráfica de Coimbra, 1993.
- Código de Direito Canónico, 2ª edição revista, Ed. Theologica, Braga 1997.
- Vaticano II, Documentos Conciliares, União Gráfica, 1966.
- Dominique Le Tourneau, Les mots du christianisme, Fayard, Paris 2005.
- Lei Natural
por Ibsen Noronha, 2024
1. A acepção de Lei Natural pode ser vislumbrada na Filosofia Grega, no Direito Romano, assim como na Revelação Cristã. Desta tríade ressalta o fundamento cultural da chamada Civilização Cristã.
No mundo grego a Lei Natural prevalece claramente sobre a vontade humana. Aquilo que é por natureza – phýsis – não se submete à volição. A natureza é princípio e causa de tudo o que existe, sendo ainda o princípio e o fim do movimento. A realização plena do ser humano na sociedade vincula-se à concepção do Homem como ser político, e sua plena realização está condicionada à própria natureza que o engendra, ou seja, à sociabilidade, à politicidade, à autoridade, ao relacionamento. Reger-se sob o signo da sua própria natureza indica estar sob o governo da razão, o que se traduz no âmbito social como estar sob o governo das leis, que devem ser a razão sem paixão.
Dentre as virtudes romanas pode-se ressaltar o amor pela ordem jurídica, tendo sido o ius romanum a criação mais nobre do espírito romano. E o pensamento grego em muito contribuiu para o florescimento da Iurisprudentia. O estoicismo afirmou que a ordem racional do universo dirige tanto a vida do Homem quanto da comunidade. A Justiça será, então, a própria ação divina sobre a comunidade. A lei que se inspira na razão divina é a lei natural da comunidade humana. A máxima expressão desta lei foi formulada por Cícero:
A verdadeira lei é a reta razão em harmonia com a natureza, difundida em todos os seres, imutável e sempiterna, que, ordenando, nos chama a cumprir o nosso dever, e, proibindo, nos aparta da injustiça… Não é justo alterar esta lei, nem é lícito derrogá-la em parte, nem abrogá-la em seu todo. Não podemos ser dispensados da sua obediência, nem pelo Senado, nem pelo povo… Quem não obedece esta lei foge de si mesmo e nega a natureza humana, e, por isso mesmo, sofrerá as maiores penas ainda que tenha escapado das outras que consideramos suplício (De republica, III, 22).
Uma passagem paulina fundou a concepção cristã de Lei Natural. O apóstolo teve eminente importância para a cultura do Ocidente. Sendo Doutor da Lei, possuía profundos e sólidos conhecimentos das Escrituras. Também era cidadão romano e conhecia bem o grego. Sua elevada cultura e actividade deu forma a uma cultura cristã com raízes profundas. Uma passagem da Epístola aos Romanos (II, 14-16) foi considerada fundamento transcendente do Direito Natural Cristão:
Quando então os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são Lei; eles mostram que a obra da Lei gravada nos seus corações, dando disso testemunho sua consciência, e seus pensamentos, que alternadamente se acusam ou defendem.
2. O tomismo (Para as concepções tomistas ver as 66 questões, LVII-XCCII dedicadas à Justiça na Segunda Parte da Summa) irá consagrar a concepção tradicional de lei Natural: participação da Lex Aeterna pela criatura racional. E na disposição hierárquica apresentada pelo Aquinate existe ainda a Lex Humanae, definida como uma ordem constituída pela razão em vista do bem comum, promulgada por aquele que governa uma comunidade. Evidente é que uma lei humana que se oponha à lei natural não será verdadeira lei, mas, isto sim, corruptio legis.
Referências bibliográficas:
- IBSEN NORONHA, Lições de História da Cultura Jurídica, Caminhos Romanos, Coimbra, 2024.
- SANTO TOMÀS de AQUINO, Tratado da Lei, Resjuridica, Porto, 1992.
- WILSON COIMBRA LENKE, A Lei e sua ordem a Deus segundo Santo Tomás de Aquino, Contra Errores, São Paulo, 2024.
- Lei Positiva
por Ibsen Noronha, 2024
1. Importa distinguir lei positiva de positivismo jurídico. Este sempre existiu enquanto atitude mental, como podemos observar, por exemplo, na postura do rei Creonte expressa por Sófocles no século VI a.C., na sua celebrada tragédia Antígona. Contudo, esta concepção acerca do Direito somente foi sistematizada no século XIX. Em suma, são consideradas nesta percepção da realidade jurídica, resumidamente, quatro características: 1. O conceito de Direito está desvinculado do justo e somente é visto como fruto da vontade do legislador. Sua validade se manifesta por critérios de competência e eficácia; 2. O método utilizado é o da aplicação da norma geral e abstrata ao caso concreto; 3. A fonte do Direito identifica-se com a lei; 4. No que respeita à epistemologia é radicalmente cortado e eliminado o vínculo do Direito com a ética, a moral e a metafísica.
O auge do positivismo jurídico foi alcançado pelo normativismo kelseniano. A Justiça foi, então, concebida como um ideal irracional (O Problema da Justiça, São Paulo, 1993, pp. 65-66) e o Direito tornou-se pura imanência. Estado e Direito se identificam, sendo o Direito uma construção coercitiva da conduta. A normatividade torna-se a legitimação jurídica absoluta, princípio e fim do sistema.
2. A lei positiva é a lei escrita, o direito posto. Os romanos a chamavam ius scriptum, em contraposição ao costume – ius non scriptum. Exemplo histórico por excelência de lei positivada está consubstanciada na lei mosaica, em especial nos Dez Mandamentos. Tal positivação é considerada, contudo, uma Revelação.
Numa acepção moderna a lei positiva seria o comando imposto pelo legislador. O contratualismo e a elucubração cerebrina da vontade geral são as principais fontes da concepção hodierna de lei positiva. Associada à construção positivista em geral, e do positivismo jurídico, em especial, nasce contemporaneamente uma visão totalitária da lei positiva que se entende quase como uma possibilidade ilimitada de regulação da vida social. Já os romanos desconfiavam de uma sociedade que necessitava imperiosamente de leis positivas para a sua subsistência. Corruptissima re publica plurimae leges, ou, em outra versão, Corruptissima republica plurimae leges, é a máxima latina forjada no século I da nossa era, pelo historiador e homem público romano Tácito (Anais, III, 27), para afirmar com acuidade que a torrente legislativa revela um Estado corrompido. A república está enferma pela queda moral dos seus membros e procura obviar a decadência produzindo leis que, em última análise, são apenas um paliativo.
3. A lei positiva pode ser útil na medida em que estiver de acordo com a lei natural. O estabelecimento de leis tem como fim beneficiar o exercício das virtudes, seja daqueles naturalmente predispostos a esta prática, seja àqueles menos dispostos e que são levados por uma espécie de coacção a praticá-las. A lei positiva também pode obviar alguma tendência à arbitrariedade por parte dos magistrados. Poder-se-á impedir, assim, os julgamentos apaixonados que, em regra, depravam o juízo. As leis justas – pois, não há ilusão, existem leis injustas – são deduções ordenadas da natureza constituídas pela recta ratio. A sua finalidade não pode ser senão a Salus publica. Estando de acordo com a ordem natural favorecerá também a Salus animarum, numa clave mais elevada e transcendente de eficácia.
BIBLIOGRAFIA:
- GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito, Martins Fontes, São Paulo, 2004.
- HANS KELSEN, A justiça e o direito natural, [S. l.]: Armênio Armado Editor, 1979; e, O problema da Justiça. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
- MICHEL VILLEY, A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, Martins Fontes, 2005; e, Questões de Tomás de Aquino sobre Direito e Política, Martins Fontes, São Paulo, 2016.
- Liberalismo
por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. O liberalismo é uma corrente doutrinária (cuja fundação, em termos modernos, é frequentemente creditada a John Locke) caracterizada pela afirmação da primazia política da autonomia e liberdade pessoal. Não considera que a liberdade seja o único valor político, ou que seja um valor absoluto. A liberdade pode ser – e às vezes deve ser – restringida por razões públicas e de bem comum. Mas o liberalismo sustenta, sim, uma “presunção favorável à liberdade”: i.e., qualquer restrição legítima à liberdade pessoal deve ser razoavelmente justificada; e o ónus dessa justificação – o ónus da prova – cabe a quem advoga essa restrição.
2. O constitucionalismo liberal assume uma concepção de bem comum político tecida genericamente pelos seguintes elementos: garantia dos direitos e liberdades fundamentais; igualdade perante a lei; governo limitado e repartido, sob o consentimento dos governados; pluralismo e tolerância; liberdade económica, comércio livre e propriedade privada... Todavia, há uma ampla variedade de liberalismos, e mesmo disparidade e contradição entre eles. Há liberalismos contratualistas e deontológicos, relativistas e utilitaristas, perfeccionistas e conservadores; há o liberalismo (económico) de Manchester e o liberalismo (social) de Massachusetts; há liberalismos institucionais e liberalismos ideológicos. É difícil reconhecer uma tradição unificada. O liberalismo, mais do que várias faces, tem várias almas, correspondentes aos conceitos de liberdade e de bem humano que o animam.
3. Uma dessas concepções encontra expressão no celebrado (e também problemático) “princípio do dano” (de J. S. Mill): uma sociedade civilizada só poderia interferir razoavelmente nas acções de um indivíduo, contra a sua vontade, com o fim de evitar o dano de terceiros. De resto, «over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign». Este princípio acolhe a convicção de que, em geral, cada pessoa adulta – mesmo sendo frequentemente falível e necessitada de conselho – é o menos mau juiz sobre o seu próprio bem e o menos incompetente para determinar e prosseguir responsavelmente os seus próprios interesses. No entanto, o liberalismo – em sentido lato – não implica necessariamente indiferença ou arbitrariedade quanto à verdade sobre a pessoa, nem individualismo exacerbado. Antes, constitui uma tentativa de limitar o poder coercivo do Estado ao mínimo razoavelmente exigido pelo funcionamento pacífico da fábrica da sociedade. Atende ao facto de que a política versa sobre o governo de uma multidão de pessoas livres e iguais, que discrepam quanto ao conteúdo do que seja uma “vida boa”, e deve justificar aquilo que o Estado pode legitimamente impor aos cidadãos (a nós e aos outros).
4. A grandeza e força do liberalismo residem na sua defesa da liberdade e dos direitos individuais, o que é certamente justo e necessário. A sua fraqueza, aparentemente inevitável, consistirá em que não proporciona (nem quer proporcionar, por princípio) orientação suficiente para essa liberdade e para a vida em comum. E isso pode ser alienante, dissolvente e corrosivo do bem humano, ao turvar a consciência de que há actividades, objectivos e propósitos mais significativos, fundamentais e nobres do que outros. Mesmo quando não relativista – como no caso de John Rawls, assente na inviabilidade prática de acordo racional sobre os bens humanos – o liberalismo pode ser de algum modo contaminante de um certo indiferentismo moral e religioso. Mas a neutralidade moral e o vazio axiológico são impossíveis, na prática política. Não se consegue considerar seriamente a vida humana sem aspirar a um fito para além de uma liberdade carente de sentido. Nenhum Estado pode deixar de satisfazer aquelas condições institucionais sem as quais nenhum bem pode ser perseguido e nenhuma vida boa pode ser realizada. Nem pode ignorar que certas formas de vida dos indivíduos favorecem o bem comum e outras não.
5. Por fim, pode notar-se que o liberalismo clássico tem as suas raízes em premissas culturais e históricas de fundo bíblico, cristão e greco-romano – como notaram Popper, Böckenförde ou Charles Taylor – e pressupõe a verdade de algumas asserções básicas (pré-liberais) sobre o ser humano, a sociedade e o poder político. Seria preciso reconhecer que nem tudo no liberalismo é geneticamente liberal, quer para o entender bem, quer para o proteger da autofagia a que uma interpretação unilateral o conduziria. A igualdade e liberdade liberais não serão autossuficientes: precisam de um suplemento de alma, de uma transfusão de sangue; necessitam de conversar com algo que lhe é exterior, nomeadamente com a tradição clássica e a Fé bíblica.
Bibliografia
- William Galston, “Two Concepts of Liberalism”, Ethics, 105: 516–34, 1995
- F.A. Hayek, The Constitution of Liberty, Chicago: University of Chicago Press, 1960
- Pierre Manent, “The Greatness and Misery of Liberalism”, Modern Age, Summer 2010, pp. 176-83
- John Rawls, Political Liberalism, New York: Columbia University Press, 1996
- Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge: Cambridge University Press, 1982
- Liberdade
por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. A liberdade é um valor político fundamental. E é assim porque a liberdade é constitutiva da própria pessoa humana e condição necessária para o agir moral (embora não suficiente para agir bem) e, portanto, afim da dignidade humana. Só têm valor moral os “actos humanos”: as acções livres, aquelas que são objecto de escolha ou aceitação, deliberadas, conscientes, intencionais, racionalmente motivadas. A pessoa humana é, de certo modo, autora do seu próprio ser, tarefa e missão para si mesma, e responsável por si mesma. Em suma, a liberdade toca o nível mais profundo da pessoa.
2. Tudo isto pressupõe a convicção fundada de que as pessoas são mesmo capazes de liberdade, autodeterminação e intencionalidade ou, por outras palavras, capazes de livre arbítrio: daquilo que se chama liberdade “psicológica”. Além disso, pressupõe que a pessoa humana seja capaz de “liberdade moral”, ou seja, de actuar livremente bem, de se auto-finalizar para o seu verdadeiro bem (ou fim), o que consiste também em ser capaz de se libertar do mal moral.
3. Numa perspectiva mais propriamente política, Benjamin Constant estabeleceu uma distinção, que se tornou famosa, entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”. A primeira estava associada ao autogoverno das comunidades políticas da antiguidade clássica, e manifestava-se na faculdade de exercer colectivamente, e directamente, funções de soberania: deliberar – no espaço público – sobre os assuntos públicos, sobre tratados e alianças, sobre a guerra e a paz; votar as leis; examinar as contas; convocar, escrutinar, julgar e condenar (ou absolver) os magistrados, etc. Diferentemente, a “liberdade dos modernos” referia-se sobretudo às liberdades individuais privadas: de opinião, expressão, culto, circulação, reunião, comércio, disposição de propriedade, etc. Esta distinção mantem-se relevante para a actualidade, porquanto realça dois modos de pensar sobre a liberdade política (e mesmo dois modos de pensar a política), em várias dimensões: entre uma “liberdade republicana”, mais comunitarista e cívica, e mais preocupada com quem exerce o poder; e uma “liberdade liberal”, mais individualista, mais afecta à autonomia e independência pessoal, e mais preocupada com os limites do poder.
4. Uma outra distinção, tornada proverbial na teoria política, diferencia a “liberdade negativa”, (entendida basicamente como ausência de coacção externa) da “liberdade positiva” (entendida como capacidade de controlar a própria vida, de realizar o tipo de vida desejado, de alcançar os propósitos fundamentais de cada um). A primeira pode considerar-se uma “liberdade de oportunidade”; a segunda, uma “liberdade de exercício”.
A “liberdade negativa” desconsidera os obstáculos internos à liberdade – vício, corrupção da vontade, medo, irracionalidade ou ignorância… – e assume uma certa neutralidade face aos fins ou objectos das escolhas dos cidadãos. Contudo, o conceito liberal clássico de liberdade é fundamentalmente negativo não porque presuma forçosamente qualquer irrelevância ou arbitrariedade no que respeita aos fins humanos que tornam a liberdade significativa, mas porque corresponde a uma concepção política de liberdade: porque visa proteger uma esfera individual de não interferência externa (nomeadamente, do Estado) que permita – embora também não garanta – a autonomia da pessoa, uma vez que essa autonomia é uma condição necessária para o agir moral. Por seu lado, do ponto de vista político, a ênfase unilateral na “liberdade positiva” corre o risco do paternalismo moral, mais ou menos autoritário: o Estado – ou seja, pessoas tão falíveis como quaisquer outras, mas munidas do poder de coerção – poderia arrogar-se o direito de decidir sobre as “verdadeiras” preferências dos cidadãos, melhor do que os próprios o fariam, em nome do que eles julgariam razoavelmente ser o seu próprio interesse, se não fossem ignorantes e incontinentes…
A liberdade não é o único valor político. Todavia, também neste domínio deve valer o antigo princípio: in dubio pro libertate.
Bibliografia:
- Charles Taylor, “What’s Wrong with Negative Liberty”,’ The Idea of Freedom, A. Ryan (ed.), Oxford: Oxford University Press, pp. 175–93, 1979
- Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford: Oxford University Press, pp. 118–72, 1969
- Benjamin Constant, De la Liberté des Anciens comparée à celle des Modernes, [Discours prononcé à l'Athénée royal de Paris.1819], Paris : Fayard/Mille et une nuits, 2010
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- Maternidade de Substituição
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. Em 2006, com a Lei nº32/2006, de 26 de julho, o legislador português resolveu disciplinar o recurso às técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), entre as quais se contava a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a injeção intracitoplasmática de espermatozoides, a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos, o diagnóstico genético pré-implantação. Fê-lo, com todos os problemas ético-jurídicos daí advenientes (v.g. a questão dos embriões excedentários), assumindo como paradigma uma ideia de subsidiariedade. As técnicas de PMA surgem, no quadro legal, como um método subsidiário, ao qual se pode recorrer em caso de infertilidade ou doença grave. Com as subsequentes alterações à disciplina, embora o artigo 4º/1 continue a afirmar que as técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação, e o artigo 4º/2 refira que “a utilização de técnicas de PMA só pode verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade ou ainda, sendo caso disso, para tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doença de origem genética, infeciosa ou outras”, parece operar-se uma mutação no paradigma. Com efeito, o artigo 4º/3 passa a dispor que as técnicas de PMA podem ser utilizadas por todas as mulheres independentemente de diagnóstico de infertilidade. Acresce que, se outrora os beneficiários apenas podiam ser os casais heterossexuais inférteis, agora passam a poder recorrer às referidas técnicas quer os casais heterossexuais, quer os “casais” de mulheres, num caso e noutro, quer se encontrem efetivamente casados, quer vivam em união de facto, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil. De certo modo, o legislador parece ter desenhado um modelo de acesso às técnicas de PMA do qual resulta (ou parece resultar) um direito reprodutivo de cada cidadão, o que acaba por convocar problemas que tocam nos fundamentos do próprio direito. Estas considerações tornam-se particularmente pertinentes se atentarmos no fenómeno da maternidade de substituição (gestação de substituição). Outrora rejeitado em termos normativos pelo legislador, é agora possível recorrer ao procedimento em face do disposto no artigo 8º do citado diploma. Embora com limitações, admite-se que seja celebrado um acordo mediante o qual uma mulher se dispõe a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. A maternidade, antes exclusivamente assente em factos naturais, passa a estar assim dependente, em todos os casos em que se recorra a uma “barriga de aluguer”, de uma relação contratual, necessariamente gratuita, em face da proibição legal de contaminação do contrato em que o fenómeno assenta com a nota de onerosidade.
Optando inicialmente por um modelo de proibição absoluta, o nosso legislador comutou-o recentemente por um sistema de proibição da maternidade de substituição de índole comercial. Significa isto, a contrario, que passa a ser permitida a maternidade de substituição de índole gratuita, motivada, presume-se, por uma intenção altruísta e benemérita. É, então, possível que uma mulher leve a cabo uma gravidez, por conta de outrem, comprometendo-se a entregar a criança após o parto e renunciando a todos os poderes e deveres inerentes à maternidade. Em nenhuma situação esta mulher pode ser dadora do ovócito que será utilizado no procedimento em que vai participar. Do mesmo modo, não pode ser cobrada qualquer compensação monetária ou ser efetuada qualquer doação à gestante de substituição, com exceção do valor que permita cobrir as despesas correntes de acompanhamento da saúde da grávida, incluindo as despesas com deslocações.2. O procedimento e o que ele envolve implicam, necessariamente, uma instrumentalização de outra mulher e uma objetivação/coisificação do filho, a quem, a priori, mesmo antes do nascimento são coartados determinados direitos. Significa isto que o recurso à maternidade de substituição, sendo legalmente possível, não se pode assumir como projeção normativa de um direito de personalidade fundamental da mulher beneficiária. Ainda que o recurso à mesma possa corresponder a uma ambição legítima por parte da mulher que quer ter um filho – o que nem sempre se verificará, na prática –, o ordenamento jurídico não pode permitir que se lance mão de qualquer expediente, independentemente das consequências desdignificantes para o próprio ou para terceiros, para se alcançar um objetivo. Se fundadamente chegámos à conclusão de que não é possível invocar, da parte da mãe beneficiária, um direito à autodeterminação reprodutiva que legitime, sem mais, o recurso à maternidade de substituição, haveremos também de considerar que não é possível invocar a este propósito quer o direito a constituir família, quer, muito menos, um direito à igualdade entre os cidadãos que postule a ideia de que o Estado não pode discriminar uma pessoa, permitindo a outras que se reproduzam e impedindo o acesso à maternidade de substituição. Considerando-se a mãe beneficiária, haveremos de concluir que o seu papel no quadro de um processo de maternidade de substituição não corresponde ao exercício de um direito, muito menos ao exercício de um direito absoluto no sentido de para ele não se reconhecer qualquer limite.
3. Quanto à mãe gestante, ao limitar-se a fornecer o útero para gerar um filho alheio, relativamente ao qual prescinde, antecipadamente, de todos os direitos associados à maternidade, aquela vê o seu estatuto reduzido ao de um mero instrumento de procriação, cujo estilo de vida, alimentação, entre outros aspetos do quotidiano passam a ser, direta ou indiretamente, controlados por terceiros que têm interesse no nascimento de um filho saudável. A maternidade deixa de ser vista como um dom para passar a ser um produto negociável no âmbito de um contrato, ainda que gratuito. Com isto, é a dignidade da mulher, amputada de uma dimensão do seu ser, que só é integralmente experienciado na abertura relacional à própria criação, que é posta em causa.
4. O filho nascido no quadro de um procedimento de maternidade de substituição acaba por ver os seus direitos preteridos, alguns dos quais postos em causa mesmo antes do nascimento. Desde logo, não se asseguram, com a maternidade de substituição, as condições plenas para um adequado desenvolvimento da criança, por não estar suficientemente provado qual o impacto que a ligação entre o feto e a mulher gestante terá no futuro, pondo-se em causa o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da criança que irá nascer. O filho-coisa é despido da dignidade de pessoa, também porque se preveem, na regulamentação do procedimento e nos contratos modelo elaborados pelo conselho nacional, regras no tocante à revogação unilateral do contrato de gestação de substituição, que pode concretizar-se mediante a prática de um aborto. Ou seja, é tratado como o objeto de um negócio, com total desconsideração da sua dimensão de pessoalidade.
Bibliografia:
- Mafalda Miranda Barbosa/Tomás Prieto Álvarez, O Direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Sentido e limites, Gestlegal, 2020
- Mafalda Miranda Barbosa, A dignidade da pessoa. A fundamentação do jurídico, a (re)compreensão do direito à luz do dever e o bloqueio da simples aspiração, Gestlegal, 2024
- Guilherme de Oliveira, Mãe há só uma/duas (contrato de gestação), Coimbra, Coimbra Editora, 2012
- Dário Moura Vicente, “Maternidade de substituição e reconhecimento internacional”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 2012
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- Nação
por Manuel Monteiro, 2024
1. A Nação é uma comunidade de pessoas ligadas entre si por um sentimento de pertença. É um sentimento que individualiza os que “nascem num certo ambiente cultural feito de tradições e costumes, geralmente expresso numa língua comum, actualizado num idêntico conceito da vida e dinamizado pelas mesmas aspirações de futuro” (Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, I, reimp., 1996, p. 123). É também um sentimento que “traduz o espírito que anima e identifica uma comunidade humana, ligando as gerações do passado às do presente e que se projecta nas gerações futuras” (Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, I, reimp., 2022, pp. 492-493). Podemos neste sentido dizer que a Nação é uma comunidade de tipo particular que, ao exprimir “a identidade de antecedentes políticos: a posse de história nacional e consequente comunidade de recordações” (Stuart Mill, O Governo Representativo, 1967, p. 361), se apresenta como a Casa comum dos que se encontram e sentem ligados por vínculos históricos, culturais e linguísticos. São vínculos que o passado transmite, mas que o presente de forma consciente e voluntária aceita. Essa aceitação do passado pelo presente, traduzindo um acordo permanente na continuidade da herança recebida – acordo que envolve um consentimento e uma vontade que se expressam quotidianamente – (Ernest Renan, Qu`est-ce qu`une Nation?, 1882), projecta-se, como já foi dito, para o futuro, mas o modo como essa projecção se concretiza está sempre dependente da determinação das gerações posteriores.
2. É essa determinação que vai ditar se a Nação vive ou morre. Na realidade, se podemos entender que uma Nação seja apresentada como uma abstração de uma quantidade de indivíduos que dispõem de certas características em comum (H. Morgenthau, A Política entre as Nações, 2003, p. 199), não podemos esquecer que as Nações só persistem se esses mesmos indivíduos o desejarem. Com efeito, do mesmo modo que não subsistem florestas sem árvores, também não teremos Nações se aqueles que as integram e compõem não quiserem a sua continuação. Será sempre a atitude que os membros da Nação têm perante a sua história e a sua cultura (entendida esta como um sistema de ideias, sinais, associações e modos de comportamento e comunicação – Ernest Gellner, Nations et nationalisme, 1989, p. 19 –) e ainda perante a sua língua que definirá se ela pode ter futuro ou se é apenas presente e passado. Se a história e a cultura forem esquecidas e se a língua for substituída, ficará afectada a coesão e a lealdade da comunidade e, nesse caso, a Nação não pode perdurar. Não se pense, todavia, que a preservação da Nação em nome de valores e de vínculos que passam de geração em geração é incompatível com a normal evolução a que também as Nações estão naturalmente sujeitas. Pensar o contrário seria conceber as Nações como realidades estáticas, fechadas sobre si mesmas, contrárias ao diálogo, à partilha, à cooperação e à própria disponibilidade para receber e integrar. Mas a evolução que advém destas circunstâncias não pressupõe prescindir nem do seu direito à diferença, nem do seu direito à afirmação dessa diferença, nem do direito a exigir o reconhecimento dessa diferença.
3. Decorrente da ideia exposta, uma questão temos ainda de colocar: poderá a Nação enquanto história, enquanto cultura, enquanto língua, enquanto comunidade de solidariedade, de partilha, de lealdade, de vontade em preservar uma identidade própria no presente e para o futuro afirmar-se sem poder definir o seu destino? Entendemos que não! Uma Nação que não possua o poder de se autodeterminar não possui o poder de decidir se quer prosseguir enquanto Nação. Pode até, no uso do seu poder, optar por modelos de cooperação com outras Nações que sejam mais ou menos integradores do ponto de vista político, mas sem nunca dispensar a sua liberdade para ser livre. Uma Nação que dispensa a sua liberdade para ser livre é uma Nação que definitivamente se autolimita e ao autolimitar-se de forma permanente impede a manifestação de vontade dos seus membros, o que significa comprometer a sua razão de ser. A continuidade de uma Nação não está assim apenas subordinada a um desejo no presente e a uma aspiração de futuro, está também condicionada ao seu poder efectivo de concretização. A inexistência desse poder empurra a Nação para uma simples comunidade de recordações e uma Nação que vive somente das suas recordações, das más e das boas, afasta-se do seu propósito de contínua afirmação.
4. Uma outra questão deve também ser apresentada: poderá um Estado que represente uma Nação, definida como aqui a definimos, ser membro de organizações internacionais intergovernamentais ou de organizações internacionais que apesar da sua componente intergovernamental possuam um pendor mais integracionista, como é o caso da União Europeia? O princípio subjacente à resposta é o de que nenhuma Nação livre pode deixar de ser uma Nação aberta à cooperação entre nações e de estar firmemente empenhada no respeito pelo direito internacional e na defesa dos valores que lhe assistem. Daqui decorre que a presença e participação em organizações internacionais não é em nada antagónico com as ideias anteriormente defendidas e isso também se aplica a uma organização internacional como a União Europeia. A evolução mundial e as novas realidades que daí advieram demonstram a necessidade de espaços mais alargados de partilha seja na busca de soluções e da sua implementação para problemas que ultrapassam os territórios nacionais, seja na promoção e salvaguarda de valores essenciais à preservação cultural e política das Nações.
Bibliografia:
- Ernest Gellner, Nations et nationalisme [trad. para francês de Bénédicte Pineau], Paris, Éditions Payot,
- Ernest Renan, Qu`est-ce qu`une Nation?, Paris, Calmann Lévy, 1882.
- Morgenthau, A Política entre as Nações – A luta pelo poder e pela paz, [trad. para port. de Oswaldo
- Biato], São Paulo, Editora Universidade de Brasília, 2003.
- Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, reimp., Coimbra Almedina,
- Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, v. I, reimp., Coimbra, Almedina, 2022.
- Stuart Mill, O Governo Representativo [trad. para port. de José Fernandes], Lisboa, Arcádia, 1967.
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- Personalidade Humana
por Pedro Afonso, 2024
1. O termo «personalidade» deriva etimologicamente do latim persona e refere-se à máscara utilizada pelos actores no teatro clássico. Podemos definir a personalidade como um conjunto de características relativamente estáveis do indivíduo que define os padrões permanentes da sua maneira de sentir, pensar e actuar.
Cada pessoa tem uma personalidade própria, o que faz de cada um de nós, indivíduos únicos e irrepetíveis. Apesar de ser relativamente estável ao longo da vida, a personalidade mostra-se dinâmica, podendo sofrer algumas mudanças e permanecendo em constante desenvolvimento. Essas mudanças na personalidade, em circunstâncias excepcionais, poderão ser súbitas e profundas, nomeadamente nalgumas doenças psiquiátricas graves como a esquizofrenia, nas demências (por exemplo, a demência de Alzheimer), em traumas psicológicos severos, etc.
2. A nossa personalidade tem duas grandes dimensões que se intersectam: o temperamento e o carácter. Enquanto o temperamento tem aspetos mais hereditários/neurobiológicos difíceis de modificar (por exemplo, ser mais tímido e reservado é uma característica da personalidade difícil de ser alterada), o carácter é a dimensão da personalidade mais «plástica» e que sofre mais influências (educação, cultura, sociedade, etc.), podendo ser modificada pela vontade. O carácter é o resultado da autoconsciência e dos objetivos e valores escolhidos individualmente; diz respeito ao que decidimos sobre nós próprios intencionalmente. Por conseguinte, existem aspectos da personalidade, nomeadamente «aquilo que eu sou ou que irei ser», que não estão totalmente predeterminados, sendo possível fazer diversas escolhas ao longo do tempo, de acordo com a liberdade pessoal.
3. Convém referir que existem personalidades anormais ou patológicas. O DSM 5 TR (2022), da Associação Americana de Psiquiatria, define a perturbação da personalidade como um padrão duradouro de experiência interna e comportamento que se desvia marcadamente do esperado da cultura da pessoa. Estes padrões são inflexíveis e desadaptativos numa grande variedade de situações pessoais e sociais. São estáveis, têm habitualmente origem na adolescência ou no início vida adulta, e originam um sofrimento clinicamente significativo ou uma deficiência em diversas áreas de funcionamento (social, profissional, etc.). As perturbações da personalidade são bastante frequentes. Estima-se uma prevalência de cerca de 10.5% na população geral, estando descritos 10 tipos de perturbação de personalidade.
Não obstante observarem-se condições patológicas associadas à personalidade, não devemos cair num fatalismo e numa perspectiva pessimista. Existe sempre a possibilidade de se obter ajuda psicológica e psiquiátrica. Além disso, tal como referiu o Papa Pio XII (1958): «Apesar de o indivíduo poder ter um conjunto de disposições psicológicas anormais, estas nem sempre são insuperáveis; portanto, não impedem o sujeito de atuar livremente nem de ser capaz de vencer as dificuldades que se opõem à observância de uma lei moral».
4. Tal como foi referido, embora existam factores genéticos e neurobiológicos que influenciam a formação da personalidade, sabemos que a família tem um papel essencial na estruturação da personalidade. É na vida familiar que se aprende a estabelecer vínculos afectivos duradouros, que se é amado e se aprende a amar. A saúde mental na vida adulta é influenciada pelas experiências positivas ou negativas obtidas durante a infância e na adolescência. Consequentemente, nunca é demais enfatizar a importância da educação e do ambiente familiar como factor primordial no sentido de proporcionar uma personalidade socialmente ajustada e com maior garantia de sucesso e integração socioprofissional.
Bibliografia:
- Afonso, P. (2015). Quando a mente adoece: Uma introdução à psiquiatria e saúde mental. Cascais, Princípia.
- Afonso P. (2022). A Ética na Vida Familiar. In: Temas de Ética — Reflexões e desafios, Coord. António Bagão Félix, Paulo Otero e Victor Gil. Cascais, Princípia.
- American Psychiatric Association (APA), (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: (DSM–-5-TR). 5th ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association.
- Pio XII. (1958, 10 de abril). Discurso de Sua Santidade Pio XII aos Participantes do XIII Congresso Internacional de Psicologia Aplicada [Discurso]. Acedido em 2 de julho de 2024, de https://www.vatican.va/content/pius-xii/es/speeches/1958/documents/hf_p-xii_spe_19580410_psicologia-applicata.html
- Truffino J. C. (2010). Personalidade: El modo se ser de cada cual, in La Salud Mental e sus Cuidados, Javier Cabanyes e Miguel Ágel Monge (coord.), Navarra, Ediciones Universidad de Navarra.
- Pessoa
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
No período da filosofia grega, a pessoa era a pessoa dramatúrgica, já que a persona identificava as máscaras (prosopon) que se colocavam diante dos olhos para esconder o rosto, no teatro. Seria apenas na Idade Média, para solucionar questões teológicas, cristológicas, trinitárias e para a solução de heresias, que o conceito surgiria. O primeiro problema que, nos primeiros anos do cristianismo, a patrística teve de resolver foi o da Trindade – um Deus uno e trino. A explicação foi encontrada através da diferença entre natureza e pessoa. Em Deus, há uma só natureza, mas três Pessoas diferentes. O conceito de pessoa surge como um conceito relacional, permitindo que a pessoa humana fosse compreendida a esta luz. O homem, porque feito à imagem e semelhança de Deus, é, tal como Ele, Pessoa. E Pessoa, em Deus, significa relação. Com Santo Agostinho, porém, não se dá uma total transferência da pessoalidade para o seio da humanidade. Projetando as Pessoas divinas para o interior da pessoa humana, para Santo Agostinho, a Trindade fica encerrada no interior de Deus, que se torna, exteriormente, um simples Eu (Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, Communio – International Catholic Review, 17/3, 1990, 439 s.). Donde se acentuam a individualidade e singularidade como notas do conceito de pessoa, aparecendo, como integrantes do conceito, as notas da inteligência, da memória e da vontade. Denotava-se no santo a influência da Escola de Antioquia, para a qual a pessoa surgia como um conceito de natureza concreta, ou seja, determinada pelas suas propriedades concretas. Já para a Escola de Alexandria, da qual faziam parte nomes como Apolinário de Laodiceia, Santo Atanásio, Cirilo de Alexandria, a pessoa foi compreendida segundo um estatuto ontológico. Para Boécio, a pessoa é substância individual de natureza racional, sendo este o conceito que seria aprofundado por São Tomás de Aquino (Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke: integração entre a tradição metafísica de pessoa e a tradição fenomenológica contemporânea sob a ótica de Tomás de Aquino, Brasília, 2014, 35). Para o pensador, a substância individual que se coloca na definição de pessoa implica uma substância completa, que subsiste por si, separadamente dos demais (subsisten in rationalis natura), o que permitiria, igualmente, explicar que Cristo tivesse duas naturezas e fosse uma só pessoa (divina). A ideia da existência de duas naturezas numa só pessoa conduz, igualmente, a uma ideia relacional. Como explica Joseph Ratzinger, “é da natureza do espírito colocar-se em relação”. Ao ser com os outros, “o espírito está a ser ele próprio”, porque “apenas quem se nega a si pode encontrar-se”. Em Cristo, ser com os outros é realizar-se de forma radical. Ser com os outros não cancela o ser consigo mesmo, mas permite que ele se realize totalmente, continua Bento XVI (Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, 451). O erro de São Tomás de Aquino foi ter perspetivado o aspeto relacional e autocomunicacional apenas à luz da explicação da Trindade e já não da natureza de Cristo, porque com isto deixou na sombra esta dimensão fundamental da noção de pessoa. A teologia católica posterior haveria, porém, de tentar superar este lapso (Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke , 37). Norris Clarke reafirma a ideia tomista da pessoa humana como um ser de natureza intelectual e um espírito incorporado (W. Norris Clarke, Person and Being, The Aquinas Lecture, Marquette University Press, 2004, 32 s.), mas procura superar a perda de sentido relacional e comunicacional.
O ser humano apresentaria, assim, três principais dimensões: pessoa como auto-possuidora (cada homem existe, primeiramente, como unidade-identidade-totalidade no meio da comunidade de existentes, donde resulta o seu autodomínio, a sua autoconsciência, a sua autodeterminação, a permitir que o homem se afirme como responsável); pessoa como auto-comunicativa (a vincar o seu aspeto relacional, na medida em que “todo o ser está inserido nessa dialética interminável do interior e do exterior, o em-si e o para-os-outros”, uma “síntese entre substancialidade e relacionalidade”, de tal modo que só através da mediação do outro o ser humano pode descobrir-se como único e auto-consciente); e pessoa como auto-transcendente (porque, ao sair de si para se dirigir ao outro, numa relação de amor e de cuidado, o homem transcende-se, deixando de lado o egocentrismo natural) [Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke , 38-42]. Mas, a relacionalidade a que assim chegamos, por influência dos pensadores cristãos, anda longe do sentido fenomenológico do diálogo. Não só a fenomenologia não foi capaz de compreender a dimensão de substancialidade, como acaba por, na sua redução fenomenológica e eidética, olhar para a relação como puro diálogo. Ora, como bem explicita Joseph Ratzinger, a “relatividade em relação aos outros” que constitui a pessoa humana não se traduz numa mera ideia dialógica, mas está em causa o Nós (Pai, Filho e Espírito). Ou seja, não há um puro Eu, nem um puro Tu, mas um integrador Nós. E é exatamente o Nós divino que prepara o nós humano (Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, 458). Na transposição para o plano humano, a pessoa passa a ser entendida, durante toda a Idade Média, como um membro de uma comunidade, ordenada por Deus, a Quem deve obediência, com consequências diretas do ponto de vista da fundamentação do direito.
Seria o iluminismo racionalista a não deixar incólume esta compreensão que o homem tinha de si mesmo. A primazia da subjetivação associada à exaltação da razão, entendida à boa maneira cartesiana em termos puramente dedutivos, enfatizaria no homem a sua dimensão psíquica, a sua consciência. A precisão do raciocínio matemático conduziria a um empobrecimento da inteligência globalmente considerada e condenaria o homem ao fechamento de si mesmo, ao abstrato solipsismo. Mas, se a época moderna forjou o homem indivíduo centrado na sua racionalidade cartesiana, variadas correntes filosóficas posteriores mostraram a insuficiência da visão alicerçada na autista consideração da inteligência entendida como possibilidade de cálculo e de gestão de informação e na compreensão do homem como pura subjetividade, entre as quais o existencialismo, quer de matriz ateia, quer se matriz cristã, bem como o pensamento fenomenologista. A alteridade intersubjetiva a que assim fazemos referência não é exclusiva do existencialismo, do personalismo ou do pensamento fenomenológico. Ao invés, está presente (e assume centralidade) no seio da antropologia cristã, que a compreende de forma enriquecida quando comparada com o que resulta do eu fenomenológico. O eu fenomenológico, se bem que dialógico, levando à autotranscendência pela necessária relação com o outro, acaba por esquecer a importante dimensão de substancialidade que caracteriza o ser humano. Ora, parece ser nessa dimensão substancial, porque o espírito humano reflete o conceito de Deus, que, por um lado, reside a historicidade da pessoa, ou seja, o seu dinamismo como ser que tende a algo, e, por outro lado, assenta a dimensão relacional, não meramente dialógica, mas auto-transcendente, porque o homem se dirige ao outro para amar e cuidar, procurando o seu bem. A pessoa surge, portanto, não como uma categoria ontológica, mas ético-axiológica. Podendo o homem degradar-se com as suas escolhas, perdendo o sentido da autotranscendência, da autocomunicação e da autopossessão, então, teremos de concluir que não pode ser na mera ontologia que apenas atenta nas suas características essenciais, sem ligação à razão fundadora e criadora de todas elas, que nos comunica um quadro valorativo específico, que podemos encontrar a raiz da sua dignidade, mas na dimensão axiológica que enforma a sua pessoalidade assim compreendida.
Bibliografia:
- Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, Communio – International Catholic Review, 17/3, 1990, 439 s.
- Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke: integração entre a tradição metafísica de pessoa e a tradição fenomenológica contemporânea sob a ótica de Tomás de Aquino, Brasília, 2014, 10 s.
- W. Norris Clarke, “Person, Being and St. Thomas”, Communio –International Catholic Review, 19, 1992, 601 s.
- W. Norris Clarke, Person and Being, The Aquinas Lecture, Marquette University Press, 2004
- Política
por Manuel Monteiro, 2024
1. No sentido mais clássico, recuando à antiga Grécia e em particular aos ensinamentos de Aristóteles, a política significava a ideia de Cidade. Esse entendimento remetia-nos quer para a compreensão do Homem enquanto ser naturalmente político e para os seus desejos de alcançar uma vida feliz, quer para a definição das formas de governo mais adequadas à boa organização da comunidade. A política era assim compreendida como a permanente relação entre princípios e fins, considerando-se o exercício do poder o meio através do qual os princípios se realizam.
2. Esta noção de política seria séculos mais tarde reforçada por São Tomás de Aquino, ainda que completada pela defesa da origem divina do Homem. Se a sua existência continuava a não poder ser desligada da Cidade, a ideia e a acção que conduzia à sua preservação tinham agora em vista o Bem Comum. Já não era apenas a felicidade individual que a política e o poder deveriam ter como objectivo, tão pouco a conservação do grupo enquanto simples soma de partes, mas a procura do Bem que ajudasse a salvaguardar a dignidade de cada pessoa humana. E nesse sentido o governante deveria ser prudente e justo, precisamente por ser essa a única forma de proceder compatível com o princípio e o fim da própria política.
3. Tudo mudaria com Maquiavel. Com ele, e principalmente depois dele, a política passaria a ser maioritariamente entendida com a ciência da conquista, do exercício e da manutenção do poder, deixando este de ser um meio para passar a ser o princípio e o fim. E isso iria determinar a distinção entre a «sociedade política» e a «sociedade civil», bem como a consagração futura do Estado, enquanto organização ou espaço privilegiado de actuação de uma classe específica, a «classe política». Ao homem que era ao mesmo tempo social e político, sucederia o «homem político» e o «homem não político». Estávamos perante uma profunda mudança face à tradicional ideia de Política, caminhando progressivamente para ter dela uma outra concepção. Uma concepção que nos nossos tempos Julien Freund apresentou, como a actividade que garante pela força a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política, sendo seu objectivo primordial a manutenção da ordem.
4. Nestes termos, a concreta actividade que privilegia a conquista, o exercício e a manutenção do poder, e ainda garante a ordem, assumiu destaque na luta travada pelo domínio do Estado. Este, ao ser visto como uma sociedade distinta, dotado de órgãos próprios e possuidor, como dizia Weber, do monopólio do uso da força legítima, justificaria que a noção de política se esgotasse na acção desenvolvida por si e em função de si, seja qual for o regime político que nele vigore. Os «políticos» surgiam, pois, como seres diferentes, mesmo que temporariamente, dos chamados homens comuns que se ocupavam com as actividades não políticas, integrando por isso a já mencionada «sociedade civil».
5. O conceito de política tem assim dois significados não coincidentes: o que se inspira nas teses de Aristóteles e de São Tomás de Aquino; o que se filia nas posições de Maquiavel. Seguimos o primeiro caminho e por isso a definimos como a ideia que conduz à promoção da justiça, da liberdade, da segurança, e do bem-estar da comunidade. A escolha desse caminho apoia-se nas seguintes razões: i) também entendemos que é no Homem, enquanto pessoa humana e enquanto ser social e político, que deve residir a centralidade da Política; ii) também consideramos a Política como ideia que se baseia em princípios e que estabelece fins; iii) também vemos o poder e o seu exercício, apenas como meio ao serviço dos princípios; iv) e, por último, também compreendemos o Estado, tal como Vittorio Possenti, como uma parte da sociedade política e não como o seu todo.
Bibliografia:
- Aristóteles, Política, 1ª ed. em português feita a partir do grego [trad. de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes], Lisboa, Vega, 1998
- Sureau, Denis, Saint Thomas D`Aquin – Petit somme politique, Paris, Pierre Téqui éditeur, 1997
- Possenti, Vittorio, A Boa Sociedade – Sobre a Reconstrução da Filosofia Política [trad. para a língua port., de Natércia Maria Mendonça, do original La Buona Società – sulla riconstruzione della filosofia politica] Lisboa, IDL, 1986
- Freund, Julien, O Que É A Política? [trad. para a língua port., de Emílio Campos de Lima, do original Qu´est ce que la Politique?], Lisboa, Editorial Futura, 1974
- Prestações Familiares
por António Bagão Félix, 2024
1. Em geral, os sistemas públicos de Segurança Social cobrem acontecimentos ou ocorrências (a que se dá o nome técnico de eventualidades) que, ocasionando um risco de natureza social, são objecto de protecção. As eventualidades podem classificar-se em três grupos: a) as relacionadas com a perda ou redução de rendimentos, isto é, rendimentos cessantes (por exemplo, velhice, doença, invalidez, morte, desemprego, período de inactividade por parentalidade); b) as relacionadas com o aumento de encargos ou, em terminologia civilista, encargos emergentes (por exemplo, encargos familiares, deficiência, dependência); c) as relacionadas com insuficiência de recursos, pobreza ou exclusão.
2. Nos termos da lei de bases da Segurança Social (lei 4/2007, de 6 de Janeiro), o enquadramento das eventualidades referidas na alínea a) está previsto no sistema previdencial de base contributiva. Já as mencionadas na alínea b) e c) estão incluídas no sistema de protecção social de cidadania e são financiados não por contribuições sociais (TSU), mas por transferências do Orçamento do Estado. Entre estas, incluem-se as prestações familiares previstas no chamado subsistema de protecção familiar.
3. O abono de família é a mais antiga prestação social que atende a condições familiares. Foi criado em 1942, tendo Portugal sido o 11º país do mundo a instituir um regime específico de abono de família. Antes dele, e no que é hoje a União Europeia, tinha já sido criada uma prestação de apoio à família na Bélgica (1930), França (1932), Alemanha (1935), Itália (1937), Espanha (1938) e na então Holanda (1939).
4. Em Portugal, o abono de família começou por ser uma prestação pecuniária limitada aos trabalhadores inscritos nas Caixas de Previdência e Abono de Família, tendo o seu campo de aplicação sido estendido nas décadas seguintes. Assim, em 1969, passou a abranger os trabalhadores rurais por conta de outrem (lei nº 2144, de 29.5.1969). Pelo decreto-lei nº 180-C/78 de 15 de Julho, foi alargado aos trabalhadores independentes. No decurso do tempo, unificou-se este regime com a correspondente protecção no âmbito da função pública.
5. Entretanto, outras prestações de âmbito familiar foram sendo criadas para situações que geram encargos adicionais, designadamente o abono de família pré-natal, a 13ª prestação de abono de família, e, noutro âmbito, o subsídio de funeral. Nas áreas da deficiência e da dependência, foram instituídos o subsídio mensal vitalício, o subsídio de educação especial e o subsídio por assistência de terceira pessoa.
6. As condições de atribuição das prestações familiares às crianças e jovens (os titulares da prestação), em particular do abono de família, e a modulação do seu montante são fixadas em função de diversos factores. O principal é o nível de rendimentos da família (totais ou per capita) e a chamada condição de recursos (prova de insuficiência de meios). Outros factores considerados são a idade do titular da prestação, a situação escolar, os encargos educativos, a extensão e composição da família, a caracterização e o grau de dependência ou deficiência.
7. Ligado a estas prestações familiares está o objectivo de promoção da natalidade que, em Portugal – com uma das taxas mais baixas de todo o mundo - se situa em valores longe da renovação geracional. Diz a já citada lei de bases que “a lei deve estabelecer condições especiais de promoção da natalidade que favoreçam a conciliação entre a vida pessoal, profissional e familiar e atendam, em especial, aos tempos de assistência a filhos menores”. Estipula ainda o desenvolvimento de equipamentos sociais de apoio na primeira infância, de mecanismos especiais de apoio à maternidade e à paternidade e de diferenciação das prestações.
8. No plano das políticas públicas e, em particular, da segurança social, a família deve ser considerada como sujeito activo da política social e não unicamente como destinatário passivo de assistência. Não estando em causa o desenvolvimento dos sistemas de protecção social que, em todos os países, melhor ou pior, surgiram, o certo é que a total ou quase total percentagem dos benefícios e prestações se destinam a proteger direitos individuais e, só muito raramente, visam o apoio da família enquanto instituição própria. Todavia, vêm-se observando algumas formas de “familiarização” dos apoios sociais, seja no domínio estrito da Segurança Social, seja noutras políticas públicas. Neste contexto, importa aqui sublinhar a existência do RSI, Rendimento Social de Inserção, que não sendo tecnicamente uma prestação familiar, tem subjacente a composição e condição do agregado familiar.
9. A abordagem das prestações familiares deveria ser mais coordenada e compatibilizada com o modo como os encargos familiares são (ou não) considerados nas normas do IRS, quanto ao número de descendentes, ao eventual grau de incapacidade, às despesas de saúde, educação e formação profissional, entre outras. Na anterior lei-quadro, entretanto revogada (lei 32/2002, de 20 de Dezembro), o seu artigo 68º (“Articulação com o sistema fiscal”) preconizava que as prestações concedidas no âmbito do subsistema de protecção familiar deveriam ser harmonizadas com o sistema fiscal, garantindo o princípio da neutralidade, designadamente em sede de dedução à colecta no âmbito do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares. Um exemplo: o recebimento do abono de família dos filhos e a dedução à colecta de IRS pelos mesmos descendentes (afinal, dois apoios simétricos) devem ser perspectivados em conjunto.
10. O valor orçamentado para 2025 quanto ao abono de família é de cerca de 1 500 milhões de euros, o que corresponde a 4.7% do total das prestações sociais contributivas e não contributivas da Segurança Social. Se excluirmos as pensões do regime previdencial, o peso será de 21%. Já numa comparação com a receita do IRS, o custo desta prestação familiar equivale a 9% da colecta deste imposto.
BIBLIOGRAFIA:
• António Bagão Félix, Abono de família, Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 21º volume
• Direcção Geral da Segurança Social, Prestações Familiares,
https://www.segsocial.pt/documents/10152/113014/Evolucao_montantes_prestacoes_familiares.pdf/b325f45c-a402-4ac4-8cc5-041f1f4efff9
• Ilídio das Neves, Lei de Bases da Segurança Social comentada e anotada, Ed. Coimbra Editora, 2003 - Propriedade Privada
por Inês Neves, 2024
1. Bem jusfundamental tradutor da relação privada de privados com bens e direitos patrimoniais (corpóreos ou intangíveis), em diálogo vertical (com e face ao Estado) e horizontal (com e face a terceiros). A propriedade privada (dos privados) é garantida, entre nós, pela norma de direito fundamental consagrada no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa de 1976 (‘CRP’), conhecendo recortes específicos, razão da individualidade e da destinação do seu objeto (cf. artigos 42.º, n.º 2, 65.º, n.º 4, 88.º, 94.º- 96.º CRP).
2. Integra a tríade de direitos fundamentais económicos clássicos, carregando na sua matriz genética o ideal de liberdade prototípico do constitucionalismo liberal, hoje dialogante com a autonomia e a solidariedade, recondutíveis à matriz axiológica plural da Constituição.
3. Caracterizam a propriedade privada a sua complexidade, a sua multidimensionalidade e a sua amplitude. A complexidade, desde logo quanto aos valores-âncora que a sua jusfundamentalidade justificam, orientados às garantias i) de um espaço de autonomia pessoal, essencial à realização da pessoa e indispensável à prossecução de projetos de vida livres, autónomos e responsáveis, e ii) de separação-diferenciação (ainda que não absolutizante ou sequer excludente) da sociedade face ao Estado, em relação ao qual surge como contrapoder.
4. Caracteriza a norma de direito fundamental uma dupla dimensão. Na dimensão subjetiva, descobre-se o feixe de faculdades e de posições jurídicas ativas de índole patrimonial, invocáveis e justiciáveis para a garantia da esfera patrimonial juridicamente própria. Na dimensão objetiva ou institucional, expõe-se o invólucro protetor da propriedade como instituto, numa garantia tanto (im)positiva (de deveres de proteção, de organização, de procedimento, e de design de um enquadramento normativo, que é condição de efetividade do direito), como negativa (vedando a afetação ou, mesmo, a aniquilação dos traços essenciais e caracterizantes da propriedade constitucionalmente garantida). Em qualquer caso, a garantia sucedânea da “justa indemnização” prevista para os casos de requisição e expropriação por utilidade pública, nem é destas exclusiva, nem é substituto excludente do direito de defesa.
5. O objeto da garantia constitucional da propriedade privada é amplo. Não se identifica com o conteúdo civilístico de propriedade, nem se resume à propriedade em sentido jurídico-real (muito menos à proprietas rerum). Inclui, ainda, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e industrial, e, bem assim, direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei, como os direitos de crédito e as participações sociais. Numa síntese que arrisca reducionismo, está em causa a proteção de posições jurídicas sobre bens de valor patrimonial.
6. Aos respetivos titulares, reconhecem-se as faculdades jusfundamentais de aceder (direito à propriedade), de manter (não ser arbitrariamente privado de), de transmitir ou dispor, e de usar e fruir (i.e. aproveitar) a propriedade (independentemente da racionalidade e da eficiência do uso). Sujeitas a respostas cambiantes entre jurisdições e sistemas de proteção de direitos, ficam as simples expectativas de aquisição e a ‘Nova Propriedade’, inclusiva dos direitos subjetivos públicos com expressão patrimonial (‘Teilhaberechte’).
7. A propriedade privada não é prerrogativa absoluta que possa ser lida à luz de um liberalismo radical ou ‘quimérico’. O facto de a CRP omitir, na sua textualidade, a referência a uma ‘funzione sociale’ ou ao ‘Allgemeinheit’ (cf. artigos 33.º da Constitución Española de 1978; 42.º da Costituzione della Repubblica Italiana de 1948 e 14.º da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland de 1949), não silencia o enquadramento social vinculativo no qual a propriedade se move, nem as ingerências, de grau naturalmente variável. Nada consente, porém, tresler ou expropriar os “termos da Constituição” do seu sentido básico. Não são autorização de funcionalização-orientação da propriedade dos privados à prossecução de deveres do Estado social. Nem legitimam desnudar o flanco de defesa da capacidade de resistência a investidas políticas e/ou económicas sem tradução em valores, bens ou interesses constitucionalmente protegidos prevalecentes. Porque, nem a solidariedade entre privados, nem a função económico-social da propriedade podem ser degradadas a ponto de consentir uma subordinação funcional da propriedade privada ao social que a rodeia, convertendo um direito-liberdade fundamental em dever de exercício vinculado ao interesse público.
Bibliografia:
- Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra: Coimbra Editora, 1998
- Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra: Almedina, 2007
- Jorge Medeiros – “Artigo 62.º” in Miranda, Jorge/Medeiros, Rui – Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I: preâmbulo, princípios fundamentais, direitos e deveres fundamentais, artigos 1.º a 79.º (2.ª ed.), Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017
- Joaquim de Sousa Ribeiro, “O direito de propriedade privada na jurisprudência do Tribunal Constitucional” - Relatório português apresentado à Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, outubro 2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/ctri.html
- Herman Schwartz “Property Rights and the Constitution: Will the Ugly Duckling Become a Swan”, American University Law Review, 37(1): 9-39, 1987
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- Razão de Estado
por Alexandre Franco de Sá, 2024
1. O conceito de razão de Estado remete à «arte de governar» da antiguidade clássica. Segundo Aristóteles, quando o governante o é por natureza, tendo uma superioridade natural em relação aos governados, é possível distinguir duas formas de governo. Uma delas consiste no «uso» (chrēsis) que é próprio do governo despótico. Neste governo, o «fim» ou telos da relação encontra-se do lado do governante. É o uso que está presente na relação pela qual a alma usa o corpo; é também ele que, em contexto familiar, estabelece a relação pela qual o senhor usa o corpo do escravo que lhe pertence (Política, 1254b4). Na relação política entre homens livres, o governo despótico é injusto e corresponde à tirania. A segunda forma de governo tem como modelo a relação entre o pai e os seus filhos. Nesta, o governo não é uso, mas cuidado: o «fim» da relação de governo não se encontra no governante, nas no governado. Tal governo é aquele pelo qual a parte superior da alma, a sua inteligência ou razão, conduz desejos e apetites, governando-os tal como um pai cuida dos seus filhos, guiando-os pelo seu conselho (Ética a Nicómaco, 1103a3). A partir desta segunda forma de governo foi possível conceber uma «arte régia» (technē basilikē), a arte de governar enquanto arte do príncipe ou arte de cuidar do Estado.
2. «Arte do Estado» (arte dello stato) é a expressão com que Maquiavel, em carta a Francesco Vettori, anuncia a redacção do Príncipe (1513). Trata-se de uma arte de conquista e conservação do poder que poderia ser aprendida pela evocação de exemplos tanto presentes como passados, pois a natureza humana seria imutável e a arte do Estado, que o príncipe teria de cultivar, seria a arte de lidar com os homens. Para Maquiavel, a arte do Estado consiste na capacidade do príncipe para aproveitar as circunstâncias – a fortuna – a seu favor, não hesitando em fazer o que estas exigem e cultivando, em face delas, uma atitude viril e ousada (a virtù). Diante desta «arte do Estado», e contra ela, o conceito de «razão de Estado» é introduzido pela ideia de que o príncipe só conseguirá conservar o seu poder se no seu modo de actuar não deixar de observar as virtudes que tornarão a sua autoridade reconhecida. O livro Da Razão de Estado (1589), do ex-jesuíta Giovanni Botero, amplamente divulgado e traduzido na época para latim, espanhol e alemão, estabelece o conceito como assente na compatibilidade entre a «razão de Estado», cujo fim é a conquista, conservação e ampliação de um domínio, e a «virtude do Príncipe», pela qual este poderia garantir, junto dos súbditos, a sua obediência e reconhecimento.
3. Depois de Jean Bodin ter definido a soberania como «potência absoluta e perpétua de uma república», tornou-se possível desenvolver a ideia de um poder que, não sendo condicionado por qualquer princípio exterior de justiça, seria determinado por si mesmo, por uma lei intrínseca a si mesmo enquanto poder. Por isso, no século XVII, a razão de Estado aparece como a simples tradução do interesse do príncipe que incorpora ou representa o Estado. Como disse Henri de Rohan, o duque huguenote que na França estava ao serviço do Cardeal Richelieu: «Os príncipes comandam os povos e o interesse comanda os príncipes». Ao ser associado ao interesse, o conceito de razão de Estado torna-se a base para pensar acções políticas que não hesitem em sobrepor-se, caso seja necessário, à observação das leis. É o que Gabriel Naudé afirma em Considerações Políticas sobre o Golpe de Estado (1639). Para Naudé, o príncipe deve governar não apenas pelas leis, mas acima das leis, caso a necessidade o exija. O «golpe de Estado» é o desenvolvimento extremo da «razão de Estado»: as razões de Estado seriam as causas e princípios que legitimariam a acção do príncipe; entre estas, o golpe de Estado consistiria naquelas razões em que «a execução precede a sentença», razões que, por esse motivo, se teriam de manter escondidas. A razão de Estado pode levar o soberano a actuar à margem da lei, decidindo a sua acção em segredo e mantendo-a secreta por uma arte de encobrimento que Torquato Acceto louvou em Da Dissimulação Honesta (1641). No mesmo ano, em Leviathan, Thomas Hobbes argumenta que, mesmo num acto que possa ser iníquo, de modo nenhum o soberano é injusto, pois é da soberania que decorre a distinção entre justiça e injustiça. O soberano é, portanto, sempre justo, pois é na sua pessoa que está presente – e se representa – a lei e a commonwealth enquanto unidade política que nela se alicerça. É por isso que ele é detentor da razão de Estado, encerrando nela os segredos de Estado, os arcana imperii.
4. Entre os séculos XVIII e XIX, a soberania monárquica em que o Rei se identifica com o Estado, e a razão de Estado com o interesse do príncipe, é posta em causa pela convergência entre a ideia democrática da soberania popular e o princípio liberal da publicidade das discussões e decisões. A razão de Estado aparece ligada a uma prática política barroca, centrada na penumbra dos gabinetes ministeriais, assente no segredo necessário à execução de interesses inconfessáveis. Tal segredo seria incompatível com uma era liberal e democrática cujos princípios de legitimidade gravitam em torno de ideias como liberdade de discussão e de imprensa, publicidade e transparência, discussão parlamentar e valorização da opinião pública. A ideia de razão de Estado aludia às razões subjacentes à conduta dos Estados na prossecução dos seus interesses, razões essas que poderiam requerer discrição ou mesmo segredo. Quando estas razões são deslegitimadas e o segredo se torna ilegítimo, paulatinamente deixa de ser possível invocar um interesse do Estado e o próprio Estado torna-se uma estrutura colocada ao serviço de grupos que, com os seus interesses próprios, o ocupam, capturam e controlam. Em substituição da razão de Estado, emergem então as técnicas de propaganda, manipulação e mobilização mediática que servem estes grupos. Por isso, pode-se dizer que hoje, nos arcana imperii subjacentes à arte de governar, já não se encontram os segredos da razão de Estado. Encontram-se antes outros segredos. Encontram-se as técnicas de controlo mediático da população pelas quais se forma a opinião pública, bem como os interesses servidos por tais técnicas.
Bibliografia:
- Diogo Pires Aurélio, Maquiavel e Herdeiros, Lisboa: Círculo de Leitores, 2012;
- Friedrich Meinecke, Die Idee der Staatsräson, München / Berlin: Verlag R. Oldenbourg, 1925;
- Herfried Münkler, Im Namen des Staates. Die Begründung der Staatsraison in der Frühen Neuzeit. Frankfurt: Fischer Verlag, 1987;
- Michel Senellart, Les arts de gouverner, Paris: Seuil, 1995;
- Michael Stolleis, Arcana Imperii und Ratio Status: Bemerkungen zur Politischen Theorie des frühen 17. Jahrhunderts, Hamburg: Vandenhoeck & Ruprecht, 1980;
- Étienne Thuau, Raison d’Etat et pensée politique à l’époque de Richelieu. Paris: Albin Michel, 2000;
- Maurizio Viroli, From Politics to Reason of State, Cambridge: Cambridge University Press, 1992;
- Yves Charles Zarka (org.), Raison et déraison d’État: théoriciens et théories de la raison d’État aux XVI et XVII siècles, Paris: PUF, 1994.
- Regionalização
por Manuel Monteiro, 2024
1. A regionalização exprime a ideia política defensora de uma Forma de Estado em que vigora uma ampla descentralização do poder. Essa descentralização, pressupondo a criação de regiões com poder próprio, tanto pode ser apenas administrativa, como incluir uma forte componente política. Podemos por isso dizer que a regionalização “consiste na atribuição, em maior ou menor grau, da capacidade de decisão política e administrativa à região (entendida como escalão intermédio entre o nível central e local)” (J. L. Ferreira Mendes, «Regionalização», in POLIS, 5, 1987, p. 810). Os partidários desta ideia, mesmo que em geral não coloquem em causa a permanência do Estado unitário, apresentam-se como claros opositores da centralização do poder e consideram que só uma transferência e distribuição desse mesmo poder para entidades territoriais regionais pode corresponder aos seus objectivos políticos.
2. As teses defensoras da descentralização têm as suas raízes em meados do século XIX e encontraram em Portugal ilustres cultores de que é exemplo Marnoco e Sousa que, em 1913, nos seus comentários à Constituição de 1911, dizia que “todos os países civilizados teem admitido, numa escala mais ou menos vasta, o principio da descentralização administrativa” (Marnoco e Souza, Constituição Política da Republica Portuguêsa – Commentario, 1913, p. 589). É certo que o princípio da descentralização administrativa então sustentado não traduzia aquilo que mais recentemente passou a abranger a chamada descentralização territorial, mas não é menos certo que as bases para a existência de um Estado descentralizado e até regional encontram aí as suas principais fontes.
3. O percurso que de então para cá foi feito permite-nos compreender que “o Estado não é hoje a única pessoa colectiva pública territorial. A par dele, várias outras pessoas colectivas públicas de base territorial assumem vastas e importantes atribuições” (Vital Moreira, Sebenta de Direito Constitucional, 2019, p. 547), sendo a regionalização e os seus efeitos um dos factores preponderantes desta nova realidade. É uma realidade também motivada pela perspectiva de que a democracia não pressupõe apenas a existência de um «governo nacional», devendo igualmente contemplar a presença de «governos locais» e de «governos regionais» aptos a responder a problemas que especificamente se colocam nesse plano territorial e que aí devem encontrar as suas soluções.
4. Mas se são indiscutíveis e inegáveis as vantagens decorrentes da descentralização territorial, nada impede que nos questionemos sobre se essa descentralização deve implicar sempre a criação de novos órgãos políticos. A dúvida suscitada poderá até ser reforçada, quando nos deparamos com países de forte tradição municipal e de quase nulo impulso regionalista. Acresce que qualquer discussão sobre a regionalização, nomeadamente em Estados que integram organizações internacionais como a União Europeia, não deverá deixar de analisar o futuro papel do Estado e das regiões no quadro das decisões supranacionais. Por outro lado, e agora num plano puramente nacional, poder-se-á perguntar se uma nova organização territorial do Estado derivada da regionalização justifica que se mantenha inalterada a composição de determinados órgãos políticos nacionais, como é o caso do Parlamento. Significa isto, atentos também aqui às novas realidades, que a reflexão suscitada pela regionalização – nomeadamente em países onde ainda não se verifica – não deve ficar limitada, diríamos mesmo condicionada, ao estrito quadro até aqui existente.
5. Esta questão não deixou de estar presente no debate político em Portugal, principalmente em 1998 quando os portugueses se pronunciaram em referendo contra a instituição de regiões administrativas entendidas como “autarquias supramunicipais, destinadas à coordenação e à solidariedade entre os municípios” (Jorge Miranda, Aperfeiçoar a Constituição, reimp. Coimbra, Almedina, 2021). E ainda que o tema não tenha até agora voltado a suscitar qualquer sobressalto político, não deixam de persistir vozes a considerar que “sem a regionalização perde-se, ainda o que é também grave, a oportunidade de se seguir uma via fecunda de reforço da nossa democracia” (Manuel Porto, «”Estado fragmentado” ou regionalização administrativa?», in 20 Anos da Constituição de 1976, 2000, p. 256). Certo é, independentemente de quem legitimamente pugna pelo regresso do debate, que “a criação de regiões administrativas deixou de ser um imperativo constitucional, transformada que está em mera possibilidade facultada pela Constituição” (Paulo Otero, Direito Constitucional Português, v. II, 2019, p. 640). Sendo uma possibilidade sempre aberta num regime democrático, ela não deixará seguramente de ter em atenção que “não há reformas políticas, económicas ou sociais que vinguem quando não correspondem ao sentimento profundo da Nação” (Marcello Caetano, «A Codificação Administrativa em Portugal», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano 2º, 1934, in Marcello Caetano, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, 1994, p. 445).
Bibliografia:
- L. Ferreira Mendes, «Regionalização», in POLIS, 5, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1987.
- Jorge Miranda, Aperfeiçoar a Constituição, reimp. Coimbra, Almedina, 2021.
- Manuel Porto, «”Estado fragmentado” ou regionalização administrativa?», in 20 Anos da Constituição de 1976, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2000.
- Marcello Caetano, «A Codificação Administrativa em Portugal», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano 2º, 1934, in Marcello Caetano, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, (org. e prefácio de Diogo Freitas do Amaral), Coimbra, Coimbra Editora, 1994.
- Marnoco e Souza, Constituição Política da Republica Portuguêsa – Commentario, Coimbra, F. França Amado, 1913.
- Paulo Otero, Direito Constitucional Português, reimp. da ed. de Abril de 2010, v. II, Coimbra, Almedina, 2019.
- Vital Moreira, Sebenta de Direito Constitucional, Porto, Universidade Lusíada, 2019
- Relativismo
por Manuel Carneiro Frada, 2024
O relativismo representa uma corrente de pensamento segundo a qual a verdade é inacessível à razão humana e esta é, assim, incapaz de produzir afirmações susceptíveis de um juízo de verdadeiro ou falso. Todas elas seriam, portanto, meramente relativas. Tem por objecto as realidades não acessíveis a um conhecimento de tipo físico-empírico ou matemático (e, nesse sentido, da “metafísica”, da “moral”, do bem e do justo). Comprová-lo-ia a pluralidade culturas. Pode ter na sua base uma compreensão de tipo racionalista (sob influência de Kant, admitindo que o conhecimento da realidade em si é inacessível ao sujeito), ou uma atitude antirracionalista, radicalmente subjectivista, baseada na experiência pessoal (de que são exemplo orientações ecléticas de cariz gnóstico-religioso como o New Age, ou o culto ecofeminista da Mãe-Terra).
Consequência do relativismo é o cepticismo moral, que nega aos enunciados morais a possibilidade de uma pretensão de verdade, equiparando-os todos entre si.
É-o igualmente o sincretismo religioso, segundo o qual todas as religiões são, no fundo, todas elas, iguais: importaria apenas e tão só a experiência religiosa de cada um. (Conduz assim a um antropocentrismo religioso, em que o homem, e não Deus, passa a ser o referente último da religião, rejeitando, no fundo, a transcendência deste relativamente a si próprio: em contraste com o entendimento das três religiões monoteístas, e aqui em convergência com aspectos da religiosidade de tipo hindu.)
O relativismo enfrenta aporias teóricas e práticas de grande relevo. Por um lado, no plano lógico, ele defronta-se desde logo com a objecção de que a asserção segundo a qual não pode haver nunca conhecimento verdadeiro ou falso (fora do âmbito físico-empírico) também deve, coerentemente, ser relativizada (de modo absurdo, o relativismo supõe-se verdadeiro). Por outro, no plano prático, deixaria de haver critério intersubjectivamente válido e vinculante para justificar a exigibilidade social de muitos comportamentos necessários à paz e à justiça social – que todos reconhecem e podem ou devem reconhecer (por exemplo, as virtudes de uma boa cidadania) -, assim como a proibição de outros (v.g., a pedofilia, a corrupção, o desprezo das minorias étnicas, as perseguições por motivos de consciência, etc.).
O relativismo desagua por isso num pragmatismo, utilitarismo ou consequencialismo que torna indefesos indivíduos e minorias perante o poder instalado e maiorias sociais conjunturais. Propicia, nessa medida, regimes totalitários e todo o tipo de atentados à dignidade da pessoa humana (de que são exemplos eloquentes o nazismo, o estalinismo, etc.). Deixando de se reconhecer ao pensamento a capacidade de captar, mesmo se com limitações impostas pela perspectiva do sujeito do conhecimento, a verdade, ele transforma-se na racionalização de uma simples praxis. A descrença no papel da razão torna também impossível e radicalmente inútil, apesar da aparência, qualquer diálogo público construtivo acerca do bem, e faz a tolerância perder a sua exigibilidade. Inviabiliza também uma instância racional crítica dos fenómenos sociais, mesmo violentos, dos abusos da maioria, das degenerações ou deturpações do (são) espírito religioso, etc. Despojado de qualquer referência a um ponto fixo (absoluto), o relativismo passa facilmente a ser, ele próprio, supérfluo.
Nenhuma sociedade subsiste, pois, num ambiente radicalmente relativista. E facto é que a pluralidade de culturas e percursos põe também de manifesto um conjunto de conhecimentos fundamentais que sustentam a humanidade, assim como a sedimentação de algumas ordenações morais essenciais, expressando referentes de sentido comuns que manifestam a unidade do ser humano e a sua vinculação a uma verdade totalizante que sobrepassa a experiência histórica e constitui a razão do mundo e de tudo o que existe.
Em abono do relativismo invoca-se frequentemente a tolerância e a necessidade de respeitar a liberdade dos demais: a ninguém seria permitida a pretensão de formular juízos credíveis de validade acerca do caminho certo, recto ou justo. É por vezes apontado como o fundamento da democracia e da possibilidade de concorrência, nesta, de uma pluralidade de opiniões políticas.
Nenhuma destas asserções se apresenta, porém, forçosa ou, mesmo, exacta.
A construção da sociedade política é necessariamente conjuntural, no tempo e no espaço, não definitiva e, portanto, revisível, sendo o princípio (do entendimento) da maioria um critério operativo essencial em ordem à prossecução do bem comum (tanto mais de considerar quanto ele expresse a racionalidade em torno do bem e do justo). Por outro lado, o fundamento da tolerância que mais imuniza dos comportamentos a ela contrários é precisamente uma concepção não relativista da dignidade da pessoa humana, a implicar o respeito pela sua liberdade, e que mantém a abertura a um processo dialógico de convergência para a verdade acerca do bem e do justo. Só essa concepção permite uma visão crítica da história. Ela é preferível, pois apenas ela possibilita uma dinâmica racional de aperfeiçoamento das sociedades humanas.
A crítica ou a superação do relativismo requer o reconhecimento da capacidade da razão humana de aceder à verdade de forma objectiva: numa versão minimalista, entre duas asserções será sempre possível escolher com objectividade a mais verdadeira. Tal reconhecimento constitui uma condição “pedra de toque” também para os relativistas ditos “moderados”. Ele não implica, porém, atribuir-se à razão humana a possibilidade de um conhecimento integral, completo e definitivo da “totalidade do ser” - do humano e das coisas - ela (se se quiser, da verdade como absoluto). Sendo, portanto, compatível com uma maior ou menor relevância da perspectiva do sujeito (nesse sentido, da relatividade do conhecimento humano), a luta da razão humana pela verdade não é, não obstante, uma vã e insuperável ilusão. Entendida deste modo, a pluralidade de opiniões ou culturas (a respeitar) converte-se numa oportunidade de progredir no caminho da verdade; a sua consideração pode mesmo ser uma necessidade com vista a esse fim.
Em última instância, só a orientação para a verdade é capaz de projectar o pensamento humano para lá de si próprio, assegura um sentido à vida de cada um, e torna cada pessoa mais capaz de garantir o respeito da liberdade e da dignidade dos demais, protegendo-a de todas as instrumentalizações, totalitarismos e “lógicas de poder”.
Tu verdad?/ No: la verdad./ Y ven conmigo a buscarla; /la tuya, guardatela. (António Machado)
Bibliografia:
- Vittorio Possenti, Le società liberali al bívio. Lineamenti di filosofia della società, Génova, 1991
- José Antonio Santos, “Tolerancia y relativismo en las sociedades complejas”, in Persona y Derecho, 56 (2007), 177 ss.
- Mário Emílio Bigotte Chorão, “Democracia, relativismo e ameaça totalitária”, in Pessoa humana, direito e política, Lisboa, 2006, 363 ss.
- Joseph Ratzinger, Verdade, valores, poder, Lisboa, 2006.
- Robert Spaemann, «Wahrheit und Freiheit», in Gesammelte Reden und Aufsätze, I, München, 2010, 310 ss.
- Responsabilidades Parentais
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
As responsabilidades parentais, outrora designadas por poder paternal (expressão muito menos ambígua, apenas alterada por imposições de uma linguagem politicamente correta que, contudo, acaba por desvirtuar a incidência subjetiva das ditas responsabilidades, assentes na paternalidade e não na parentalidade), traduzem-se no direito funcional que os pais têm em relação filhos, durante a sua menoridade. Existindo forte controvérsia na doutrina acerca da sua qualificação (ou não) como um direito subjetivo em sentido amplo, são inequívocas as diferenças quanto aos direitos subjetivos stricto sensu, quer porque não são de exercício livre, quer porque estão orientados para a salvaguarda do interesse de um terceiro – o filho –, e não do seu titular. Significa isto que, embora se consubstanciem num poder, o que implica que o menor fique onerado por um dever de obediência, que deve, não obstante, ser conformado tendo em conta a sua progressiva autonomização e o respeito pelos seus direitos de personalidade, tal poder é preenchido no seu conteúdo concreto por uma série de deveres – dever de velar pela segurança e saúde dos filhos, de prover ao seu sustento, de dirigir a sua educação, de representá-los, ainda que nascituros, e de administrar os seus bens. Em termos muito latos, poder-se-ia dizer que os pais ficam investidos num especial dever de garante da incolumidade pessoal dos filhos, garantido o integral desenvolvimento da sua personalidade, ao mesmo tempo que atuam em seu nome na esfera patrimonial. Joga-se aqui o reconhecimento de que o ser humano depende, durante uma parte significativa da sua vida, da família e, mais especificamente, dos seus pais, e concomitantemente o reconhecimento de que o sujeito é pessoa e, portanto, é dotado de uma evidente dimensão relacional, que não é alheia à densificação que se faça dos diversos bens integrados na personalidade tutelada. Ou seja, o exercício das responsabilidades parentais (ou, preferivelmente, do poder paternal) não implica o apagamento da personalidade do filho, tendo de conjugar-se harmoniosamente com o livre desenvolvimento daquela, bem como com a sua privacidade. Impõem-se, porém, cautelas, não só porque o respeito pelas dimensões da personalidade do menor não pode traduzir-se na subversão do sentido de obediência que predica a relação que une os pais aos filhos, como porque o próprio direito ao livre desenvolvimento da personalidade fica sujeito a limites de índole ontológica e axiológica, de tal sorte que não poderá haver invocação do direito sempre que o comportamento do sujeito vise satisfazer um capricho ou envolva um atentado contra a sua dignidade pessoal. Fora da relação com os filhos, as responsabilidades parentais podem analisar-se no quadro da invocação do direito ao livre desenvolvimento da paternidade e da maternidade, o que implica, por um lado, que se prevejam mecanismos de regulação de tais responsabilidades nos casos em que os progenitores não vivem em comunhão, e, por outro lado, que, em sintonia com o ordenamento jurídico constitucional, se assuma que os pais têm a prerrogativa na definição das linhas orientadoras da educação dos seus filhos, não podendo o Estado programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas, tornando, por exemplo, inviável a imposição, nas escolas, de conteúdos programáticos marcados pela ideologia de género. Sendo afetado o direito dos pais ou de um dos pais, pode gerar-se uma pretensão indemnizatória. Simultaneamente, estando em causa um direito que é também um dever, o não cumprimento dos diversos deveres em que ele se refrate pode desencadear responsabilidade perante o próprio filho.
Bibliografia:
- A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, tomo I, Almedina, Coimbra, 2010
- Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, 164 s.
- Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, Centelho, Coimbra, 1981
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- Sistema Eleitoral Maioritário
por Manuel Monteiro, 2024
1. Se entendermos um sistema eleitoral como “o conjunto de regras estabelecidas para definir a forma de votar e o modo de apuramento dos resultados eleitorais, designadamente através da conversão de votos em mandatos” (Diogo Freitas do Amaral, Uma Solução para Portugal, 11ª ed., 1986, p. 69), poderemos entender um sistema eleitoral maioritário como aquele cujas regras atribuem a vitória eleitoral ao candidato que num dado círculo eleitoral obtém o maior número de votos. O sistema eleitoral maioritário está associado à existência de círculos ou circunscrições uninominais de eleição (um só eleito por cada círculo), apesar da chamada representação maioritária poder também conviver com listas de candidatura plurinominais (é, por exemplo, o caso da eleição dos «grandes eleitores presidenciais» nos E.U.A.). Sendo então os círculos uninominais o sufrágio será igualmente uninominal, o que significa dizer que o eleitor vota apenas no candidato da sua preferência.
2. Mas tão importante quanto a identificação de um determinado sistema eleitoral é a compreensão da sua relevância nos sistemas políticos. Com efeito, convirá nunca esquecer que os sistemas eleitorais são nas “democracias representativas modernas, juntamente com os sistemas de partidos, a base de toda a organização política” (Philippe Lauvaux, Les grandes démocraties contemporaines, 4ª ed., 2015, p. 99). Na realidade, quando foi escolhido “o esquema de representação, como um substituto para a reunião dos cidadãos em pessoa” (James Madison, «O Federalista nº 52», O Federalista, p. 477) e quando se assumiu que “um representante é alguém que foi autorizado a agir” (Hanna Fenichel Pitkin, The Concept of Representation, p. 29), os decisores políticos cedo procuraram encontrar as soluções que lhes pareceram mais adequadas para conciliar, entre outros aspectos, «representação» e «governação». Ora essas soluções evidenciam escolhas, elas próprias baseadas em convicções e até interesses políticos, pelo que qualquer sistema eleitoral resultando de uma opção política não pode ser considerado neutro. Não é assim indiferente a decisão a favor de um sistema eleitoral maioritário ou proporcional. Não é indiferente para os partidos e para o papel que têm ou querem ter na sociedade, não é indiferente na relação que se estabelece ou pode estabelecer entre parlamento e governo, como não é indiferente no confronto entre maioria e minoria.
3. Pode desse modo compreender-se que os sistemas maioritários sejam objecto de crítica, desde logo quando se refere que “a regra maioritária implica ditadura da maioria”, precisamente por afastarem aquilo que alguns designam de “democracia de consenso” (Arend Lijphart, As Democracias Contemporâneas, 1989, pp. 41-42). Realçando a ideia de que “o sistema uninominal nega o próprio princípio da proporcionalidade” (Giovanni Sartori, Elementi di teoria politica, 3ª ed., p. 340), princípio que é apresentado como o único promotor e defensor da dita democracia consensual, os críticos dos sistemas eleitorais maioritários tendem muitas vezes a considerar que democracia, e principalmente democracia pluripartidária, é sinónimo de sistema eleitoral proporcional.
4. Importa ainda precisar que os sistemas eleitorais maioritários tanto podem ser sistemas de maioria simples (aqueles em que é eleito o candidato que no seu círculo de candidatura obtém mais votos – é o sistema praticado na eleição do parlamento britânico), como de maioria absoluta, um sistema introduzido por influência da Igreja Católica (Pierre Martin, Les systèmes électoraux et les modes de scrutin, 2006, p. 38). Neste último caso exige-se que o candidato obtenha mais de metade dos votos expressos, caso contrário será necessário realizar uma segunda volta. É o sistema em vigor em Portugal, nas eleições presidenciais (art. 126º, da Constituição da República Portuguesa), como é também o sistema adoptado nas eleições legislativas francesas ainda que com particularidades distintas das exigidas nas presidenciais (mesmo que um candidato obtenha 51% dos votos, eles terão de corresponder a pelo menos 25% dos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais e a passagem à segunda volta está reservada aos candidatos que tenham obtido na primeira volta um mínimo de votos correspondentes a 12,5% dos eleitores inscritos – art. L 126, 2º, e art. L 162º, do Código Eleitoral francês). V - Independentemente das opções seguidas terá na nossa opinião de se reconhecer que o sistema maioritário é aquele que melhor garante a ligação entre eleitor e eleito. Se nos sistemas exclusivamente proporcionais, principalmente aqueles em que as listas de candidatura são fechadas, o voto é dado a um partido e os candidatos são na sua esmagadora maioria desconhecidos dos eleitores, já nos sistemas maioritários isso não sucede. Com sistemas proporcionais temos essencialmente democracia de partidos, com sistemas maioritários temos preferencialmente democracia de e dos cidadãos. Como é evidente, o sistema maioritário não está isento de falhas, nem é imune a juízos menos positivos, mas tende a garantir uma maior proximidade entre quem representa e quem é representado.
Bibliografia:
- Alexander Hamilton, James Madison, John Jay, O Federalista, 2ª ed., [trad. para port. de Viriato Soromenho- Marques e João C. S. Duarte], Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
- Arend Lijphart, As Democracias Contemporâneas, [trad. para port. de Alexandre Correia e Francisca Bagio], Lisboa, Gradiva, 1989.
- Diogo Freitas do Amaral, Uma Solução para Portugal, 11ª ed., Mem Martins, Europa-América, 1986.
- Giovanni Sartori, Elementi di teoria politica, 3ª ed., Bologna, Mulino, 1995. [Tradução nossa]
- Hanna Fenichel Pitkin, The Concept of Representation, Los Angeles, University of California Press, 1972. [Tradução nossa]
- Philippe Lauvaux, Les grandes démocraties contemporaines, 4ª ed., Paris, PUF, 2015. [Tradução nossa]
- Pierre Martin, Les systèmes électoraux et les modes de scrutin, 3ª ed., Paris, Montchrestien, 2006. [Tradução nossa].
- Sistema Eleitoral Misto
por José Ribeiro e Castro, 2024
1. São sistemas eleitorais mistos aqueles que conjugam elementos de sistemas eleitorais maioritários (elegendo deputados individualmente, em círculos uninominais) e proporcionais (elegendo proporcionalmente deputados por listas, em círculos plurinominais). Nos sistemas mistos, por isso, cada eleitor dispõe de um duplo voto: por um lado, vota num candidato uninominal e, por outro, numa candidatura de lista plurinominal. O duplo voto pode ser exercido ou no mesmo boletim, que apresenta as duas escolhas (como sucede na Alemanha e na Nova Zelândia), ou em boletins separados para cada uma das escolhas (como se verifica na Federação Russa).
2. Estes sistemas eleitorais mistos podem ser de dois tipos: os sistemas mistos paralelos e os sistemas mistos de compensação. No primeiro modelo, o sistema misto paralelo, como na Federação Russa, os eleitos uninominais e em listas plurinominais constituem contingentes diferentes, absolutamente separados, que entram, em paralelo, no Parlamento, de acordo com as respetivas regras de apuramento (maioritário nos uninominais, proporcional nos plurinominais). No segundo modelo, o sistema misto de compensação, como na Alemanha, os círculos uninominais e os plurinominais estão articulados entre si e são complementares, prevalecendo, na composição parlamentar, a percentagem definida pela votação proporcional. Este sistema também é designado de sistema de representação proporcional personalizada, querendo transmitir a ideia de que o sistema é proporcional, mas compreende a escolha personalizada de metade dos deputados, sem afetar a proporcionalidade da representação parlamentar.
3. Embora em menor grau do que nos sistemas maioritários exclusivos, os sistemas mistos paralelos provocam ainda distorção da proporcionalidade parlamentar, em virtude do peso relativo do contingente de deputados eleitos em círculos uninominais. Imaginemos que a proporção nacional do maior partido é de 28% e que mantém, aproximadamente, esta percentagem em todo o país, não sendo superado por nenhum outro em qualquer círculo uninominal: se os deputados uninominais forem 50% do Parlamento, aquele partido, com cerca de 28% nos círculos uninominais, conquista logo 50% dos lugares. Nos sistemas mistos de compensação, esta distorção não acontece, sendo os deputados uninominais eleitos descontados aos que o respetivo partido teria a eleger nas listas proporcionais – ou aplicando-se outros sistemas de compensação, que assegurem o respeito da proporcionalidade da representação parlamentar.
4. Pode fazer-se ainda outra classificação dos sistemas mistos: os paritários e os não-paritários. Nos primeiros, os candidatos uninominais são em número igual ao dos plurinominais (como na Alemanha e na Federação Russa). Nos segundos, não são, havendo os casos mais variados: casos de pequena diferença entre deputados eleitos em círculo uninominal e em círculo plurinominal (como na Bolívia) e casos de diferença acentuada ou mesmo muito acentuada entre um lote e outro (como na Albânia); assim como casos em que o lote maior é o de uninominais (como na Albânia) e outros em que o maior número é de plurinominais (como na Tunísia).
5. Em Portugal, desde a revisão constitucional de 1997, o artigo 149.º, n.º 1 da Constituição prevê uma reforma eleitoral que pode introduzir o sistema de representação proporcional personalizada. Diz o preceito: “Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respetiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.” Ou seja, o sistema misto de círculos uninominais e plurinominais, devendo assegurar-se a representação proporcional. Em 1998, chegou a tentar-se a introdução do sistema misto, por projetos diferentes do governo PS e do PSD; mas tudo morreu com vetos cruzados na sessão plenária de 23 de abril de 1998, nunca mais se retomando a reforma. A SEDES e a APDQ retomaram a ideia e, em 2019, apresentaram novo projeto de lei à Assembleia da República, a coberto de uma petição subscrita por 7.970 cidadãos, com o título “Legislar o poder de os cidadãos escolherem e elegerem os seus deputados”. Porém, nenhum partido aproveitou para a converter em iniciativa legislativa formal.
6. Os sistemas mistos são, hoje, vistos por muitos autores não tanto como um compromisso entre sistema proporcional e maioritário, mas como uma nova espécie de sistema eleitoral, um sistema próprio. “Ferrara e os seus colegas não têm dúvidas de que a tendência para considerar os sistemas eleitorais mistos como um compromisso está errada; devem antes ser tratados como uma "espécie distinta" de sistemas eleitorais (2005: 4).” – David M. FARRELL, op.cit., pp. 118, referindo-se a Ferrara, Federico, Erik Herron e Misa Nishikawa (2005), Mixed Electoral Systems: Contamination and its Consequences.
Referências Bibliográficas:
- DAVID M. FARRELL, Electoral Systems – A Comparative Introduction, 2nd Edition, Red Globe Press, 2011
- MANUEL BRAGA DA CRUZ (coordenação e seleção de textos), Sistema eleitorais: o debate científico – Edição patrocinada pela Presidência do Conselho de Ministros, Imprensa do Instituto de Ciências Sociais, 1998
- MANUEL MEIRINHO MARTINS, Representação Política, Eleições e Sistemas Eleitorais – Uma introdução, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - Universidade de Lisboa, 2.ª edição, 2015
- MICHAEL GALLAGHER e PAUL MITCHELL (editado por), The Politics of Electoral Systems, Oxford University Press, 2008
- PIERRE MARTIN, Les systèmes électoraux et les modes de scrutin, 3.e édition, Montchrestien, 2006
- Sistema Eleitoral Proporcional
por Manuel Monteiro, 2024
1. O sistema eleitoral proporcional “surgiu no contexto de mudanças sociais profundas nos finais do século XIX e está associado à ascensão dos partidos operários” (Dieter Nohlen, Sistemas Electorales y Partidos Políticos, 1994, pp. 91-92). A sua grande defesa em Portugal foi feita em 1878, por António Cândido, ao dizer que “a representação política deve ser proporcional. Não satisfazendo a esta condição, é uma falsidade e é um perigo”. Ainda de acordo com as suas palavras “todo o cidadão que é eleitor, tem direito a ser representado”, pelo que “não é a lei da maioria, mas sim á lei da proporcionalidade que a eleição deve satisfazer” (António Cândido, Condições Científicas do Direito de Sufrágio – Lista Múltipla e Voto Uninominal, 1998, p. 105 e pp. 106-107). Trinta e três anos depois da apresentação desta tese, Portugal adoptaria este sistema nas eleições para a Assembleia Constituinte republicana, em 1911, ainda que apenas nos círculos eleitorais de Lisboa e do Porto. Fê-lo depois da Bélgica, em 1898, da Finlândia, em 1906 e da Suécia, em 1907. Mas fê-lo quer antecipando o que viria a ficar consagrado na Constituição portuguesa de 1976, quer em nome da ideia segundo a qual “só a representação proporcional leva à constituição de uma assembleia à imagem do eleitorado, na qual tomem assento todas as tendências políticas significativas do país”. (Jorge Miranda, Direito Eleitoral, 2ª ed., 2021, p. 84).
2. Percebemos assim que o sistema eleitoral proporcional tem por objectivo “atribuir a cada partido ou grupo de opinião um número de mandatos proporcional à sua força numérica” (Jean-Marie Cotteret, Claude Emeri, Les Systèmes Électoraux, 1994, pp. 54-55) . É um sistema que procura garantir “uma repartição mais equitativa dos mandatos entre os diversos concorrentes, outorgando naturalmente mais lugares aos mais votados, mas permitindo, ao mesmo tempo, que os que atingem um resultado mais modesto, possam, apesar de tudo, assegurar representação” (José de Matos Correia, Ricardo Leite Pinto, Lições de Ciência Política e Direito Constitucional – Eleições, Referendo, Partidos Políticos e Sistemas Constitucionais Comparados, 2018, p. 46). E para que estes objectivos possam ser alcançados o sistema eleitoral proporcional é apenas compatível com círculos plurinominais de eleição, o que pressupõe a natural existência de um escrutínio de listas de candidatura.
3. No entanto, apesar de nos encontrarmos perante um escrutínio de listas importa perceber como elas se apresentam aos eleitores, precisamente para compreendermos se estes têm a possibilidade de alterar a disposição dos candidatos apresentada ou se, pelo contrário, essa disposição é inalterável. No primeiro caso deparamo-nos com os designados sistemas proporcionais com «listas abertas» – também chamados «sistemas de representação proporcional personalizada» –, já no segundo caso estamos diante sistemas proporcionais com «listas fechadas». Quando as listas são abertas os eleitores podem indicar as suas preferências individuais em relação aos candidatos apresentados, significando isso que, após o apuramento do número de mandatos que caberá a cada uma das listas concorrentes, os eleitos serão os escolhidos pelos eleitores independentemente da ordem de apresentação inicial (é, por exemplo, o sistema em vigor na Finlândia). De modo distinto, tal como sucede em Portugal e em Espanha, a lista fechada “restringe efetivamente a escolha dos eleitores à sigla do partido, uma vez que não permite qualquer alteração na ordem dos candidatos apresentados pelo partido” (Josep M. Colomer, Cómo votamos, 2004, p. 98).
4. Mas a compreensão dos sistemas eleitorais proporcionais não dispensa o conhecimento das fórmulas ou dos métodos que habitualmente lhes estão associados para a conversão dos votos em mandatos, pelo que é sempre necessário fazer a distinção entre o sistema eleitoral propriamente dito e o método seguido para a definição exacta do número de eleitos. Na realidade, a opção por um dos vários métodos de conversão dos votos em mandatos, sejam eles do quociente (quota simples, quociente com distribuição pelo mais forte resto, quociente com distribuição pela média mais forte, quociente rectificado ou de Hagenbach-Bischof) ou do divisor (de que são exemplo o método da média mais alta d`Hondt, o método de Sainte-Laguë ou o método de Sainte-Laguë corrigido), tem sempre consequências no plano da representação partidária. E isso nunca é alheio ao posicionamento que os partidos políticos adoptam, como foi de resto o que se verificou em Portugal, na Assembleia Constituinte, quando PS e PSD defenderam a representatividade proporcional e o método d`Hondt enquanto o CDS e o PCP lhe foram contrários. Os primeiros por saberem que este método os favoreceria, os segundos por saberem que isso os poderia prejudicar.
Bibliografia:
- L. Ferreira Mendes, «Regionalização», in POLIS, 5, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1987.
- António Cândido, Condições Científicas do Direito de Sufrágio – Lista Múltipla e Voto Uninominal, Coimbra, Universidade de Coimbra-Coimbra Editora, 1998.
- Dieter Nohlen, Sistemas Electorales y Partidos Políticos, [trad. para castelhano de Petra Bendel e Xiomara Navas], México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1994.
- Jean-Marie Cotteret, Claude Emeri, Les Systèmes Électoraux, Paris, PUF, 1994.
- Jorge Miranda, Direito Eleitoral, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2021.
- José de Matos Correia, Ricardo Leite Pinto, Lições de Ciência Política e Direito Constitucional – Eleições, Referendo, Partidos Políticos e Sistemas Constitucionais Comparados, Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2018.
- Josep M. Colomer, Cómo votamos – Los sistemas electorales del mundo: passado, presente y futuro, Barcelona, Gedisa, 2004.
- Soberania
por Francisco Carmo Garcia, 2024
1. A melhor definição de soberania continua a ser a de Jean Bodin, exposta em 1576, que faz dela o «poder absoluto e perpétuo de uma república». Ou seja, faz dela o poder característico de uma comunidade política, que a distingue dos restantes tipos de associação humana. Com efeito, a primeira vez que o termo «soberano» (souverain) foi utilizado, pelo jurista francês do século XIII Phillippe de Beaumanoir, surgiu como significante do poder que distinguia o rei – ou o barão – dos seus súbditos. Haveria de ser dito que a soberania era «perpétua», «absoluta», «indivisível» e «inalienável». O mesmo é dizer que é o poder irresistível, para além do qual é impossível conceber qualquer outro, e foi nesse sentido que Carl Schmitt reivindicou para o soberano o poder de decidir sobre a «excepção». A soberania residiria em quem fosse capaz de decidir quando a norma deixa de ser aplicável, ou seja, no momento em que a operacionalidade da ordem jurídica instituída estivesse em causa. É por isto que os teóricos clássicos da soberania concordam nas suas «marcas» essenciais: a capacidade de fazer a guerra, o poder de fazer as leis, o direito de punir. A soberania é, assim (e antes de tudo o mais), um princípio de ordem política. É a soberania quem cria a ordem política e é ela que a mantém.
2. Esta visão da soberania como criadora de ordem evoca, desde logo, a omnipotência divina. Com efeito, o conceito derivou dos debates teológicos que tiveram lugar na era medieval sobre o poder de Deus, os quais seriam usados no debate político. Podemos dizer que a soberania foi a tradução temporal da omnipotência divina. Não é por acaso que as teorias da soberania surgiram quando a reivindicação do Papa em intervir na esfera temporal encontrou a oposição do poder temporal. Foi a época em que a doutrina dos «dois gládios» reivindicou a subordinação dos príncipes ao poder eclesiástico, e levou ao surgimento das famosas doutrinas do «direito divino», primeiro do Imperador, depois dos reis, em oposição às doutrinas papais. Era o tempo de um gravíssimo conflito entre autoridades que reivindicavam jurisdições sobrepostas. Esta desordem pioraria com a reforma protestante, que multiplicou as facções religiosas. Foi precisamente esta desordem que Bodin viveu, e o seu conceito de soberania foi a solução para resolver este problema. A soberania surge como o conceito que, elevando-se acima de todos os poderes em contenda, assume e integra toda esta diversidade política e religiosa. Nessa medida, a soberania foi o princípio de ordem descoberto quando todas as reivindicações políticas e religiosas existentes não eram capazes de resolver, por si mesmas, a desordem.
3. Sendo o «maior poder», a soberania junta as duas faces omnipresentes no conceito de poder: a potestas e a potentia. A soberania é tanto o maior poder físico como o maior poder jurídico. Esta articulação da soberania encontrou o seu intérprete clássico em Hobbes. É summa potentia porque junta o poder de todos os indivíduos que compõem a comunidade política, porque age como vontade de todos eles; é summa potestas porque age por direito, porque se baseia na transferência do direito inalienável dos indivíduos que a compõem. Esta «vontade comum» torna-se operacional mediante o recurso a um conceito que nunca mais abandonaria a soberania: a representação. Aquela vontade comum que configura a soberania como maior poder age como «representante» dos elementos que a constituem – o Estado é soberano na medida em que representa os governados, a «sociedade» ou a «nação». A soberania estaria, assim, ancorada em dois pilares: vontade e representação. Os dois vão estar amiúde em tensão, e os teóricos da soberania faziam pendê-la mais para um lado ou para o outro. Por exemplo, Rousseau faz corresponder a soberania à vontade, dizendo que esta é impossível de ser representada sem ser alienada – a soberania, como «vontade geral», teria de equivaler o mais derradeiramente possível à vontade dos governados. Em toda a história moderna do Ocidente vemos este movimento para eliminar o recurso à representação e fazer da soberania uma vontade autêntica, sem mediadores (o fascismo de Gentile é exemplo ilustrativo).
4. A soberania é uma ideia moderna. O seu advento correspondeu ao momento de emancipação do político face ao teológico, e serviu, nesse momento-chave da história europeia, como grande princípio de ordem. Fez do Estado a unidade política por excelência. Hoje é comum ouvirmos falar da «crise da soberania» como parte da «crise do Estado»: dizem-nos que o Estado é «exíguo», que não consegue cumprir devidamente a sua função, que é suplantado por instituições e organizações supranacionais, de um lado, e por poderes regionais e locais, do outro. Já antes desta crise do Estado soberano, Harold Laski dizia que a soberania era ilusória numa sociedade liberal onde múltiplas instituições da sociedade civil cumpriam as mais diversas funções: o Estado colocava-se perante rivais internos como a Igreja, os sindicatos, as organizações patronais, etc. A estes rivais internos acrescem hoje as multinacionais, a ONU, as ONGs de todo o tipo… Esta «crise da soberania» ou «crise do Estado» não surge, portanto, como algo novo. Sabendo de onde veio a soberania, podemos supor que esta nova configuração aparentemente policêntrica do poder corresponde a uma nova crise da ordem, no sentido lato que lhe fora dado na Europa tardo-medieval.
Bibliografia:
- Jean Bodin, Les Six Livres de la République, Livro I, Edição de Christiane Frémont, Marie-Dominique Couzinet e Henri Rochais. Paris: Fayard, 1986
- Thomas Hobbes, Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Common-Wealth Ecclesiastical and Civil. Cambridge: Cambridge University Press, 1996
- Harold Laski, Studies in the Problem of Sovereignty. Oxford: Oxford University Press, 2010
- Miguel Morgado, Soberania. Dos seus Usos e Abusos na Vida Política, Lisboa: Dom Quixote, 2021
- Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. Tradução de Hugo Barros, Lisboa: Edições 70, 2023
- Carl Schmitt, Teologia Política, Quatro Capítulos sobre o Conceito de Soberania, Tradução de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Crítica XXI, 2023
- Diogo Pires Aurélio. «A Soberania como Vontade e Representação». Maquiavel e Herdeiros. Lisboa: Temas e Debates, 2012
- Socialismo
por Paulo Otero, 2024
1. O moderno socialismo, expressando uma conceção política de origem franco-britânica, surgida nos anos de 1830 a 1840, por via de Saint-Simon e de Robert Owen, é uma decorrência da Revolução Francesa, visando edificar uma sociedade igualitária e mais justa, por reação ao individualismo e às situações de miséria social do liberalismo, sem prejuízo de as suas raízes mais remotas se encontrarem na Antiguidade Clássica (v.g., A República de Platão) e na Idade Moderna (v.g., A Utopia de Tomás More, A Cidade do Sol de Tomás Campanella ou os Diggers liderados por Gerrard Winstanley).
2. O socialismo envolve três preferências estruturais: (i) prefere a intervenção do Estado no plano económico, social e cultural, em vez de uma postura de abstenção, assente na valorização do indivíduo, da sociedade civil e do mercado; (ii) em caso de conflito entre a igualdade e a liberdade, confere primado à primeira, subordinando os direitos individuais a razões decorrentes da garantia de direitos e de interesses da coletividade; (iii) sobreposição da propriedade coletiva à propriedade privada, fazendo da dinamização daquela, por via de confisco, da nacionalização ou de uma tributação intolerável, um propósito político, dentro de um sistema económico de direção central ou de um sistema de mercado sujeito a forte intervenção pública.
3. O socialismo conheceu, ao longo dos séculos XIX a XXI, diferentes modelos, desde logo na sua relação com o Estado e a economia, podendo dizer-se que existem quatro grandes famílias socialistas: (i) a família socialista que aceita o pluralismo ideológico e o capitalismo, convivendo com um sistema económico de mercado com preocupações sociais, falando-se em “socialismo democrático”, o qual permite recortar uma orientação económica mais coletivizadora ou, em sentido diferente, mais neoliberal, acompanhada de uma política de subsídios a grupos sociais mais vulneráveis, promovendo a sua dependência financeira do Estado e, por essa via, a respetiva captura política e inerente fidelização eleitoral; (ii) a família socialista que, negando o pluralismo político e uma economia de mercado, pretende uma rotura com a tradição liberal da liberdade e da propriedade, defendendo a ditadura do proletariado e a edificação de uma sociedade sem classes, num propósito último de abolição do Estado, visível no “socialismo marxista-leninista”; (iii) a família socialista que, negando o pluralismo político, permite o funcionamento de uma economia de direção central totalmente imersa numa prática capitalista, tal como sucede com a República Popular da China, podendo falar-se em “socialismo chinês”: (iv) a família socialista que, tripudiando e descaraterizando o pluralismo e a economia de mercado existentes, tolera as instituições democráticas, subvertendo-as e servindo-se delas para chegar ao poder e depois se perpetuar, numa difícil convivência com a oposição política, tal com sucede com o “socialismo populista” da Venezuela de Chávez e de Maduro ou, previsivelmente, com os partidos políticos de extrema-esquerda existentes nas democracias ocidentais, se assumissem responsabilidades governativas exclusivas.
Bibliografia:
- EICHLER, Willi, Zur Einführung in den demokratischen Sozialismus, Bonn, 1973
- NEMO, Philippe, Histoire des Idées Politiques aux Temps Modernes et Contemporains, Paris, 2009, pp. 779 ss.
- PRÉLOT, Marcel; LESCUYER, Georges, Histoire des Idées Politiques, 12ª ed., Paris, 1994, pp. 458 ss.
- SOTELO, Ignacio, “Socialismo”, in MELLÓN, Joan Antón (ed.), Ideologías y Movimentos Políticos Contemporáneos, 2ª ed, reimp., Madrid, 2008, pp. 79 ss.
- Subsidiariedade
por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. A subsidiariedade é um princípio de organização social segundo o qual uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, substituindo-a ou privando-a das suas competências: deve antes potenciá-la e apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudar a coordenar a sua acção com a das outras instâncias sociais, tendo em vista o bem comum. Isto significa que a responsabilidade pela actuação pública, quando necessária, cabe à entidade competente mais próxima possível das pessoas diretamente afectadas por essa actuação; ou, por outras palavras, que as questões sociais e políticas devem ser tratadas ao nível mais imediato ou local que seja consistente com a sua boa resolução. Nestes termos, ao Estado correspondem principalmente deveres de abstenção, mas também deveres de acção: os específicos das funções de soberania, e os supletivos e de assistência, quando requeridos ou delegados. Em suma, o Estado deve deixar viver e “respirar” em liberdade, e não absorver, “secar” ou infantilizar os cidadãos, de acordo com o antigo adágio: Civitas propter cives, non cives propter civitatem.
2. A genealogia do conceito de subsidiariedade pode vislumbrar-se em Aristóteles, Tomás de Aquino, Althusius, Locke, Stuart Mill, Proudhon, Tocqueville ou Jellinek, entre outros. Mas é justo reconhecer que esse princípio encontra o seu desenvolvimento conceptual mais elaborado na doutrina social da Igreja Católica, nomeadamente na Encíclica Quadrigesimo Anno (1931) do Papa Pio XI. Entretanto, esse princípio foi acolhido expressamente (embora nem sempre respeitado…) no Tratado Maastricht (1992) da União Europeia, na Constituição portuguesa (1997) e nos ordenamentos de outros Estados membros.
3. Pode distinguir-se entre “subsidiariedade vertical” – aquela que deve vigorar entre os vários níveis hierárquicos das instituições políticas (supranacionais, nacionais, regionais e locais), regulando a divisão de competências entre eles – e “subsidiariedade horizontal” – aquela que articula a relação entre o Estado e a sociedade civil, reservando àquele funções de suplência e amparo, apenas quando os cidadãos (quer individualmente considerados, quer voluntariamente associados) não forem capazes, por si sós, de cumprir os seus deveres e exercer os seus direitos. Neste segundo sentido, o princípio da subsidiariedade favorece uma composição diversificada, plural, vibrante e densa da sociedade civil e do espaço público, composto de numerosas sociedades menores, independentes do Estado: famílias, clubes, igrejas, corporações profissionais, empresas, sindicatos e associações várias, e respectivas tradições e convenções particulares.
4. A subsidiariedade configura: um princípio de justiça (de direito natural), na medida em que cada indivíduo deve exercer pessoalmente os direitos necessários ao cumprimento dos seus deveres e responsabilidades; um princípio democrático, uma vez que favorece a participação dos cidadãos e a organização da sociedade de baixo para cima; um princípio liberal e emancipador, enquanto limita os poderes do Estado e promove a autonomia, liberdade, iniciativa e sentido de responsabilidade das pessoas; um princípio “comunitário”, porque estimula o desempenho das famílias, comunidades locais e sociedades intermédias (contra a perspectiva de uma “sociedade” massa de indivíduos atomizados, isolados e indefesos, perante um Estado imenso); e um princípio de competência, porque é mais provável que se governe bem aquilo que é próprio e próximo.
5. O contrário do princípio da subsidiariedade consiste precisamente em considerar que a iniciativa dos cidadãos e da sociedade civil é que deve ser subsidiária relativamente à acção do Estado, tal como acontece nos regimes mais ou menos autoritários ou jacobinos. O princípio da subsidiariedade contrasta com formas intrusivas de centralização, burocratização, controlo, assistencialismo público e presença injustificada e excessiva do Estado (ou das instituições supranacionais) no espaço público: quer na educação (o “Estado mestre-escola”), quer na economia (o “Estado patrão”), quer na responsabilidade social (o “Estado ama-seca”), quer na Administração Pública, quer nas relações internacionais.
Bibliografia:
- Sílvia Mangerona, Subsidiariedade: Doutrina Política e Modelo de Estado, Cascais: Princípia, 2021
- Thomas Behr, Social Justice and Subsidiarity: Luigi Taparelli and the Origins of Modern Catholic Social Thought, Washington DC: Catholic University of American Press, 2019
- Michelle Evans and Augusto Zimmerma, Global Perspectives on Subsidiarity, Springer, 2016
- Margarida Salema, O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política, Coimbra: Coimbra Editora, 2003
- Andreas Féllesdal, “Survey Article: Subsidiarity”, The Journal of Political Philosophy: Volume 6, Number 2, 1998, pp. 190-218
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- Tolerância
por Manuel Carneiro da Frada, 2024
A tolerância pode ser considerada como o acto ou o efeito da virtude cívica da convivência e do respeito para com opiniões e modos de vida diversos. Pressupõe, portanto, a divergência. Refere-se, sobretudo, ao plano das concepções gerais da existência e do mundo, das convicções políticas e da religião, assim como dos comportamentos correspondentes.
Na história do pensamento, a tolerância liga-se à afirmação da autonomia dos indivíduos e à liberdade do pensamento desde a idade moderna, avultando os escritos que Locke lhe dedicou. A sua importância torna-se especialmente evidente, enquanto base e garante da paz social, em contextos pluralistas e nos ambientes multiculturais que marcam muitas das sociedades da actualidade.
Enquanto atitude cívica, a tolerância não implica, em si mesma, qualquer compromisso com um cepticismo filosófico ou um relativismo moral, segundo os quais ninguém estaria em condições de produzir afirmações, no plano filosófico ou moral, com pretensão de verdade. Pode, sempre, respeitar-se alguém – como lhe é devido - sem subscrever as suas opiniões e sem que as suas compreensões tenham, só por isso, de ser consideradas tão válidas e atendíveis como quaisquer outras. A “abertura ao outro” que implica opõe-se, quer ao autoritarismo - aceitando o espaço do livre-arbítrio dos demais – quer ao dogmatismo, reconhecendo a possibilidade do contributo do pensamento alheio em ordem ao que constitui, em termos objectivos, o verdadeiro ou o bem (contributo a que se opõem, porém, “culturas de cancelamento” ideologicamente motivadas).
Na base da tolerância encontra-se a dignidade da pessoa humana e a necessidade do respeito da liberdade do pensamento e de acção de cada um. Ela radica na igual participação de todos da mesma natureza humana. Pode requerer, por isso, legitimamente, reciprocidade. Naturalmente, só um conceito não relativista de bem e de verdade – que a todos vincula – fundamenta e assegura definitivamente a tolerância, preservando a pessoa de todas as instrumentalizações e relativizações na ara de pragmatismos ou utilitarismos cegos.
Nenhuma sociedade culturalmente plural é susceptível de subsistir sem tolerância. Contudo, se todas as afirmações em matéria moral ou social puderem ser tão verdadeiras ou falsas como as suas contrárias – se todas forem radicalmente equiparáveis entre si -, nada pode também exigir-se, proibir-se ou esperar-se legitimamente, dos demais, na vida social. O indiferentismo, a anarquia, a intolerância e a exposição inexorável a meras lógicas de poder e de domínio são consequência da confusão entre a tolerância acima caracterizada como virtude cívica ou social e uma tolerância enquanto expressão de uma perspectiva relativista da justiça e da ética. Esta, ao descrer da comum razão humana, não permite nem é capaz de prover uma base não arbitrária para a convivência pacífica dentro da diversidade humana.
O fundo comum possibilitador de uma sã convivência, embora sensível às idiossincrasias de cada povo, tempo e lugar, há-de ser racionalmente compartilhável por todos, como expressão de uma natureza comum que se realiza no tempo e no espaço. A tolerância encontra-se, assim, num intervalo de tensão entre a cultura historicamente moldada, e a racionalidade que a sobrepassa e pode ser dela, no diálogo intersubjectivo, instância crítica.
Na actualidade, uma das principais justificações da tolerância encontra-se na salvaguarda do que se entendem ser direitos humanos essenciais: tão nuclearmente, aliás, que eles hão-de ser assegurados mesmo na defesa da sociedade tolerante contra os seus inimigos. Tal implica uma concepção substancialista da dignidade humana. Sem esse referente objectivo fixo, situado para lá de si mesma, a tolerância não vincula a um diálogo social susceptível de fazer evoluir dialecticamente, sob a égide da razão, as diversas posições em ordem a paradigmas mais perfeitos de integração social.
A tolerância requer o respeito incondicional pelos demais. São incompatíveis com ela, não só, v.g., as perseguições e os genocídios por motivos de raça, consciência, crença, religião, etc., mas também as selecções eugénicas de embriões, o aborto a pedido e a eutanásia praticada, como frequentemente, em quem não tem capacidade actual de entender ou querer.
O espaço da tolerância social mostra-se móvel. Tem variado ao sabor da história e das culturas, das pulsões socio-identitárias de (auto-)preservação, e em função do tipo e grau de intensidade da pluralidade existente em cada sociedade. Encontra-se hoje muito expandido como consequência do reconhecimento da liberdade individual, compreendendo-se, porém, a defesa de uma sociedade contra os intolerantes que põem em causa esse espaço.
A tolerância não é apenas uma atitude cívica ou social. Apresenta-se também juridicamente moldada e devida. Tal como em muitos estados da actualidade, ela encontra-se entre nós constitucionalmente fundada no princípio da igualdade e da não discriminação, assim como no reconhecimento de direitos fundamentais elementares como a liberdade de pensamento, de expressão e de religião. Trata-se de conseguir um espaço de tolerância garantido pela neutralidade do Estado, susceptível de ser partilhado por todos, e dentro do qual possam expressar-se e conviver diversos entendimentos do bem ou da verdade.
A tolerância, como se disse, não é igualitarismo nem indiferença. Por isso, dentro do seu espaço (normativamente assegurado), é justo considerar a sensibilidade das maiorias, assim como o entendimento do bem comum que maioritariamente se afirme hic et nunc. Ela harmoniza-se, portanto, com a regra da maioria própria das democracias representativas. Estas representam uma forma de institucionalização da tolerância política. A sua exposição à possibilidade de abusos de maioria, assim como a insusceptibilidade de por si só garantir outras dimensões da tolerância implicam também uma concepção não relativista do Direito na sua função de assegurar o espaço da tolerância.
Nesta sua função compreende-se que, embora uma ordem jurídica não deva senão limitadamente tomar partido entre concepções específicas de bem ou de verdade, nem por isso ela deixa de se encontrar vinculada ao que constituam objectivamente exigências indeclináveis da sociedade tolerante em si mesma considerada. Há, por isso, bens que não podem deixar de ser tutelados (v.g., a participação numa sociedade tolerante através da protecção da vida). Tal não obsta a que, salvaguardados os marcos da sociedade tolerante, se admitam condutas em si mesmas reprováveis, porque assim o reclamam, apesar disso, o respeito pela liberdade individual da pessoa humana ou a paz social (v.g., o consumo de droga). O princípio da harmonização (ou, se se preferir, da não beligerância) entre Direito e Moral – reclamado pela unicidade do ser humano nas várias dimensões que ele comporta - impõe apenas que a ordem jurídica respeite a ordem ética, e não obrigue nem declare lícito aquilo que se apresenta moralmente ilícito.
Bibliografia:
- Ana Gaudêncio, O intervalo da tolerância nas fronteiras da juridicidade: fundamentos e condições de possibilidade da projecção jurídica de uma (re)construção normativamente substancial da exigência de tolerância, Coimbra, 2011
- Artur Kaufmann, “Das Prinzip Toleranz- Rechtsphilosophie in der pluralistischen Risikogesellschaft”, in Rechtsphilosophie, München, 1997, 295 ss.
- John Locke - Epistola de tolerantia, 1689
- José Antonio Santos – “Tolerancia y relativismo en las sociedades complejas”, in Persona y Derecho, 56 (2007), 177 ss.
- Joseph Ratzinger – Fé, verdade e tolerância, Lisboa, 2006.
- Paulo Mota Pinto – “Nota sobre o “imperativo de tolerância” e seus limites”, in Estudos em Memória do Conselheiro Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, 745 ss.
- Transumanismo
por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. O transumanismo pode caracterizar-se como uma corrente do pensamento que visa transformar a condição humana, superando as suas limitações e alcançando as suas máximas potencialidades, de ordem física e mental. Se ao longo dos tempos as tentativas de superação das fragilidades sempre existiram, hoje, quando somos confrontados com a hipótese de melhoramento genético, de criação de ciborgues, de superação da mortalidade pela transformação do homem num avatar que, habitando num ambiente computacional, reproduz a rede neuronal do falecido, o sinal de alarme parece soar. A revolução tecnológica tem vindo a determinar que a atuação sobre o corpo humano não seja, nos nossos dias, necessariamente determinada por um estado de doença, interferindo-se com a biologia humana não para prevenir, minorar ou curar uma patologia, mas para se obter uma maior eficiência corporal e mental ou mesmo para se perpetuar a vida. O transumanismo surge, portanto, como expressão da possibilidade que a espécie humana tem de, querendo, transcender-se a si própria como humanidade. Correspondendo a uma aspiração secular do homem, é hodiernamente procurada por via da evolução tecnológica.
2. Os grandes nomes ligados à inteligência artificial têm prognosticado uma linha de evolução que culminará com o que vem já conhecido por pós-humanismo. A este propósito, Ray Kurzweil fala de singularity, um período futuro durante o qual a tecnologia evoluirá de forma tão rápida e com um impacto tão profundo que o ser humano ficará irremediavelmente transformado. Atingir-se-á o homem versão 3.0, com a possibilidade de mudança do próprio corpo, pela introdução de MNT-based fabrications, que viabilizarão a alteração rápida da manifestação física pela vontade. No fundo, o homem mergulhará numa realidade virtual, não ficando restringido por uma única personalidade, mas antes podendo projetar a sua mente em ambientes 3D e podendo escolher diversos corpos ao mesmo tempo. A expansão da mente torna-se, também, viável. A evolução culminaria com a possibilidade de se transferir a mente humana para um computador. Para tanto, seria necessário fazer um scan detalhado de um particular cérebro humano, reconstruindo a partir daí o network neuronal que o cérebro implementou e combinando isso com os modelos computacionais de diferentes tipos de neurónios, o que seria potenciado pela computação quântica. A mente humana, com a memória e a personalidade intactas, poderia ser transferida para um computador, no qual passaria a existir como um software, podendo habitar o corpo de um robot, ou no qual existiria como um avatar. Se a realidade, atualmente, nos encaminha para a existência de máquinas que desempenham funções levadas a cabo, até então, por pessoas, a complexificação dos computadores (com o surgimento de computadores moleculares 3D, nanotubos, computadores com DNA, computadores com moléculas), aptos a sentir emoções, combinada com os avanços da engenharia do cérebro viabilizarão em breve o surgimento de supercomputadores através dos quais a pessoa poderá manter-se viva para além da própria vida. O mundo tal como o conhecemos desapareceria, para que o homem vivesse como um e convivesse com avatares.
3. Estas anunciadas mudanças são de tal modo profundas e radicais que implicam a perda da própria humanidade. O sentido da dignidade humana é quebrado com a tentativa de criar um super-homem computorizado que ultrapasse as fronteiras da própria vida. Não raros são os autores que denunciam que o pós-humanismo nos conduz à degradação do ser humano, ao mesmo tempo que configura uma ameaça aos outros humanos comuns. Leon Kass considera que as formas de alteração da natureza humana são degradantes, conduzindo-nos a uma desumanização absoluta. Na verdade, a introdução dos dados neuronais humanos num computador, habilitado desta feita com uma mente concreta, implica uma coisificação do homem, contrariando o plano de desenvolvimento pessoal que culmina na morte. O prolongamento artificial da vida por meio de um elemento computacional atinge o núcleo da pessoalidade, já que a pessoa, apesar de ser uma categoria ética, não sobrevive na ausência da corporização, porque, ainda que a alma sobreviva à morte do corpo e fique a aguardar a sua ressurreição, estamos aí a falar de uma dimensão que ultrapassa aquela em que o direito intervém. O ser humano não pode deixar de ser encarado na sua unitária complexidade, sendo inviável olhar para ele sem ser na pluralidade corpo, mente, espírito e alma. De facto, a pessoa não pode ser objetivada de qualquer forma, mas é vivida e assumida na existência relacional com outros seres humanos. Já não é o ser solipsista, encerrado sobre si mesmo, mas o ser que se realiza na relação comunicativa com o seu semelhante e que tem no encontro, que obtém o seu sentido último no encontro com Deus, o seu referencial de sentido. Acresce que, em rigor, a tentativa de sobrevivência fora da corporeidade não passa de uma miragem, denunciada pelos estudiosos da mente humana. A base do ideário transumanista está, afinal, ligada a um escopo eugénico de apuramento da espécie. Ao potenciarem-se formas de manipulação genética e ao desenvolverem-se updates da biologia humana, sem a garantia da distribuição uniforme por toda a população, abrem-se as portas à seleção não natural da espécie e à criação de diversas castas de sujeitos – aqueles que tendo acesso à tecnologia emergente assumem um estatuto mais elevado e aqueles que, não tendo, acabam por ser dominados pelos primeiros.
4. A ameaça relativamente à pessoa determina que o direito tenha de intervir a este nível, reconhecendo-se limites aos direitos de personalidade que protejam o homem contra si mesmo, o que implica uma adequada compreensão daqueles na sua necessária referência ao fundamento axiológico que os predica. A dignidade humana, enquanto princípio jurídico, impede determinadas soluções e impõe certos limites. Embora possamos encontrar tantos direitos de personalidade quantas sejam as manifestações da pessoalidade do sujeito, não pode ser qualquer reivindicação assente no puro desejo arbitrário, caprichoso, solipsista e muitas vezes autista que pode ascender à categoria de direito subjetivo. O limite intransponível será sempre o da dignidade humana, o que, a concretizar-se por referência aos pretensos direitos transumanos a que a realidade tecnológica nos aporta, pode traduzir-se em alguns critérios limitadores, como seja o critério da perda de humanidade, ou seja, a interferência com o corpo, podendo implicar o desenvolvimento das potencialidades inerentes ao ser humano, não pode conduzir à sua descaracterização como pessoa. Por outro lado, não sendo o direito uma pura forma, e não estando apenas em causa dimensões subjetivas do eu, mas a sobrevivência da própria humanidade tal-qual a conhecemos, haverão de ser impostos, com apelo ao sentido fundador da juridicidade, em termos globais, limites à utilização (utópica ou distópica) da tecnologia, de modo a que esse mundo computacional – de convivência regulada entre humanos e não humanos – não conduza a uma radicalização do sistema, no qual o direito passa a ser um subsistema social sem sujeitos e sem capacidade de reconhecimento e proteção das pessoas.
Bibliografia:
- Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005
- Nick Bostrom, Superintelligence: paths, damages, strategies, Oxford University Press, 2014
- Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade. Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018
- Leon Kass, Life, Liberty and Defense of Dignity: The Challenge for Bioethics, São Francisco, Encounter Books, 43.
- Ray Kurzweil, Singularity is near, Viking, 2005
- Hans Moravec, Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica, Gradiva, 1988
- Devin Proctor, On Being non-human: otherkin identification and virtual spaces, Proquest LLC, 2019
- Vernon Vinge, “The coming technological singularity”, Vision-21: interdisciplinary science and engineering in the era of cyberspace, www.rohan.sdsu.edu/faculty/vinge/misc/singularity.html
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- Universidade
por António Pedro Barbas Homem, 2024
1. A Universidade é uma criação do espírito medieval europeu. Se bem que existam antecedentes nas academias gregas e romanas e, na Idade Média europeia, no ensino realizado nas igrejas, conventos e mosteiros, as universidades nascem no final do século XI como uma resposta original das cidades, reis e Igreja aos problemas do tempo. No início, o ensino centra-se em matérias específicas: em regra, teologia, direito (romano e ou canónico) e medicina. Desde então, a universidade prepara os profissionais que as sociedades necessitam em cada época.
Em toda a Europa estuda-se o mesmo e de acordo com um método também comum (por antonomásia, o método escolástico). Junto das universidades são criados colégios destinados à preparação dos futuros estudantes e o seu número, no início muito pequeno, aumenta gradualmente ao longo da Idade Média. Aí estudam-se as chamadas artes liberais, o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), num modelo por vezes designado como faculdade de artes.
O prestígio dos professores e do método justifica o sucesso. São fundadas universidades em toda a Europa ocidental nos séculos seguintes, embora com qualidade e reconhecimento muito diferente. Bolonha foi a primeira universidade (1088) e, seguindo o seu modelo foram fundadas ou reconhecidas como universidades em outros países europeus, em 1150 Paris, em 1156 Oxford, em 1209 Cambridge, em 1218 Salamanca, entre muitas outras. No caso português, D. Dinis funda o Estudo Geral na cidade de Lisboa, em 1290.
2. O modelo organizativo é peculiar, no contexto medieval. A universidade é uma corporação de professores e estudantes, com autonomia perante as autoridades municipais, eclesiásticas e reais. Tem património próprio e juízes privativos.
A organização dos saberes coloca a teologia no seu centro. A expressão a teologia é a mãe das ciências exprime a importância da religião e da teologia para todos os saberes. A reflexão acerca dos fundamentos do direito e da medicina é feita a partir da teologia. Teólogos como São Tomás de Aquino estudaram estes temas de acordo com um espírito sistemático, outro elemento característico da visão medieval. Mas um sistema que decorre da religião e da teologia.
3. No século XVI, o humanismo vai trazer novos desafios às universidades. De um lado e com a redescoberta de obras clássicas gregas e latinas, a invenção da imprensa e a sua utilização na divulgação do conhecimento, e as novas descobertas científicas trazidas com os descobrimentos em muitas áreas (astronomia, cartografia, geografia, geologia, história, entre outras), implicam uma revisão dos saberes e dos autores em que estes se fundavam. De outro lado, a reforma protestante e a contra-reforma católica dividem de modo dramático a comunidade cristã e obrigam os universitários a tomar partido nas contendas religiosas.
Neste contexto, que é simultaneamente de crise religiosa e de expansão do conhecimento, são fundadas novas universidades. No caso português, assinalamos a fundação da Universidade de Évora, dirigida pela Ordem de Jesus. Nunca foi autorizada a ministrar cursos jurídicos, embora seja aí e na Universidade de Coimbra que ensinam alguns dos grandes teólogos que intentaram prosseguir a visão medieval, como Francisco Suarez e Molina. Costuma designar-se esta visão como segunda escolástica ou escolástica peninsular, uma vez que ela tem também como foco outras universidades peninsulares, como Salamanca.
4. Esta herança clássica vai defrontar-se no Iluminismo com novas ideias e com a pretensão de construir um novo sistema científico e crítico já sem a presença da teologia. De um lado, a reacção anti-jesuítica leva à extinção das universidades, como a de Évora, e ao encerramento dos inúmeros colégios que dirigiam. Por toda a Europa reorganizam-se ou reformam-se as Universidades. Em Portugal, a chamada reforma pombalina de 1772 é um dos marcos destas ideias iluministas acerca da ciência. Aumenta o controlo do Estado e intensifica-se uma visão profissionalizante da universidade.
Décadas passadas, a visão iluminista confronta-se com uma nova visão liberal acerca do ensino e da educação, em geral. Torna-se evidente um caminho no sentido da secularização, de um lado, e de triunfo gradual de uma nova forma de pensar as ciências, as antigas e as novas – o positivismo.
Em vários países europeus, nascem, dentro das universidades ou como instituições especializadas, faculdades ou institutos ligados à formação prática de engenheiros e de arquitectos, de desenhadores e de outros profissionais. A reformulação dos saberes implica então a criação de novas Faculdades a partir da matriz antiga ou a criação de universidades para estes saberes técnicos. Nasce aqui uma tendencial diferenciação
entre os saberes clássicos e os saberes técnicos, as universidades clássicas e as técnicas ou politécnicas.
5. As universidades oitocentistas vão ainda exigir dos académicos a produção de novo conhecimento e a sua divulgação. De um lado, portanto, a exigência de investigação e de inovação, depois colocadas ao serviço do ensino; de outro, a exigência de publicitação desse conhecimento. A partir do século XIX, a formação da sociedade industrial e de massas é assim acompanhada por institutos de investigação científica dentro das universidades e por um novo tipo de cientistas cujas inovações e invenções, por exemplo corporizadas em patentes, são cruciais para o avanço do conhecimento e da qualidade de vida. A liberdade de investigar e de ensinar é reivindicada como uma das dimensões da nova ideia de universidade.
As universidades do século XIX completam assim a herança anterior. São inclusivamente fundadas universidades apenas focadas na investigação científica, mas a generalidade das instituições continua simultaneamente dedicada à investigação e ao ensino.
No quadro das ideias educativas liberais dos séculos XIX e XX, entende-se que o acesso ao ensino superior deve ser generalizado. As universidades vão assim defrontar-se com o desafio de incluir um número sempre crescente de estudantes e de definir sistemas concorrenciais justos de acesso. Na Europa, criados os liceus de acordo com um modelo primeiramente definido em França, caberá a estas instituições formar e na prática determinar os métodos de selecção dos futuros universitários.
6. Vale a pena lembrar alguns dos marcos da história da universidade em Portugal. Em 1836, a reforma liberal da universidade, que será depois continuada por outras. Ao longo do século XIX, a criação de escolas fora de Coimbra para o ensino da medicina, das ciências, da farmácia e da formação de professores, abre o caminho para que, em 1911, com a criação das Universidades de Lisboa e do Porto, termine o monopólio que a Universidade de Coimbra exercia em Portugal.
Mas é apenas no final do Estado Novo que se assinala a criação de novas universidades públicas e o reconhecimento da Universidade Católica e, com a democracia e a afirmação constitucional das liberdades de aprender e de ensinar, também de universidades privadas.
Em 2024 existem treze universidades públicas, nove universidades privadas e a Universidade Católica. Cerca de quatrocentos mil estudantes frequentam em cada ano instituições de ensino superior, incluindo as escolas do ensino politécnico. Uma das directrizes políticas da revolução de 1974, a democratização do ensino superior, está cumprida. Frequentar a universidade deixou de ser um privilégio para ser um direito.
Contudo, emergem novos problemas.
A multiplicação de áreas científicas já não permite encontrar um fundo comum a todas elas. Por esta razão, a legislação portuguesa desistiu de definir universidade e consagra um critério aritmético: podem ser reconhecidas como universidades as instituições que ministrem seis cursos de licenciatura, seis ciclos de mestrado e três de doutoramento em áreas científicas distintas e que produzam actividades de investigação, de ensino e de divulgação cultural. No entanto, não existe hoje em dia uma classificação universalmente aceite das ciências e áreas científicas.
7. Olhando em retrospectiva para a história pluricentenária da universidade, verificamos que as instituições estão hoje mergulhadas numa rede de complexidade burocrática sempre crescente, com processos de acreditação, de avaliação nacional e internacional, de avaliação dos docentes, de internacionalização, de medição das consequências das publicações e da investigação, processos que implicam por sua vez o recrutamento de uma multiplicidade de especialistas que não são académicos e que levam as universidades a fechar-se sobre si próprias.
A autonomia das universidades é uma forma institucional de assegurar que os professores e investigadores gozam de liberdade para investigar, ensinar e difundir o conhecimento. Uma liberdade que é conhecida internacionalmente como liberdade de cátedra. Mas esta liberdade não pode entender-se como absoluta e sem limites. Hoje, para além dos clássicos problemas da verdade, do belo e do justo, o conhecimento científico vive confrontado com as novas ameaças sociais e ideológicas, como o politicamente correcto, a massificação, a inteligência artificial e o transhumanismo.
A universidade portuguesa também perdeu o monopólio da formação profissional. A licenciatura deixou de ser a licença para exercer uma profissão. Hoje, uma multiplicidade de organismos, designadamente ordens profissionais, pretendem controlar e validar os conhecimentos adquiridos pelos estudantes universitários.
Continuam válidas nos nossos dias as ideias do Cardeal S. John Henry Newman formuladas em meados do século XIX. A universidade ideal é uma comunidade de
pensadores, envolvendo-se em atividades intelectuais não para qualquer propósito externo, mas como um fim em si mesmo. Prevendo uma educação ampla e liberal, que ensina os alunos a pensar e a raciocinar e a comparar e a discriminar e a analisar, Newman considerou que as mentes estreitas nascem de especialização estreita e ensinou que os estudantes devem receber uma base sólida em todas as áreas de estudo. A missão da Universidade, completou Ortega y Gasset, numa fórmula feliz e que continua válida para os nossos dias, é a de estar à frente do seu tempo. E isto só pode ser compreendido nesta ligação entre ciência e cultura, procura da verdade e sentido do bem.
- Guilherme Braga da Cruz, O Essencial sobre a História das Universidades, Lisboa, Imprensa Nacional, 2008
- John Henry Newman, The idea of a university, 1873 (https://www.gutenberg.org/files/24526/24526-pdf.pdf)
- J. Ortega y Gasset, Mission de la Universidad, Madrid, 1930
- António M. Feijó e Miguel Tamen, A Universidade como deve ser, Lisboa, FFMS, 2017 - Alasdair MacIntyre, God, Philosophy, Universities. A Selective History of the Catholic Philosophical Tradition, Rowman, Maryland, 2011
v
- Virtude
por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. Em sentido geral, “virtude” designa a excelência de uma faculdade operativa – como são a inteligência e a vontade – que capacita para realizar a “vida boa”, i.e., uma vida ordenada conforme à razão. Em particular, a virtude moral consiste na plenitude ética, i.e, na perfeição da disposição volitiva e afectiva da pessoa. Do ponto de vista civil, podemos distinguir entre: virtudes fortes, como a responsabilidade individual e espírito de iniciativa, a coragem, a prudência face ao futuro e ao condicional…; virtudes nobres, como a generosidade e magnanimidade; virtudes republicanas, abrangendo o patriotismo e o sentido de responsabilidade cívica; e virtudes domésticas, como a laboriosidade, autorrespeito, independência e boa vizinhança... Na história do pensamento político, o estatuto da virtude moral foi um tema incontornável: deve a virtude ser procurada por razões funcionais, como meio para viabilizar uma ordem pública saudável e livre? Ou, ao contrário, deve o regime ser organizado em ordem à excelência moral dos cidadãos, como fim em si mesmo da comunidade política? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?
2. No Livro III da Política, Aristóteles coloca a seguinte questão: a lei existe para aperfeiçoar os homens – «por mor de nobres acções» – ou existe meramente para poder «viver em comum», sendo apenas, «em frase do sofista Lycophron, uma garantia das reivindicações justas que os homens têm entre si, sem pretender fazê-los virtuosos e justos»? O Estagirita inaugura, de algum modo, a tradição perfeccionista: as leis teriam como finalidade produzir cidadãos virtuosos e educá-los em conformidade, através da coerção legal, se necessário. A sua polis é um empreendimento pedagógico: na ética-política aristotélica, a desabituação dos vícios e a repressão das paixões desordenadas – por via da ameaça de punição legal – é o primeiro momento (o momento negativo) dessa pedagogia, enquanto (ou quando) as pessoas não são educáveis pela razão (o momento positivo). Nesta visão, os princípios de justiça dependem do valor intrínseco das finalidades que servem, da capacidade de se demonstrar que esses princípios de direito honram ou promovem um bem humano importante. Entretanto, a neutralidade moral do Estado seria impossível – porque a demarcação dos direitos pressupõe sempre uma noção moral sobre o que é a pessoa humana, sobre o que lhe é devido para que ela se “cumpra”; e seria também indesejável – por razões de ecologia moral, uma vez que a (i)moralidade privada tem geralmente consequências públicas .
3. Esta posição tem os seus méritos, mas também os seus problemas. Em primeiro lugar, por questões de princípio: as leis podem obrigar os cidadãos a comportar-se externamente de determinada maneira, mas não conseguem obrigar os cidadãos a ser bons, uma vez que – por definição – o acto virtuoso exige que o agente escolha livremente o bem por boas razões. Formar o carácter mediante a coacção seria destruí-lo em potência, arriscando hipocrisia, conformismo e servilismo. Por outro lado, a liberdade é constitutiva da própria pessoa: a sua autonomia na procura do bem não deve ser violada, em geral, senão por proporcionadas razões de ordem pública. Em segundo lugar, o paternalismo moral do Estado é problemático também por razões prudenciais: o perigo de conceder ao Estado demasiado poder (o de formatar as convicções dos cidadãos). Se concedermos ao Estado legitimidade para prosseguir uma agenda moral em sentido forte – para educar e aperfeiçoar os cidadãos e para os conduzir à verdade – estaremos vulneráveis (com maior probabilidade, nos tempos que correm) a que o Estado promova com igual direito uma outra agenda (i)moral e possa degradar os cidadãos. Por último, ergue-se o “facto do pluralismo, desacordo, ou conflito moral” típico das sociedades modernas: não existe já o consenso moral e religioso, ou a “totalidade ética”, que se poderia presumir no mundo antigo ou medieval. Todavia, mesmo um pensador como Montesquieu afirmou que «em qualquer país do mundo a moralidade é desejada».
4. Quer a corrente perfeccionista, quer a liberal – que fundamenta os direitos na prioridade da autonomia pessoal, defende a neutralidade dos governos face a quaisquer concepções particulares de bem (excluindo-as do âmbito da “razão pública”) e, em algumas versões, apenas se opõe aos vícios públicos fundamentais, mais do que promove a virtude – admitem gradações e sobreposições. No entanto, talvez se possa dizer (de acordo com Ernst-Wolfgang Böckenförde) que o Estado constitucional democrático é sobretudo uma «ordem de liberdade e de paz», mais do que uma «ordem de verdade e virtude». Não que Aristóteles não tenha razão quando sustenta que vivemos juntos com vista a viver bem, e não apenas para sobreviver. Mas isso não justifica suficientemente a atribuição ao Estado do papel de guardião coercivo da virtude dos cidadãos. Antes, o melhoramento da sociedade deve ser feito, livremente, ao nível pré-político: pela chamada voz moral, integrada na personalidade dos cidadãos e nas suas interacções mútuas; e pelas instituições sociais básicas e intermédias (famílias, escolas, igrejas, universidades, associações voluntárias, etc.), que constituem uma espécie de musculatura democrática e liberal da comunidade política. O bem comum integral compete à sociedade como um todo e às pessoas que a compõem. Só a esse nível se poderão talvez conciliar as duas ordens a que se referia Böckenförde.
Bibliografia:
- Aristóteles, Política
- Aristóteles, Ética a Nicómaco
- Ernst-Wolfgang Böckenförde, Staat, Gesellschaft, Freiheit. Studien zur Staatstheorie und zum Verfassungsrecht, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976
- Robert P.George, Making Men Moral. Civil Liberties and Public Morality, Oxford: Clarendon Press, 1995
- Martin Rhonheimer, “The Democratic Constitutional State and the Common Good”, in The Common Good of Constitutional Democracy: Essays in Political Philosophy and on Catholic Social Teaching, William F. Murphy, Jr. (Translator), Washington, DC: Catholic University of America Press, 2013
- Virtude Política
por Pedro Ferro, 2024
1. Será possível melhorar a qualidade da política através dos políticos? Em caso afirmativo, qual a substância da virtude política (a virtude dos governantes)? E como seria possível suscitá-la?
A primeira questão trata da relevância das qualidades pessoais e liberdade de escolha dos governantes. Por outras palavras, trata dos méritos da pergunta clássica: “quem deve governar?” Entre os adversários presumíveis dessa importância contam-se: a regência impessoal da lei, que tornaria ilegítimo o protagonismo pessoal, e a preponderância da forma do regime, que o tornaria irrelevante; a prioridade do poder legal e formal sobre o poder pessoal; ou a suficiência dos mecanismos institucionais, que teria tornado obsoleta a demanda do príncipe ideal. Face a essas objecções, pode alegar-se que nem as melhores estruturas institucionais podem gerar, por si mesmas – a partir do papel, de teorias, mecanicamente ou por inércia – a realidade e substância da representação ou da separação de poderes, por exemplo. Isso não pode ser conseguido sem, ou contra, as convicções e qualidades dos indivíduos que operam o sistema; sem um esforço inteligente, responsável e virtuoso de algumas pessoas, pelo menos. Enfim, o sistema político constitucional não é autossuficiente – não “funciona sozinho”, com piloto automático. Em complemento, parece carecer (para ser funcional) de alguma variável exógena ao sistema – i.e., que o sistema é incapaz de produzir ou, pelo menos, de garantir – nomeadamente, a virtude pessoal de pilotos de carne e osso.
2. A prudência e a coragem políticas podem ser consideradas, a par da justiça e da moderação, como as principais virtudes políticas. Mas existe alguma diferença entre as qualidades dos que obedecem e as dos que governam? «Possuem ambos virtudes idênticas ou distintas?», pergunta Aristóteles. Não se tratará apenas de uma diferença de grau, uma vez que governar e obedecer são actividades especificamente diversas. Todos devem ser virtuosos, mas não da mesma maneira: cada um deve possuir as virtudes específicas da sua própria função. Assim, para Aristóteles, a virtude do governante parece não ser idêntica à virtude geral (embora também não lhe seja oposta); ou – mais precisamente – a virtude do governante, enquanto governa, não seria idêntica à virtude dos súbditos, enquanto tal. Ao contrário, para Maquiavel, a virtude política é de natureza diversa (e contrária) à virtude comum: não consiste em ser bom; consiste em dar uma resposta cabal à constelação da fortuna, como dizia Hannah Arendt. «O príncipe «não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens [comuns] são tidos por bons». Para preservar o Estado, deverá estar pronto a «agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião», se for preciso.
3. Segundo Aristóteles, a prudência é «a única virtude peculiar ao governante». Prudência política é um saber prático apontado ao bem-comum, associado à capacidade para resolver, através da reflexão e deliberação, o que se tem entre mãos, escolhendo o melhor. Compreende a intenção dos fins intermédios e a eleição dos meios. É prática porque versa sobre o que fazer e porque conduz à decisão e à acção. A prudência de tradição aristotélica (aquela que não está nos livros e que só podemos conhecer a partir do exemplo das pessoas a que chamamos prudentes, como diz o Estagirita) contrasta com a prudência astuciosa de Maquiavel (aquela que só ele saberia ensinar aos príncipes, razão pela qual escreveu precisamente os seus dois livros principais). A astúcia maquiaveliana contrapõe-se à prudência clássica e cristã: quer porque consistirá, eventualmente, numa qualidade colocada ao serviço de um fim que possui uma bondade aparente e não verdadeira – a que Aquino chama «prudência da carne»; quer porque para atingir os seus fins, bons ou maus, se serve de meios falsos e enganadores – ao que o dominicano designa propriamente «astúcia», e à qual associa (como aliás Maquiavel) a mentira e a fraude.
Entre as competências do homo politicus conta-se também o domínio de certas habilidades comunicacionais, negociais e retóricas. Estas qualificações (conquanto indispensáveis) são apenas instrumentais e politicamente neutras (relativamente à justiça): podem ser eficazmente usadas quer por tiranos quer por estadistas.
4. E quais os processos pelos quais a virtude política pode emergir; ou seja, quais as condições que podem propiciar virmos a ser governados por políticos competentes? Essas condições resultarão do cruzamento entre a “oferta” de virtude política (a educação dos “príncipes”, a estrutura social, a disponibilidade para a coisa pública…), os factores que afectam a “procura” dessa virtude (as qualidades e vícios dos cidadãos“, admitindo que “cada povo tem os políticos que merece”…), e as variáveis que impactam quer a oferta, quer a procura, tais como o regime e a atmosfera cultural. Em qualquer caso, talvez seja possível alvitrar que – ao contrário do que apregoavam os sofistas – a virtude política não é fácil e não se pode ensinar. Por um lado, exige um mínimo de condições inatas (como sugeria Quintiliano) ou conseguidas no berço: um módico de capacidade analítica, inteligência emocional e imaginação; um mínimo de energia e espírito de iniciativa; uma certa aptidão para lidar com a incerteza, o contratempo e o perigo; uma dotação razoável de autoconfiança; uma certa distinção pessoal, etc. Por outro lado – e mais fundamentalmente – a virtude política é adquirível sobretudo através da experiência e do esforço moral. Neste sentido, embora não se possa ensinar, pode-se aprender, exercitar e cultivar (tal como, aliás, a virtude comum).
5. Por fim, pode-se dizer que os modelos da sofocracia (entendida como o poder dos sábios), da tecnocracia (compreendida como o reino da perícia, da eficácia e do pragmatismo), ou o da liderança (percebida como o governo dos grandes retóricos e chefes carismáticos), embora contenham elementos importantes, não captam a essência da profissão política, que pertence fundamentalmente ao domínio da praxis, mais do que da teoria ou da técnica. Obviamente, a virtude política é multi-dimensional. Mas o seu ingrediente nuclear será a prudência política (incluindo a justiça), armada de coragem.
Bibliografia
- ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, tradução de António C. Caeiro, Lisboa: Quetzal Editores, 2004.
- ARISTÓTELES, Política, tradução de António C. Amaral e Carlos Gomes, Lisboa: Vega, 1998.
- FERRO, Pedro Rosa, Virtude política: uma análise das qualidades e talentos dos governantes, Coimbra: Almedina, 2017
- KELLERMAN, Barbara (Ed.), Political Leadership: A Source Book, University of Pittsburgh Press, 1986
- MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe, Queluz: Coisas de Ler Edições, 2003.
- WEBER, Max, Politics as a Vocation, New York: Oxford University Press, 1946.
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- Wokismo
por Manuel Carneiro da Frada, 2024
A designação tem sido empregue para identificar uma corrente do pensamento - difusa nos seus contornos, mas com presença marcante na actualidade - caracterizável genericamente por pugnar de forma activa por um conjunto de enunciados identificados usualmente com a «teoria do género», a «teoria crítica da raça» e a «teoria da interseccionalidade», ou agrupados em torno deles.
A primeira rejeita a determinação biológica do sexo (homem/mulher), afirmando em seu lugar que o «género» é um produto cultural; que pode, por isso, ser escolhido, importando derradeiramente a consciência individual de cada um a respeito da sua identidade sexual - com o inerente favorecimento de “transgéneros” -, e a que por vezes se associa, mas contraditoriamente, um feminismo radical. A segunda reactiva a ideia da raça enquanto absolutamente determinante do comportamento social, criticando essencialmente a raça branca, tida (fatalmente) por privilegiada e dominadora. A interseccionalidade, por sua vez, agrega as vítimas que a consideração de diversos planos - rácico, de género, culturais, todos entre si convergentes - permite identificar: promovendo, no empolamento fortemente “identitário” a que conduz, um aceso activismo de ruptura em prol dessas mesmas vítimas por causa das múltiplas discriminações e explorações contra elas (supostamente) cometidas, ao longo da história e também na actualidade.
O homem “branco, heterossexual, supremacista, patriarcal e colonizador” emerge como símbolo de um paradigma a combater. Haveria, assim, de estar-se “alerta”, “desperto” (woke), para extirpar as dinâmicas de opressão, disseminadas por toda a sociedade, que aquelas teorias denunciam.
Na génese desta corrente – em muitos sítios, tão difundida que se mescla com o que é tido pelo “pensamento político correcto” – estará, em grande medida, a revivescência proporcionada pela escola de Frankfurt (e autores como Marcuse, Adorno, W. Reich, etc.) ao marxismo no ambiente cultural das sociedades liberais pós-modernas, incorporando a teoria do conflito social correspondente, assim como a convergência com o pansexualismo de origem freudiana, propiciando uma desconstrução ideológica progressiva de representações e estruturas sociais comuns, entre as quais a família.
Muito expandido nas universidades norte-americanas e europeias (falando-se mesmo de uma “religião universitária”), o wokismo acoberta-se com verdades alegadamente validadas pela ciência, segundo as quais “o sexo não existe nem importa”, “o racismo é sistémico”, “uma verdadeira descolonização nunca aconteceu” (devendo agora continuar-se num processo para reparar injustiças históricas), há uma “masculinidade” ou “branquitude tóxica” que inquina a vida social, a família constitui nuclearmente, tal como a cultura dominante, uma estrutura de poder de que urgiria “emancipar-se”, a objectividade do conhecimento não é possível, precisando de ser substituída por uma “epistemologia do ponto de vista” ou uma atitude, individual ou de uma classe ou grupo, consoante as matérias), etc.. Na conjugação de todos estes factores, o wokismo é por muitos considerado um sinal autofágico da decadência da cultura dita ocidental.
Características típicas deste modo de pensar são (i) o primado da colectividade a que pertence o sujeito sobre a pessoa, cuja identidade se define e limita irremovivelmente pela do grupo em que se insere; (ii) da vontade sobre a razão, tida por inapelavelmente não apta para o diálogo social já que maculada insuperavelmente por certas condições de base do sujeito, geradoras de estruturas de domínio, importando antes o empenho militante de alterar essas mesmas estruturas; (iii) do poder sobre a autoridade: reduzindo-se a interacção humana a um exercício do poder, urgiria provocar um “empoderamento” das suas vítimas típicas (identificadas segundo as acima referidas teorias) em confronto com a (legítima) autoridade estabelecida; pretendendo modificar a ordem socialmente implantada em obediência às lógicas “identitárias” propiciadas por aquelas mesmas teorias do género, da raça e da interseccionalidade; (iv) a rejeição de regras morais, tidas por instrumentos seculares de opressão, de sujeitos e de grupos sociais; bem como uma oposição, mais ou menos velada, ao cristianismo (na pretensão que apresenta de uma verdade última e de um sentido totalizante do mundo e da vida, contrastante com a matriz libertária e relativista deste tipo de pensamento).
São abundantes os desvios, as inconsistências e as contradições que o pensamento woke apresenta. A proliferação de conteúdos de conhecimento produzidos em muitos meios universitários modernos sem suficiente certificação favorece tomarem-se certas asserções e conceptologias por científicas, embora desprovidas de uma validação credível, não raro discriminando segundo o seu teor. Divide-se o mundo, de forma maniqueísta, em culpados e não culpados, puros e impuros – por suposto, sem Deus nem possibilidade de redenção -, todos inapelavelmente determinados pela posição de partida que lhes corresponde (de vítima ou de opressor, de privilegiado ou de perseguido) segundo as dicotomias branco/negro, homem/mulher, heteressexual/transgénero, colonizador/colonizado, cristão/não cristão a que pertencem. Desvalorizam-se muitas vezes, ou rejeitam-se sem motivo, as percepções comuns, ignoram-se dados biológicos ou antropológicos, reinterpreta-se ou reescreve-se de modo parcial a história, descrê-se da liberdade humana como determinante desta, nega-se a capacidade da razão de aceder a enunciados verdadeiros, a vinculação da pessoa a enunciados morais, esquece-se a radical igualdade do género humano e de todos os indivíduos que o compõem (recusando a reciprocidade das pretensões que se apresentam), etc.
O militantismo woke tem procurado apropriar-se de diversas causas indiscutivelmente justas, mas expulsando destas quem não detém as suas marcas identitárias. Incoerentemente, uma certa origem libertária cedeu o passo a rigidificações ideológicas, do mesmo modo que o seu subjacente relativismo se converteu, afinal, num sectarismo e dogmatismo que rejeita a discussão racional: tudo se resumiria, no fundo, a um tema de poder, individual ou social, como tal devendo ser tratado. O Direito é reduzido, assim, ao “político” (lato sensu), nenhum reduto oferecendo a ninguém fora desse âmbito. Desse modo abriram caminho vanguardismos de iluminados, a legitimação dos necessários “endoutrinamentos”, um activismo universitário que se permitiu a selecção de docentes em função do teor do seu pensamento nas temáticas woke propiciando, por fim, o controlo do pensamento e da palavra. Tal tem como consequência uma “cultura do cancelamento”, outra designação deste tipo de pensamento, profundamente auto-referencial, que exclui e tem afastado muitas vezes, sumariamente, do areópago público aqueles que apresentam opiniões contrários aos dogmas desta corrente.
A reabilitação do diálogo social afectado por esta mentalidade requer, por isso, elementarmente, a proclamação e a defesa da liberdade de cada um; um fortalecimento do discurso racional (do pensamento crítico na vez de uma unilateral “teoria crítica”), da busca da verdade e do bem de todos como ponto fixo da convergência a que todos são socialmente convocados (na pluralidade de entendimentos que possam apresentar-se), reflectindo a unidade essencial do ser humano; o reconhecimento de que ele se não encontra fatalmente submerso na sua circunstância; a dignificação da pessoa e o respeito das estruturas sociais (família, comunidade política) de que ela carece, naturalmente, para se expressar, realizar e desenvolver.
Bibliografia:
- Jean-François Braunstein, A Religião Woke, Lisboa, 2023
- Helen Pluckrose e James Lindsay, Teorias Cínicas: como ativistas académicos reduziram tudo a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica a todos, Lisboa, 2021
- Noelle Mering, El Dogma Woke, Madrid, 2023
- Robert P.George, Making Men Moral. Civil Liberties and Public Morality, Oxford: Clarendon Press, 1995
- Patrícia Fernandes, «O Wokismo não existe? Uma aproximação filosófica ao paradigma identitário», in Crítica XXI, 5 (Outono 2023), 77 ss.