- Dicionário: Wokismo
por Manuel Carneiro da Frada, 2025
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A designação tem sido empregue para identificar uma corrente do pensamento - difusa nos seus contornos, mas com presença marcante na actualidade - caracterizável genericamente por pugnar de forma activa por um conjunto de enunciados identificados usualmente com a «teoria do género», a «teoria crítica da raça» e a «teoria da interseccionalidade», ou agrupados em torno deles.
A primeira rejeita a determinação biológica do sexo (homem/mulher), afirmando em seu lugar que o «género» é um produto cultural; que pode, por isso, ser escolhido, importando derradeiramente a consciência individual de cada um a respeito da sua identidade sexual - com o inerente favorecimento de “transgéneros” -, e a que por vezes se associa, mas contraditoriamente, um feminismo radical. A segunda reactiva a ideia da raça enquanto absolutamente determinante do comportamento social, criticando essencialmente a raça branca, tida (fatalmente) por privilegiada e dominadora. A interseccionalidade, por sua vez, agrega as vítimas que a consideração de diversos planos - rácico, de género, culturais, todos entre si convergentes - permite identificar: promovendo, no empolamento fortemente “identitário” a que conduz, um aceso activismo de ruptura em prol dessas mesmas vítimas por causa das múltiplas discriminações e explorações contra elas (supostamente) cometidas, ao longo da história e também na actualidade. Presente está também uma referenciação, mais de cariz simbólico do que geográfico ao “Sul global”, para aludir, mesmo imprecisamente, a povos e territórios de alguma forma vítimas da penúria, da menorização cultural ou de perseguições étnicas e políticas.
O homem “branco, heterossexual, supremacista, patriarcal e colonizador” emerge como símbolo de um paradigma a combater. Haveria, assim, de estar-se “alerta”, “desperto” (woke), para extirpar as dinâmicas de opressão, disseminadas por toda a sociedade, que aquelas teorias denunciam.
Na génese desta corrente – em muitos sítios, tão difundida que se mescla com o que é tido pelo “pensamento político correcto” – estará, em grande medida, a revivescência proporcionada pela escola de Frankfurt (e autores como Marcuse, Adorno, W. Reich, etc.) ao marxismo no ambiente cultural das sociedades liberais pós-modernas, incorporando a teoria do conflito social correspondente, assim como a convergência com o pansexualismo de origem freudiana, propiciando uma desconstrução ideológica progressiva de representações e estruturas sociais comuns, entre as quais a família.
Muito expandido nas universidades norte-americanas e europeias (falando-se mesmo de uma “religião universitária”), o wokismo acoberta-se com verdades alegadamente validadas pela ciência, segundo as quais “o sexo não existe nem importa”, “o racismo é sistémico”, “uma verdadeira descolonização nunca aconteceu” (devendo agora continuar-se num processo para reparar injustiças históricas), há uma “masculinidade” ou “branquitude tóxica” que inquina a vida social, a família constitui nuclearmente, tal como a cultura dominante, uma
estrutura de poder de que urgiria “emancipar-se”, a objectividade do conhecimento não é possível, precisando de ser substituída por uma “epistemologia do ponto de vista” ou uma atitude, individual ou de uma classe ou grupo, consoante as matérias), etc.. Na conjugação de todos estes factores, o wokismo é por muitos considerado um sinal autofágico da decadência da cultura dita ocidental.
Características típicas deste modo de pensar são (i) o primado da colectividade a que pertence o sujeito sobre a pessoa, cuja identidade se define e limita irremovivelmente pela do grupo em que se insere; (ii) da vontade sobre a razão, tida por inapelavelmente não apta para o diálogo social já que maculada insuperavelmente por certas condições de base do sujeito, geradoras de estruturas de domínio, importando antes o empenho militante de alterar essas mesmas estruturas; (iii) do poder sobre a autoridade: reduzindo-se a interacção humana a um exercício do poder, urgiria provocar um “empoderamento” das suas vítimas típicas (identificadas segundo as acima referidas teorias) em confronto com a (legítima) autoridade estabelecida; pretendendo modificar a ordem socialmente implantada em obediência às lógicas “identitárias” propiciadas por aquelas mesmas teorias do género, da raça e da interseccionalidade; (iv) a rejeição de regras morais, tidas por instrumentos seculares de opressão, de sujeitos e de grupos sociais; bem como uma oposição, mais ou menos velada, ao cristianismo (na pretensão que apresenta de uma verdade última e de um sentido totalizante do mundo e da vida, contrastante com a matriz libertária e relativista deste tipo de pensamento).
São abundantes os desvios, as inconsistências e as contradições que o pensamento woke apresenta. A proliferação de conteúdos de conhecimento produzidos em muitos meios universitários modernos sem suficiente certificação favorece tomarem-se certas asserções e conceptologias por científicas, embora desprovidas de uma validação credível, não raro discriminando segundo o seu teor. Divide-se o mundo, de forma maniqueísta, em culpados e não culpados, puros e impuros – por suposto, sem Deus nem possibilidade de redenção -, todos inapelavelmente determinados pela posição de partida que lhes corresponde (de vítima ou de opressor, de privilegiado ou de perseguido) segundo as dicotomias branco/negro, homem/mulher, heterossexual/transgénero, colonizador/colonizado, cristão/não cristão a que pertencem. Desvalorizam-se muitas vezes, ou rejeitam-se sem motivo, as percepções comuns, ignoram-se dados biológicos ou antropológicos, reinterpreta-se ou reescreve-se de modo parcial a história, descrê-se da liberdade humana como determinante desta, nega-se a capacidade da razão de aceder a enunciados verdadeiros, a vinculação da pessoa a enunciados morais, esquece-se a radical igualdade do género humano e de todos os indivíduos que o compõem (recusando a reciprocidade das pretensões que se apresentam), etc.
O militantismo woke tem procurado apropriar-se de diversas causas indiscutivelmente justas, mas expulsando destas quem não detém as suas marcas identitárias. Incoerentemente, uma certa origem libertária cedeu o passo a rigidificações ideológicas, do mesmo modo que o seu subjacente relativismo se converteu, afinal, num sectarismo e dogmatismo que rejeita a discussão racional: tudo se resumiria, no fundo, a um tema de poder, individual ou social, como tal devendo ser tratado. O Direito é reduzido, assim, ao “político” (lato sensu), nenhum reduto oferecendo a ninguém fora desse âmbito. Desse modo abriram caminho vanguardismos de iluminados, a legitimação dos necessários “endoutrinamentos”, um activismo universitário que se permitiu a selecção de docentes em função do teor do seu pensamento nas temáticas woke propiciando, por fim, o controlo do pensamento e da palavra. Tal tem como consequência uma “cultura do cancelamento”, outra designação deste tipo de pensamento, profundamente auto-referencial, que exclui e tem afastado muitas vezes, sumariamente, do areópago público aqueles que apresentam opiniões contrários aos dogmas desta corrente.
A reabilitação do diálogo social afectado por esta mentalidade requer, por isso, elementarmente, a proclamação e a defesa da liberdade de cada um; um fortalecimento do discurso racional (do pensamento crítico na vez de uma unilateral “teoria crítica”), da busca da verdade e do bem de todos como ponto fixo da convergência a que todos são socialmente convocados (na pluralidade de entendimentos que possam apresentar-se), reflectindo a unidade essencial do ser humano; o reconhecimento de que ele se não encontra fatalmente submerso na sua circunstância; a dignificação da pessoa e o respeito das estruturas sociais (família, comunidade política) de que ela carece, naturalmente, para se expressar, realizar e desenvolver.
O problema central do wokismo não reside, pois, no tipo de causas que invoca - várias delas por certo meritórias e valiosas, como a da defesa dos direitos de etnias e minorias perseguidas em diversas latitudes, do ambiente e da ecologia, e do combate a um modo de organização económico planetário extrativista e predador dos recursos naturais, à exploração da mulher, etc. -, mas na rigidificação preconceituosa (quando não hipócrita) que também o enforma, teórica e praticamente, e no prepotente exclusivismo que reivindica para si destas causas. São essas as características que propriamente o definem.
O esquematismo “wokista”, nas raízes ideológicas maniqueístas, materialistas e ateias que o sustentam, bloqueia o debate público e torna-o infecundo; cava trincheiras que dificultam os consensos sociais necessários para alcançar objectivos que até poderão ser – reitera-se - meritórios e, mesmo, necessários. Não se trata, pois, de negar ou ignorar que, no pêndulo dialéctico do devir histórico, o wokismo acaba por contribuir também, de forma positiva, para a consciência e a valoração adequada de diversas realidades do seu tempo, antes de expressar a sua inaptidão, enquanto tal, para uma resposta adequada, racional, prática e satisfatória aos seus desafios.
Bibliografia:
Jean-François Braunstein, A Religião Woke, Lisboa, 2023
Helen Pluckrose e James Lindsay, Teorias Cínicas: como ativistas académicos reduziram tudo a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica a todos, Lisboa, 2021
Noelle Mering, El Dogma Woke, Madrid, 2023
Robert P.George, Making Men Moral. Civil Liberties and Public Morality, Oxford: Clarendon Press, 1995
Patrícia Fernandes, «O Wokismo não existe? Uma aproximação filosófica ao paradigma identitário», in Crítica XXI, 5 (Outono 2023), 77 ss.
- Dicionário: Razão de Estado
1. O conceito de razão de Estado remete à «arte de governar» da antiguidade clássica. Segundo Aristóteles, quando o governante o é por natureza, tendo uma superioridade natural em relação aos governados, é possível distinguir duas formas de governo. Uma delas consiste no «uso» (chrēsis) que é próprio do governo despótico. Neste governo, o «fim» ou telos da relação encontra-se do lado do governante. É o uso que está presente na relação pela qual a alma usa o corpo; é também ele que, em contexto familiar, estabelece a relação pela qual o senhor usa o corpo do escravo que lhe pertence (Política, 1254b4).
- Dicionário: Lei Natural
1. A acepção de Lei Natural pode ser vislumbrada na Filosofia Grega, no Direito Romano, assim como na Revelação Cristã. Desta tríade ressalta o fundamento cultural da chamada Civilização Cristã.
No mundo grego a Lei Natural prevalece claramente sobre a vontade humana. Aquilo que é por natureza – phýsis – não se submete à volição. A natureza é princípio e causa de tudo o que existe, sendo ainda o princípio e o fim do movimento. A realização plena do ser humano na sociedade vincula-se à concepção do Homem como ser político, e sua plena realização está condicionada à própria natureza que o engendra, ou seja, à sociabilidade, à politicidade, à autoridade, ao relacionamento. Reger-se sob o signo da sua própria natureza indica estar sob o governo da razão, o que se traduz no âmbito social como estar sob o governo das leis, que devem ser a razão sem paixão.
Dentre as virtudes romanas pode-se ressaltar o amor pela ordem jurídica, tendo sido o ius romanum a criação mais nobre do espírito romano. E o pensamento grego em muito contribuiu para o florescimento da Iurisprudentia. O estoicismo afirmou que a ordem racional do universo dirige tanto a vida do Homem quanto da comunidade. A Justiça será, então, a própria ação divina sobre a comunidade. A lei que se inspira na razão divina é a lei natural da comunidade humana. A máxima expressão desta lei foi formulada por Cícero:
A verdadeira lei é a reta razão em harmonia com a natureza, difundida em todos os seres, imutável e sempiterna, que, ordenando, nos chama a cumprir o nosso dever, e, proibindo, nos aparta da injustiça… Não é justo alterar esta lei, nem é lícito derrogá-la em parte, nem abrogá-la em seu todo. Não podemos ser dispensados da sua obediência, nem pelo Senado, nem pelo povo… Quem não obedece esta lei foge de si mesmo e nega a natureza humana, e, por isso mesmo, sofrerá as maiores penas ainda que tenha escapado das outras que consideramos suplício (De republica, III, 22).
Uma passagem paulina fundou a concepção cristã de Lei Natural. O apóstolo teve eminente importância para a cultura do Ocidente. Sendo Doutor da Lei, possuía profundos e sólidos conhecimentos das Escrituras. Também era cidadão romano e conhecia bem o grego. Sua elevada cultura e actividade deu forma a uma cultura cristã com raízes profundas. Uma passagem da Epístola aos Romanos (II, 14-16) foi considerada fundamento transcendente do Direito Natural Cristão:
Quando então os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são Lei; eles mostram que a obra da Lei gravada nos seus corações, dando disso testemunho sua consciência, e seus pensamentos, que alternadamente se acusam ou defendem.
2. O tomismo (Para as concepções tomistas ver as 66 questões, LVII-XCCII dedicadas à Justiça na Segunda Parte da Summa) irá consagrar a concepção tradicional de lei Natural: participação da Lex Aeterna pela criatura racional. E na disposição hierárquica apresentada pelo Aquinate existe ainda a Lex Humanae, definida como uma ordem constituída pela razão em vista do bem comum, promulgada por aquele que governa uma comunidade. Evidente é que uma lei humana que se oponha à lei natural não será verdadeira lei, mas, isto sim, corruptio legis.
Referências bibliográficas:
- IBSEN NORONHA, Lições de História da Cultura Jurídica, Caminhos Romanos, Coimbra, 2024.
- SANTO TOMÀS de AQUINO, Tratado da Lei, Resjuridica, Porto, 1992.
- WILSON COIMBRA LENKE, A Lei e sua ordem a Deus segundo Santo Tomás de Aquino, Contra Errores, São Paulo, 2024.
- Dicionário: Ditadura
por Alexandre Franco de Sá, 2024
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1. A ditadura é uma magistratura republicana com origem em Roma. Na República Romana, o ditador é um magistrado extraordinário encarregado de concentrar o poder por um espaço de tempo limitado (não superior a seis meses) e com o fim de executar uma tarefa específica. Duplamente limitado pela exígua duração do seu mandato e pela finalidade determinada que lhe estaria pressuposta, o ditador dispunha de um poder concentrado que, em circunstâncias ordinárias, estaria disperso por vários órgãos e instâncias. Assim, o fundamento da ditadura consistia na possibilidade de proporcionar à República uma capacidade de decidir e agir rapidamente em circunstâncias excepcionais que exigiriam a sua defesa. Em tais circunstâncias, o exercício do poder executivo não poderia estar sujeito nem às limitações de autoridade dos órgãos colegiais, como acontecia com os cônsules, nem ao veto dos tribunos da plebe, nem aos apelos à participação popular (provocatio ad populum). Nomeado pelos cônsules, o ditador podia deliberar e agir sem consultar ninguém, fazendo o que entendesse necessário à salvação da República, e punir sem que houvesse lugar a recurso. Na sua actuação, não encontrava entraves normativos: diante do princípio supremo da salvação da República (salus populi), a observação das leis e procedimentos normais poderia ficar suspensa. No entanto, tal não significava que a ditadura pudesse transformar a República, destituindo o senado ou as autoridades consulares e substituindo leis antigas por uma nova ordem. Pelo contrário, tratar-se-ia de uma magistratura extraordinária, aplicada em momentos de excepcional gravidade, que, nessa medida, não se poderia substituir à normalidade nem normalizar a excepção. Daí que, por exemplo, Maquiavel, nas suas reflexões sobre o ditador romano, conclua que «somados o breve tempo da sua ditadura, a limitada autoridade que detinha e o não estar o povo romano corrompido, era impossível que ele extravasasse os seus limites e prejudicasse a cidade; e por experiência se vê que sempre ajudou» (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Livro I, 34). A limitação temporal e o carácter excepcional são essencialmente constitutivos da ditadura enquanto magistratura republicana. Por isso, a atribuição a Júlio César, em 44 a.C., do cargo de ditador vitalício acaba por ser interpretada como uma tentativa de transformação da República em Monarquia, determinando a conjura republicana que tem como desfecho o seu assassínio no Senado.
2. Apesar da sua origem republicana, a ditadura não se liga a um regimen ou a uma forma de governo específico. Trata-se antes de um modo de exercer o poder em virtude do que as circunstâncias possam exigir. A partir do século XVI, no seguimento da circunscrição do conceito de soberania, surge a figura de um «comissário governativo». No contexto da teoria do Estado moderno, o governo decorre da soberania, mas não se pode confundir com ela. Governar consiste em executar a vontade do soberano. Assim, desenvolvendo-se a figura do príncipe na concepção do monarca soberano, o «comissário governativo» aparece como o lugar-tenente do rei, encarregado de executar a sua vontade, representando-o e agindo em nome dele. O governante como comissário ou delegado do soberano, que exerce o poder em sua representação, permite desenhar a figura daquilo a que Carl Schmitt, no seu livro A Ditadura (1921), designou como «ditadura comissária». Agindo em nome do soberano, e da ordem por ele incorporada, o ditador comissário está vinculado a esta mesma ordem. Em nome dela, está autorizado a suspender excepcionalmente, quando as circunstâncias o impuserem, as normas que poderiam obstar à sua acção. É aquilo a que Schmitt chama «estado de excepção». No estado de excepção, subjacente à ditadura comissária, o vínculo às normas é suspenso em virtude de um vínculo primordial à ordem. É a reposição da ordem, e a defesa da soberania, que permite restabelecer a situação normal em que a vigência das normas pode ter lugar. Assim, numa ditadura comissária, tendo em conta a sua ligação à soberania, as normas jurídicas assentes nesta mesma soberania não desaparecem nem deixam de estar presentes. Elas estão presentes, mas estão-no como se estivessem ausentes. Ou seja, numa ditadura comissária, a suspensão das normas, e a intervenção directa do ditador em nome da soberania e da ultima ratio da salvação do Estado, é sempre entendida como uma reposição da situação de normalidade que permite às normas suspensas voltarem a vigorar.
3. O conceito de soberania popular, introduzido por Rousseau em Do Contrato Social (1762), e o uso deste conceito no contexto revolucionário francês, a partir de 1789, conduziu a uma nova representação da ditadura. Rousseau afirmara que, sendo o povo soberano, a soberania não poderia ser representada. Ninguém poderia representar a sua vontade – a vontade geral – e o governo não seria senão o seu delegado. Um Rei que se entendesse como representante soberano do povo, identificando a sua vontade particular com a vontade desse mesmo povo, seria um tirano usurpador. Assim, a partir da Revolução, tornava-se necessário um novo governo, entendido não como representante mas como delegado ou comissário da vontade popular. A República Francesa, estabelecida no decurso do poder jacobino e da execução de Luís XVI, institui esse novo governo, mediante a constituição do Comité de salut public, a 6 de Abril de 1793. Na concepção revolucionária de homens como Robespierre ou Saint-Just, o povo soberano exerce directamente a sua vontade através do governo revolucionário e o comité revolucionário é, sem qualquer mediação representativa, o exercício da vontade soberana do povo. Assim, a Revolução Francesa estabelece uma nova forma de ditadura. Já não se trata de uma ditadura comissária, que exerceria o poder em nome de um soberano. É agora a própria ditadura que é ela mesma soberana. Ao distingui-la no seu conceito, Carl Schmitt define a ditadura soberana como «a comissão de acção incondicionada de um pouvoir constituant». A evocação do poder constituinte do povo, definido por Sieyès, permite compreender o fundamento do conceito de ditadura soberana. A concepção de que o povo é soberano enquanto poder constituinte desemboca na ideia de que a soberania do povo só se exerce efectivamente numa ordem constituída (ou numa constituição). É, portanto, a ideia de construção no futuro de uma nova ordem revolucionária, e a ideia de que a Revolução antecipa esse futuro, que está subjacente ao conceito de ditadura soberana. Se o ditador comissário actua em virtude do vínculo a uma ordem passada, e encontra na concepção dessa ordem um limite ao exercício do seu poder, os revolucionários jacobinos exercem uma ditadura soberana sobre o povo sem qualquer vínculo ao seu passado, costumes e tradições. Ou seja, a ditadura soberana exerce-se não em nome de uma ordem passada a respeitar, proteger ou repor, mas em nome de um futuro que os revolucionários, actuando sem quaisquer limites como o seu poder criador, pretendem exclusivamente representar.
4. A confrontação com a Revolução, e com o estabelecimento da ditadura soberana que ela anuncia, leva, sobretudo a partir de 1848, ao surgimento de apologias da ditadura entendidas como invocações de um exercício autoritário do poder em nome do restabelecimento da autoridade e da ordem. Tratava-se, portanto, de apelar ao carácter comissarial da ditadura, invocando-o para se contrapor à violência revolucionária da ditadura soberana. Apelar à ditadura, como fazia Donoso Cortés num discurso famoso de 1849 nas Cortes espanholas, significaria invocar a «ditadura do sabre» – a ditadura do governo, da autoridade e da ordem que vem de cima – contra a «ditadura da navalha», concretizada no alastrar da insurreição e na disseminação da violência que vem de baixo. A figura do ditador assim invocado é, em geral, a de um chefe militar que, como o General Cavaignac em França ou o General Narváez em Espanha, usaria as forças armadas para pôr termo a tumultos e insurreições. Pode, por isso, chamar-se cesarismo a estas alusões à ditadura. Diante dos apelos à ditadura cesarista, o socialismo formará, a partir desses anos, o conceito de «ditadura do proletariado». Para Marx, que em 1848 publica com Engels o Manifesto do Partido Comunista, a transição da sociedade burguesa para a sociedade comunista não poderia deixar de se dar por meios violentos, implicando a tomada do poder e o seu exercício por uma «ditadura revolucionária do proletariado». Em 1875, na sua Crítica ao Programa de Gotha, em que, no contexto do projecto de um partido socialista unificado, contesta a Lassalle o propósito de integrar os socialistas no recentemente formado Império Alemão, Marx terá oportunidade de reforçar a ideia de que a ditadura do proletariado seria indispensável na realização do socialismo. É a imagem de uma ditadura revolucionária comunista, alimentada pela experiência da revolução bolchevista na Rússia a partir de 1917, que explica o aparecimento das ditaduras que marcaram a Europa no século XX. Estas entendiam-se, em geral, como a formação de governos autoritários limitados pela referência à ordem. Nestes governos, a abertura de um estado de excepção, se tal fosse necessário, deveria corresponder já não a um simples exercício cesarista do poder, mas a uma autorização constitucional para que o Presidente, ou um supremo magistrado, pudesse actuar em ditadura. Por exemplo, na Alemanha da República de Weimar, juristas como Carl Schmitt e Erwin Jacobi entendem o art. 48º da Constituição de 1919 como a abertura da possibilidade de, por via constitucional, decidir uma «ditadura do Presidente do Reich». Esta ditadura era entendida, naturalmente, em sentido comissarial. Assim, em países como Espanha e Portugal, o cesarismo da ditadura militar evolui para o aparecimento de novos Estados de cariz autoritário. Para os seus defensores, e para aqueles que invocavam como seu modelo o fascismo italiano,
chegado ao poder em 1922, tais Estados teriam na sua base uma ditadura comissária contra o projecto da ditadura soberana; uma «revolução da ordem» contra a ameaça comunista da Revolução e da sua «ditadura revolucionária do proletariado». Tratava-se de constituir um Estado que tivesse instrumentos, na sua ordem constitucional, para responder ao projecto comunista de tomar o poder e derrubar o próprio Estado, substituindo-o pela ditadura soberana do Partido. Como escrevia João Ameal em 1932, nas vésperas de, com a Constituição de 1933, a Ditadura Militar portuguesa se transformar no Estado Novo: «Olhemos atentamente para Roma – se queremos salvar-nos de Moscovo!» (A Revolução da Ordem, p. 21).
Bibliografia:
Bainville, Jacques. Les dictateurs. Paris: Denoël et Steele, 1935.
Donoso Cortés, Juan. Discurso sobre a Ditadura. Lisboa: Crítica XXI, 2023.
Maquiavel, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. trad., int. e notas de André Santos Campos e Giovanni Damele. Lisboa: Edições 70, 2024.
Saint-Bonnet, François. L’état d’exception. Paris: PUF, 2001.
Sartori, Giovanni. “Appunti per una teoria generale della dittatura”. in Theory and Politics: Festschrift zum 70. Geburtstag für Carl Joachim Friedrich (ed. Klaus von Beyme). Haag: Martinus Nijhoff, 1971, pp. 456-485.
Schmitt, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994.
- Dicionário: Laicismo
1. Definição. A palavra leigo tem origem grega: procede do termo ‘laos’, que significa povo. Neste sentido, o leigo é aquele que pertence ao povo de Deus, ou seja, o fiel cristão. Também se chama leigo ao que não recebeu nenhum grau do Sacramento da Ordem. Neste segundo sentido, tanto são leigos os fiéis que vivem no meio do mundo, geralmente em família e realizando algum trabalho profissional, como os religiosos que não receberam ordens sagradas, os irmãos leigos. Numa terceira acepção, são leigos, propriamente ditos, os fiéis católicos não ordenados nem membros de nenhuma ordem religiosa ou instituição similar.