por Paulo Otero, 2024
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1. A direita é a expressão de uma ideologia política que, opondo-se à esquerda, tem a sua origem histórica mais recente no posicionamento dos membros dos Estados Gerais, resultantes da Revolução Francesa, situando-se nesse lugar, em relação ao seu presidente, as classes privilegiadas, numa simbologia que tem as suas raízes na tradição cristã, pois, à direita de Deus, encontram-se os bons.
2. A direita do século XIX, ao invés do que sucedeu com a extrema-direita, converteu-se aos postulados moderados da Revolução Francesa, defendendo a liberdade, a segurança, a propriedade e a igualdade de todos perante a lei: a direita tornou-se constitucional e liberal, integrando-se dentro do sistema. É a direita que, expressa no conservadorismo britânico de Burke, está presente na restauração dos Bourbons, em França (1814), e nos Cartistas, em Portugal (1826), procurando fazer a síntese entre a revolução e a contrarrevolução, por via do contributo de Benjamin Constant. A direita oitocentista lega ao século XX uma ordem de quatro valores nucleares: Deus, Pátria, Autoridade/Rei e Família.
3. A direita, sem prejuízo da multiplicidade de manifestações que alberga, desde o século XIX e até ao presente, assenta nas seguintes características: (i) mostra-se na sua essência antirrevolucionária, preferindo a ordem natural das coisas a quaisquer intervenções políticas de rotura arbitrária com a tradição; (ii) nunca olha para o futuro sem ter presente o passado, submetendo as inovações das suas reformas ao crivo da tutela da confiança e de valores de génese histórica; (iii) suporta as desigualdades decorrentes da natureza, sem fazer da igualdade um valor prevalecente face à liberdade, apesar de não tolerar discriminações arbitrárias; (iv) configura a propriedade privada como um direito pessoal e natural, apesar de dotado de uma função social, dentro do contexto de uma economia de mercado alicerçada na iniciativa privada e na subsidiariedade do papel do Estado; (v) o trabalho e os direitos dos trabalhadores entendem-se à luz da dignidade da pessoa humanam, num modelo de cooperação ou concertação entre trabalho e capital, e nunca dentro de uma visão de luta de classes; (vi) aceita a democracia baseada no pluralismo político e na tolerância, num contexto de uma sociedade aberta, valorizadora da autonomia da pessoa e da sociedade civil; (vii) prefere um modelo governativo assente num executivo forte, capaz de manter a ordem e garantir a segurança de pessoas e bens.
4. Reconhecendo-se hoje a autonomia política da extrema-direita face à direita, o século XXI veio mostrar a existência de dois modelos distintos de direita: (i) existe, em primeiro lugar, uma “direita conservadora” que, partindo de uma base assente em valores éticos e religiosos judaico-cristãos, defende a inviolabilidade da vida humana, a família tradicional, numa total oposição aos postulados da designada cultura woke, apesar de revelar preocupações de justiça social justificativas de intervenção do Estado, visando a garantia mínimos de uma existência condigna a todos os cidadãos necessitados, sendo possível recortar nesta direita conservadora e defensora do Estado social, tendo por base a questão europeia, duas variantes – (1) há uma direita nacionalista que olha com desconfiança a progressiva federalização da União Europeia, e, em sentido diferente, (2) uma direita europeísta que acolhe e deseja um aprofundamento do modelo federal da União Europeia; (ii) existe, em segundo lugar, uma “direita liberal”, contaminada pelo neoliberalismo, tendencialmente laica, desligada dos valores conservadores, aceitando a mais ampla operatividade da liberdade no plano económico, defendendo o retorno a um Estado mínimo, e no plano social, sufragando a liberalização dos costumes, a dissolução da família tradicional, a relativização da inviolabilidade da vida humana e a implementação da ideologia de género, tudo à luz de uma hipervalorização da autonomia da vontade do indivíduo.
5. Na postura colaboracionista da “direita liberal” com a esquerda, formando uma oligarquia de interesses e acolhendo até propostas libertárias da esquerda, radica a moderna crise da direita e a ascensão política da extrema-direita: a “direita liberal”, sufocando o espaço da “direita conservadora” e deixando-se capturar ou colonizar pelo espírito revolucionário da esquerda, corre o risco de ser a coveira da direita política e abrir a porta ao radicalismo.
Bibliografia:
- Diogo Freitas do Amaral, Uma Introdução à Política, Lisboa, 2014, pp. 391 ss.
- Norberto Bobbio, Destra e Sinistra, 2ª ed., Roma, 1995
- Joan Antón Méllon (ed.), Ideologías y Movimentos Políticos Contemporáneos, 2ª ed, reimp., Madrid, 2008, pp. 45 ss
- Philippe Nemmo, Histoire des Idées Politiques aux Temps Modernes et Contemporains, Paris, 2009, pp. 27 ss., 699 ss. e 1009 ss
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Numa época de grande indefinição ideológica, que muitos afirmam ser pós-política, e até de tácitas alianças entre correntes de pensamento ultraliberal e movimentos de esquerda desconstrutivista, consideramos essencial recuperar ideias e valores contribuindo para distinguir o que não deve ser confundido.
- Dicionário: Centrismo
É difícil determinar ao certo se o centrismo é apenas um posicionamento, um pensamento ou até uma ideologia, um método ou processo de ação política. Provavelmente um pouco de tudo isto, dependendo as suas características concretas que sejam mais marcantes e definidoras dos respetivos intérpretes, geografias e contextos históricos. Um ponto é absolutamente essencial: a geometria é o principal, pois não há centrismo se não estiver ao centro – mais ou menos “rigorosamente ao centro”, mas sempre ao centro.
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1. Corrente política que se desenvolveu no século XX, a democracia cristã inspira-se na Doutrina Social da Igreja. Afirmou-se a partir do pensamento social dos Papas, desde finais do século XIX. Numa Europa em profunda crise social e confrontada com a emergência do socialismo marxista, a Igreja tomou posição, em várias Encíclicas, a favor de uma terceira via, que rejeita o liberalismo capitalista, sem preocupações sociais, e o marxismo. O primeiro Papa a fazer estes pronunciamentos foi Leão XIII, pela encíclica Rerum Novarum (A sede de inovações), em 15 de maio de 1891, que denunciou as condições desumanas de trabalho da classe operária e definiu os princípios cristãos perante as questões sociais e económicas do tempo.
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1. A esquerda política entende-se por oposição ideológica à direita, apesar de ambas terem a sua origem designativa numa mera disposição dos corpos sociais na assembleia dos Estados Gerais subsequente à Revolução Francesa: situada a burguesia e o povo à esquerda do respetivo presidente, aqui se localizam os protagonistas da revolução e do liberalismo radical, os inconformados com a ordem sociopolítica vigente, os impulsionadores das transformações dos valores e das instituições do “Ancien Régime” – dentro da lógica revolucionária, a esquerda representa os progressistas, apostados na edificação de um novo futuro, por contraste com aqueles que, situados à direita, simbolizando a defensa de uma ordem edificada no passado.
- Dicionário: Contrato Social
por Francisco Carmo Garcia, 2024
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1. A ideia do «contrato social» é uma das principais ideias da história da filosofia política, com o seu lugar de destaque incontestável na teoria política moderna. Esta teoria surgiu como uma tentativa de resposta à questão política fundamental sobre a legitimidade do governo e a justificação da obediência através de uma abordagem particular. Através da ficção de um «contrato» que fundaria a ordem política, encontramos um mecanismo que permite fazer-nos questionar: será que os princípios que justificam a ordem política seriam princípios aos quais daríamos o nosso consentimento?
2. Ainda que tenha alcançado o destaque na era moderna, a ideia do contrato social remonta a debates antigos. A lógica do contratualismo pode ser encontrada na resposta de Gláucon a Sócrates, no livro II d’A República de Platão, quando aquele tenta desenvolver o argumento do sofista Trasímaco. Segundo a lógica do sofista, «quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescripções da lei» (359a). Nesta visão, a origem da justiça está num «acordo mútuo» entre os homens para evitar as consequências nefastas da prática da injustiça uns contra os outros – ou seja, num cálculo determinado pelo interesse próprio para minimizar o sofrimento de eventuais injustiças.
3. Este argumento haveria de ganhar uma nova vida no dealbar da modernidade. Coincidência ou não, foi Thomas Hobbes (o adversário sistemático da tradição platónica e aristotélica) o responsável pela reintrodução da ideia de contrato no debate intelectual. Para Hobbes, o homem era um sujeito de desejos que encontra a sua felicidade na concretização contínua desses desejos; dessa sua relação com os seus desejos e aversões decorrem as paixões humanas, cuja paixão mais poderosa é o medo da morte; a vida do homem é determinada pela presença desta paixão maior, que está mais patente precisamente numa condição onde não existam leis que ordenam aquela busca permanente pelos desejos que leva ao conflito inter-humano, e faz do maior desejo humano a preservação. A solução do contrato surge neste momento como solução para o conflito inter-humano: a única forma de os homens saírem da condição de conflitualidade decorrente da sua natureza é através de um pacto feito entre todos. Neste pacto cada homem abandona o seu direito natural a decidir sobre as condições da sua preservação, transferindo-o para uma «pessoa artificial» que se colocará sobre todos eles, a quem caberá assegurar a preservação de cada um e a ordem coletiva. Tal como na solução de Gláucon, também só após o pacto é que podemos então falar da existência de justiça e de lei – em suma, de ordem. E a legitimidade do soberano para se fazer obedecer está precisamente no consentimento das partes contratantes que acordaram ceder o seu direito natural e a transferi-lo para o soberano.
4. Nesta sua primeira formulação moderna a ideia de contrato social parece depender de um conjunto de pressupostos e criar um conjunto de corolários específicos. Desde logo, o pressuposto da realidade do indivíduo como «homem genérico»; ou seja, da abstracção do homem concreto numa figura genérica que partilha do mesmo aparato fisiológico, psicológico e moral, que antecede qualquer pertença comunitária. Este indivíduo, como figura genérica, será quem tomará parte no contrato originário. Depois, o contratualismo parece depender de um estádio pré-político onde se inserem estes indivíduos – a que se chamaria «estado de natureza» - antes do contrato social. Em terceiro, as teorias contratualistas fazem da comunidade política um artifício; ou seja, uma obra da vontade humana, uma «obra de arte» cujo artífice é o homem. Do mesmo modo que a comunidade política tem uma origem artificial, também a matéria da comunidade política apenas adquire uma existência política como resultado do mesmo artifício: o «povo» só existe como resultado do pacto que funda o Estado, sendo antes daquele nada mais do que um agregado desordenado de indivíduos. Um «povo» pode, como vemos em Rousseau, ser constituído como obra da vontade – postulado que teria consequências enormes na vida política moderna, com o movimento nacionalista. Estas teorias do contrato social seriam ainda determinantes para dar forma ao liberalismo que se tornou na principal ideologia política da modernidade: sendo o contrato que dá origem ao Estado uma transferência de direitos (das partes contratantes
para o soberano), então o contratualismo dá origem à ideia tipicamente liberal de que o Estado é edificado para proteger os direitos dos indivíduos; e, como podemos verificar plenamente em Locke, esta transferência de direitos delimita também o âmbito da acção do Estado, i.e. cria os limites à própria acção do Estado como protector dos direitos individuais, limites esses que não poderá passar sem violar o contrato que o fez nascer, conduzindo à possibilidade e à legitimação de uma «revolução» levada a cabo pelos governados.
5. Vimos que as teorias do contrato social fundamentam a existência do Estado no consentimento. De modo que a legitimidade do governante decorre de uma «autorização» conferida pelos governados. Assim, a lei (que é, nas teorias contratualistas, a manifestação da vontade soberana) justifica-se como emanada de um poder voluntariamente constituído. Daí o trabalho dos primeiros contratualistas modernos em harmonizar a vontade do soberano, manifestada nas suas leis, com a vontade individual (como Rousseau e a sua «vontade geral»), ou em vincular o poder soberano a clausulas limitadoras da sua acção, de forma a evitar abusos de poder, como foi o caso de Locke e, em grande medida, do constitucionalismo setecentista e oitocentista. Podemos, assim, identificar nas teorias do contrato social dois grandes princípios, ambos ligados cronologicamente à sua evolução: o fundamento da existência do Estado e da legitimidade do governante na vontade humana, no consentimento; e a crença de que a existência política pode ser criada ex nihilo, como resultado da deliberação humana. Foi contra esta crença, omnipresente no constitucionalismo setecentista, que um Joseph de Maistre afirmou que um dos grandes erros do seu século «foi acreditar que uma constituição política poderia ser escrita e criada a priori».
6. Alvo de crítica ao longo de grande parte do século XIX, o contratualismo acabaria por ficar fora de moda. No entanto, assentando que nem uma luva no individualismo contemporâneo e na sua atenção desmedida ao conceito de autonomia, a lógica contratualista regressou ao centro do debate na filosofia política pelas mãos de John Rawls e do seu Uma Teoria da Justiça, que justifica a sobreposição da justiça em relação ao bem no acordo dos indivíduos que
partilham a condição do «véu de invisibilidade». Robert Nozick trataria do regresso do conceito de estado de natureza no seu Anarquia, Estado e Utopia, e os economistas da «rational choice» fariam do cálculo do interesse próprio o determinante das escolhas colectivas. Assim, o liberalismo ideologicamente dominante no ocidente (nas suas várias versões, «clássico» ou «moderno», de esquerda ou de direita, «social» ou «económico», etc.) tomaria logicamente pelas suas mãos uma renovação do contratualismo. Em todas estas versões do contratualismo contemporâneo descobrimos o mesmo objetivo, partilhado com as teorias modernas do contrato social: justificar racionalmente uma ordem política e os seus princípios ordenadores, fora de qualquer fundamento externo ou transcendente à própria ordem (em suma, sem o recurso a uma ideia transcendente de «bem supremo» ou «fim último»).-nos de Moscovo!» (A Revolução da Ordem, p. 21).
Bibliografia:
HOBBES, Thomas. Leviathan, or Matter, Form, and Power a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. Edição de Richard Tuck. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
LOCKE, John. Dois Tratados do Governo Civil. Tradução de Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2006.
MORRIS, Christopher W. (Ed.). The Social Contract Theorists: Critical Essays on Hobbes, Locke and Rousseau. Lanham: Rowman & Littlefield, 1999.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Vítor Guerreiro. Lisboa: Edições 70, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat social. Paris: Garnier Frères, 1962.
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