por Walter Osswald, 2024

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1. Há palavras, conceitos, noções cujo significado é familiar à imensa maioria das pessoas, mas cuja definição se torna difícil para quem conhece ou julga conhecer de forma correcta esse significado. Já o argutíssimo S. Agostinho nos chamou a atenção para esta dificuldade, pondo em contraste o que sabe com aquilo que é capaz de invocar como prova desse conhecimento.
Assim acontece com a vida: todos nós sabemos o que é a vida. A tentativa de a caracterizar, de forma excludente, pela sua antítese – no sentido de que é vida o que não está morto – não passa claro está, de uma tentativa de adoptar uma estratégia que conduz inevitavelmente a um pseudo – raciocínio de natureza circular.
Todavia, se limitarmos o âmbito da nossa empresa a uma forma ou fenómeno mais limitado, já muitos se consideram habilitados a avançar definições: vida vegetal, vida animal, vida humana são, indubitavelmente, apartados mais familiares e mais acessíveis de uma realidade muito mais ampla.
Fiquemos, nesta breve reflexão, pelo conceito de vida humana e pelas múltiplas consequências advenientes do entendimento que desta realidade se possa ter. Não nos referimos à questão das fronteiras entre a presença de vida em determinada pessoa e a sua ausência, o que inclui as eventuais dificuldades no diagnóstico de morte ou óbito. O que importa aqui é saber o que a vida humana representa e significa para a comunidade em que se insere a sua individual presença. É pacífico considerar esta vida como um bem precioso, de incalculável valor individual e colectivo, merecedor de respeito, exigente de atenção, protecção e auxílio para que se possa desenvolver em plenitude. Essa é a base sobre a qual assentam os cuidados que são prestados por indivíduos, mormente familiares ou próximos dos seres vivos em causa, ou por instituições, desde as movidas por motivações de raíz confessional ou de benemerência até às de administração local ou nacional.
Fala-se então da vida como valor, eventualmente como o mais nobre e alevantado valor, mas parece mais razoável considerar a vida como condição e base única para a existência de todos os valores; a liberdade, a beneficência, a justiça, a autonomia são alguns dos valores fundantes da dignidade e da felicidade humanas, mas só podem subsistir e manifestar-se enquanto os referirmos a um ser humano vivo.

2. Este respeito pela vida é reconhecido pelas leis que os povos têm adoptado, leis essas que se baseiam no princípio de origem bíblica de que é vedado ao Homem tirar a vida a outro Homem. Mais longe vai a protecção oferecida ao ser humano vivo, pela implementação, incompleta embora e longe de universal de medidas que propiciem boas condições de realização do próprio devir a cada ser humano vivo, de forma que tenha vida e a tenha em abundância.
Quem é este ser humano? Um vivente de espécie Homo sapiens sapiens, com certeza. Mas todo e qualquer, ou será que nem todos os membros da espécie humana podem ser designados como pessoas? Como a história ensina, não foram poucas as sociedades que não outorgaram a todos os seus participantes essa qualidade. Desde os deficientes eliminados logo após a nascença (Esparta) até aos velhos abandonados no deserto sem alimentação nem água (algumas tribos) ou ao horror dos genocídios (a partir da desqualificação de quem não é como nós ou é nosso inimigo) não são raros os exemplos de gravíssimos atentados contra a vida humana.
Recentemente tem ganho algum terreno a interpretação relativista do valor da vida humana: no respeito total vai-se infiltrando a noção relativizante da qualidade da vida. Nesta interpretação, mais importante do que a presença de vida humana seria a qualidade que a caracteriza. Assim, pessoas com compromissos sérios da sua qualidade de vida poderiam ser mortos, a seu pedido, se conscientes, ou por decisão de outrem (familiares, tutores, pais, comissões técnicas, peritos) caso tenham perdido cognição e vontade: numa situação fala-se de eutanásia ou de suicídio assistido, na outra de presumida decisão vital.

3. Ora, a questão da qualidade de vida, dada a sua enorme subjectividade e a insuperável dificuldade de definir os parâmetros sobre os quais se deve apoiar o juízo que a aceite como critério fiável para decidir sobre liceidade de facilitar ou de dar morte a quem está vivo invalidava, totalmente a chamada qualidade de uma vida como justificação da sua supressão. É de conhecimento universal que a avaliação da qualidade de vida varia enormemente entre indivíduos em circunstâncias semelhantes e até no mesmo indivíduo, consoante a disposição, o humor e as influências exercidas por quem o rodeia ou cuida: um paraplégico
ou uma pessoa em adiantado estadio de doença neurológica degenerativa ou em fase final de doença oncológica pode considerar inaceitável o seu viver, mas outros ( a experiência clínica ensina que constituem maioria) almejam viver, mesmo quando a sua condição aparece ao observador como de muito má qualidade. Acresce que não é possível definir quem poderá definir a qualidade de vida: o próprio ou terceiros, familiares ou técnicos de saúde? Trata-se aqui de uma falácia que, a ser validada viria a conduzir à terrível e assassina afirmação de que há vida indignas de ser vividas, princípio justificador da morte provocada a doentes, opositores, estrangeiros, cidadãos de etnias diferentes das que detinham o poder, como aconteceu no passado sempre presente.
Diferente, argumenta-se, é a eutanásia voluntária, conseguida por ministração de fármacos letais, levada a cabo pelo próprio (suicídio assistido) ou por técnicos de saúde (eutanásia médica). Aqui, tudo tem a ver com o princípio da autonomia: a pessoa teria o direito de pôr termo à sua vida ou de solicitar a terceiros a prática do respectivo acto. Repare-se que ao pôr em destaque a autonomia, os defensores da eutanásia diminuem o peso do argumento da qualidade de vida, que, todavia, invocam ao defender que haja circunstâncias individuais (doença terminal ou incurável, sofrimento, sanidade mental) que a tornem razoável.
De resto, é absurdo que se financie e implemente um plano nacional de prevenção do suicídio, justamente considerado pelas instâncias governamentais como um sério problema social e sanitário, e, por outro lado, se considere a prática do suicídio assistido como processo de terminar a vida. Contraditória é também e legalização do abortamento por decisão soberana da grávida quando o país se defronta com grave situação demográfica de permanente redução do número de nascimentos. É claro que deviam ser protegidas as mulheres grávidas que não podem ou não querem ter um filho através de medidas de protecção da gravidez e adopção de recém-nascidos, a cargo de casais ou do próprio Estado.

Em resumo: a vida humana é o fundamento e garantia do exercício de todos os direitos e potencialidades da pessoa e o princípio da sua inviolabilidade é o único que serve o desiderato de proporcionar um percurso vital digno e livre a todos.

Bibliografia:

  • Gil, F./Marques, M.S. (coords.) – A Condição Humana, FLAD, Lisboa, 2009.
  • New Encyclopedia Brittanic – Life, vol. 22, Chicago, 1986, pp. 985-1002.
  • Osswald, Walter – Sobre a Morte e o Morrer, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2013.
  • Osswald, Walter – Folhas no Caminho, Cápsula de Letras, 2021, pp. 17-44.
  • Seoane, J.A. – La Construcción Juridica de la Autonomia del Paciente, Eidon, 2013, pp. 13-34.

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