por Francisco Carmo Garcia, 2024
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1. Falar do Estado é, como surge invariavelmente nos manuais dedicados ao tema, falar do que parece ser a forma paradigmática de organização política de um povo. Desse modo, na sociologia e na ciência política encontramos normalmente associados ao conceito de Estado os seus elementos constitutivos: o «povo», o seu elemento humano; o «território», como elemento geográfico; e o «poder político». Num mundo composto de Estados, como é o mundo moderno, estes parecem ser os seus traços genéricos, de uma forma ou outra generalizáveis por toda a experiência humana.
2. Fazer do Estado a unidade política paradigmática implica usar a sua imagem para explicar todas as experiências políticas registadas historicamente. Ou seja, dizer que tanto a pólis grega, a civitas romana, a experiência do império, a respublica christiana, as cidades renascentistas, etc., são todas formas distintas desta mesma unidade política que é o Estado. No entanto, esta generalização precipitada acaba por esconder a essência peculiarmente moderna da ideia de Estado. Com efeito, não se nos pode escapar a novidade que o uso do termo «Estado» (State, État, Staat, Stato) significou na história do pensamento político: um exercício genealógico demonstra que apenas a partir dos séculos XV/XVI o termo começou a ser utilizado para articular aquilo que hoje queremos com ele significar – a ideia de comunidade política – e que se afastou progressivamente do seu significado tradicional, ainda verificado em Maquiavel, de «estado» enquanto condição distintiva de um agrupamento de homens em hierarquia ou função. A evolução do uso do termo sugere seguir o aviso de Carl Schmitt, quando lembrou que o conceito de Estado remete a um «fenómeno histórico» específico e não ao fenómeno político concreto, testemunhado em todos os tempos e geografias.
3. O primeiro traço distintivo do conceito de Estado em relação às restantes formas de unidade política é a sua artificialidade, contrária a toda uma tradição de pensamento político que via no homem um animal naturalmente político e a cidade uma forma de comunidade natural. Aqui não interessa tanto se o Estado é de facto um artifício, mas sim que na sua forma mais articulada se concebe precisamente como um artifício – como uma obra humana. Esta artificialidade está patente nas teorias contratualistas que são a fonte intelectual do Estado moderno, e que fazem deste um produto da vontade humana. Não é um mero acaso que à imagem mitológica do Estado como «grande Leviatã» esteja associada a imagem secularizada do fiat originário – uma criação que já não é divina, mas exclusivamente humana. Tal como o conceito de soberania, indelevelmente ligado ao de Estado, também este último significou um passo na «autonomização» do domínio político face ao teológico, e neste processo a articulação teórica do Estado encontrou o seu contexto histórico: a Europa tardo-medieval, palco para incessantes conflitos religiosos e políticos, fruto do cisma protestante que multiplicou as interpretações subjectivas das Escrituras. A tarefa dos primeiros teorizadores do Estado foi precisamente a de ultrapassar esta condição permanente de conflito – poderíamos dizer «conflito natural», que apenas seria ultrapassado mediante uma solução artificial que se colocasse acima de todas as contendas. Daí o seu segundo traço distintivo: o seu objetivo primeiro, a garantia da ordem. O Estado surge como o instrumento dotado do poder unitário – da soberania – que vai imprimir a ordem num mundo desordenado.
4. O Estado, enquanto fenómeno histórico, corresponde ao momento em que o problema da ordem toma a primazia sobre todos os restantes problemas políticos. É neste sentido que a imagem do Estado adquire os traços de toda a sua artificialidade. O Estado surge como máquina, como um instrumento a cumprir uma função meramente técnica: assegurar a ordem perante a desordem. Para trás ficam todas as considerações teleológicas que animavam a tradição aristotélica da filosofia política, que encontravam na cidade o espaço para a concretização plena do ser humano, para a concretização de um determinado modelo do «melhor homem». Surge nesta figura do Estado-máquina a imagem tipicamente moderna do «Estado neutro», do Estado sem opinião, que apenas cumpre a função para a qual foi edificado pelo homem. A forma como o Estado surge enquanto artifício que se coloca acima de todas as contendas cristaliza-se na dicotomia típica da modernidade que divide o domínio público do privado: privado e público separam-se nitidamente porque o segundo se coloca sobre o primeiro, encarregando-se de regular os seus excessos; na separação público-privado encontramos os resquícios da dicotomia elementar natureza-artifício, e nela testemunhamos as principais aporias da modernidade (a oposição hegeliana entre cidadão e burguês constará na lista, ganhando uma intensidade particular com todas as suas consequências).
5. Obra da vontade humana, imagem de máquina com a função de assegurar a ordem, a ideia moderna de Estado abriu as portas a um horizonte alargado de possibilidades que, exceptuando algumas experiências históricas, partilham de um denominador comum: a ausência de toda a referência teleológica a um modo de concretização humana. Seja o Estado liberal, dedicado a proteger os direitos ou a «autonomia» individuais; o Estado social-democrata, que aliou a garantia da ordem com a construção da «sociedade de bem-estar»; sejam os sonhos marxistas de um «fim da História» no qual o Estado seria destroçado e, com ele, eliminado todo o conflito humano. Este mesmo Estado que resolveu o problema da ordem no mundo tardo-medieval e moderno vê-se a braços com uma dupla investida: por parte de órgãos supranacionais que neutralizam a sua capacidade de agir e tentam limitar o seu direito à soberania; por parte de unidades infra-políticas que vão desde blocos regionais a grandes empresas multinacionais que, se não minam o Estado internamente, adquirem externamente um poderio tal que ultrapassa frequentemente o de muitos Estados. É possível que este novo problema encaminhe o mundo para um novo tipo de organização do poder, do qual o mais exemplificativo historicamente seria o feudalismo; contudo, perante a desordem material e espiritual que se vive hoje, a necessidade de um agente de ordem é cada vez mais premente, e, até ver, não se encontrou nenhum substituto à altura do Estado.
Bibliografia:
• GOYARD-FABRE, Simone. L’État : figure moderne de la politique. Paris: Armand Colin, 1999.
• HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1990.
• HOBBES, Thomas. Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Common-Wealth Ecclesiastical and Civil. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
• SKINNER, Quentin. «A Genealogy of the modern State», em Proceedings of the British Academy, Volume 162 (2009), pp. 325.
• IBSEN NORONHA, Lições de História da Cultura Jurídica, Caminhos Romanos, Coimbra, 2024.
• SANTO TOMÁS de AQUINO, Tratado da Lei, Resjuridica, Porto, 1992.
• WILSON COIMBRA LENKE, A Lei e sua ordem a Deus segundo Santo Tomás de Aquino, Contra Errores, São Paulo, 2024.
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- Dicionário: Universidade
1. A Universidade é uma criação do espírito medieval europeu. Se bem que existam antecedentes nas academias gregas e romanas e, na Idade Média europeia, no ensino realizado nas igrejas, conventos e mosteiros, as universidades nascem no final do século XI como uma resposta original das cidades, reis e Igreja aos problemas do tempo. No início, o ensino centra-se em matérias específicas: em regra, teologia, direito (romano e ou canónico) e medicina. Desde então, a universidade prepara os profissionais que as sociedades necessitam em cada época.
Em toda a Europa estuda-se o mesmo e de acordo com um método também comum (por antonomásia, o método escolástico). Junto das universidades são criados colégios destinados à preparação dos futuros estudantes e o seu número, no início muito pequeno, aumenta gradualmente ao longo da Idade Média. Aí estudam-se as chamadas artes liberais, o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), num modelo por vezes designado como faculdade de artes.
O prestígio dos professores e do método justifica o sucesso. São fundadas universidades em toda a Europa ocidental nos séculos seguintes, embora com qualidade e reconhecimento muito diferente. Bolonha foi a primeira universidade (1088) e, seguindo o seu modelo foram fundadas ou reconhecidas como universidades em outros países europeus, em 1150 Paris, em 1156 Oxford, em 1209 Cambridge, em 1218 Salamanca, entre muitas outras. No caso português, D. Dinis funda o Estudo Geral na cidade de Lisboa, em 1290.
2. O modelo organizativo é peculiar, no contexto medieval. A universidade é uma corporação de professores e estudantes, com autonomia perante as autoridades municipais, eclesiásticas e reais. Tem património próprio e juízes privativos.
A organização dos saberes coloca a teologia no seu centro. A expressão a teologia é a mãe das ciências exprime a importância da religião e da teologia para todos os saberes. A reflexão acerca dos fundamentos do direito e da medicina é feita a partir da teologia. Teólogos como São Tomás de Aquino estudaram estes temas de acordo com um espírito sistemático, outro elemento característico da visão medieval. Mas um sistema que decorre da religião e da teologia.
3. No século XVI, o humanismo vai trazer novos desafios às universidades. De um lado e com a redescoberta de obras clássicas gregas e latinas, a invenção da imprensa e a sua utilização na divulgação do conhecimento, e as novas descobertas científicas trazidas com os descobrimentos em muitas áreas (astronomia, cartografia, geografia, geologia, história, entre outras), implicam uma revisão dos saberes e dos autores em que estes se fundavam. De outro lado, a reforma protestante e a contra-reforma católica dividem de modo dramático a comunidade cristã e obrigam os universitários a tomar partido nas contendas religiosas.
Neste contexto, que é simultaneamente de crise religiosa e de expansão do conhecimento, são fundadas novas universidades. No caso português, assinalamos a fundação da Universidade de Évora, dirigida pela Ordem de Jesus. Nunca foi autorizada a ministrar cursos jurídicos, embora seja aí e na Universidade de Coimbra que ensinam alguns dos grandes teólogos que intentaram prosseguir a visão medieval, como Francisco Suarez e Molina. Costuma designar-se esta visão como segunda escolástica ou escolástica peninsular, uma vez que ela tem também como foco outras universidades peninsulares, como Salamanca.
4. Esta herança clássica vai defrontar-se no Iluminismo com novas ideias e com a pretensão de construir um novo sistema científico e crítico já sem a presença da teologia. De um lado, a reacção anti-jesuítica leva à extinção das universidades, como a de Évora, e ao encerramento dos inúmeros colégios que dirigiam. Por toda a Europa reorganizam-se ou reformam-se as Universidades. Em Portugal, a chamada reforma pombalina de 1772 é um dos marcos destas ideias iluministas acerca da ciência. Aumenta o controlo do Estado e intensifica-se uma visão profissionalizante da universidade.
Décadas passadas, a visão iluminista confronta-se com uma nova visão liberal acerca do ensino e da educação, em geral. Torna-se evidente um caminho no sentido da secularização, de um lado, e de triunfo gradual de uma nova forma de pensar as ciências, as antigas e as novas – o positivismo.
Em vários países europeus, nascem, dentro das universidades ou como instituições especializadas, faculdades ou institutos ligados à formação prática de engenheiros e de arquitectos, de desenhadores e de outros profissionais. A reformulação dos saberes implica então a criação de novas Faculdades a partir da matriz antiga ou a criação de universidades para estes saberes técnicos. Nasce aqui uma tendencial diferenciação
entre os saberes clássicos e os saberes técnicos, as universidades clássicas e as técnicas ou politécnicas.
5. As universidades oitocentistas vão ainda exigir dos académicos a produção de novo conhecimento e a sua divulgação. De um lado, portanto, a exigência de investigação e de inovação, depois colocadas ao serviço do ensino; de outro, a exigência de publicitação desse conhecimento. A partir do século XIX, a formação da sociedade industrial e de massas é assim acompanhada por institutos de investigação científica dentro das universidades e por um novo tipo de cientistas cujas inovações e invenções, por exemplo corporizadas em patentes, são cruciais para o avanço do conhecimento e da qualidade de vida. A liberdade de investigar e de ensinar é reivindicada como uma das dimensões da nova ideia de universidade.
As universidades do século XIX completam assim a herança anterior. São inclusivamente fundadas universidades apenas focadas na investigação científica, mas a generalidade das instituições continua simultaneamente dedicada à investigação e ao ensino.
No quadro das ideias educativas liberais dos séculos XIX e XX, entende-se que o acesso ao ensino superior deve ser generalizado. As universidades vão assim defrontar-se com o desafio de incluir um número sempre crescente de estudantes e de definir sistemas concorrenciais justos de acesso. Na Europa, criados os liceus de acordo com um modelo primeiramente definido em França, caberá a estas instituições formar e na prática determinar os métodos de selecção dos futuros universitários.
6. Vale a pena lembrar alguns dos marcos da história da universidade em Portugal. Em 1836, a reforma liberal da universidade, que será depois continuada por outras. Ao longo do século XIX, a criação de escolas fora de Coimbra para o ensino da medicina, das ciências, da farmácia e da formação de professores, abre o caminho para que, em 1911, com a criação das Universidades de Lisboa e do Porto, termine o monopólio que a Universidade de Coimbra exercia em Portugal.
Mas é apenas no final do Estado Novo que se assinala a criação de novas universidades públicas e o reconhecimento da Universidade Católica e, com a democracia e a afirmação constitucional das liberdades de aprender e de ensinar, também de universidades privadas.
Em 2024 existem treze universidades públicas, nove universidades privadas e a Universidade Católica. Cerca de quatrocentos mil estudantes frequentam em cada ano instituições de ensino superior, incluindo as escolas do ensino politécnico. Uma das directrizes políticas da revolução de 1974, a democratização do ensino superior, está cumprida. Frequentar a universidade deixou de ser um privilégio para ser um direito.
Contudo, emergem novos problemas.
A multiplicação de áreas científicas já não permite encontrar um fundo comum a todas elas. Por esta razão, a legislação portuguesa desistiu de definir universidade e consagra um critério aritmético: podem ser reconhecidas como universidades as instituições que ministrem seis cursos de licenciatura, seis ciclos de mestrado e três de doutoramento em áreas científicas distintas e que produzam actividades de investigação, de ensino e de divulgação cultural. No entanto, não existe hoje em dia uma classificação universalmente aceite das ciências e áreas científicas.
7. Olhando em retrospectiva para a história pluricentenária da universidade, verificamos que as instituições estão hoje mergulhadas numa rede de complexidade burocrática sempre crescente, com processos de acreditação, de avaliação nacional e internacional, de avaliação dos docentes, de internacionalização, de medição das consequências das publicações e da investigação, processos que implicam por sua vez o recrutamento de uma multiplicidade de especialistas que não são académicos e que levam as universidades a fechar-se sobre si próprias.
A autonomia das universidades é uma forma institucional de assegurar que os professores e investigadores gozam de liberdade para investigar, ensinar e difundir o conhecimento. Uma liberdade que é conhecida internacionalmente como liberdade de cátedra. Mas esta liberdade não pode entender-se como absoluta e sem limites. Hoje, para além dos clássicos problemas da verdade, do belo e do justo, o conhecimento científico vive confrontado com as novas ameaças sociais e ideológicas, como o politicamente correcto, a massificação, a inteligência artificial e o transhumanismo.
A universidade portuguesa também perdeu o monopólio da formação profissional. A licenciatura deixou de ser a licença para exercer uma profissão. Hoje, uma multiplicidade de organismos, designadamente ordens profissionais, pretendem controlar e validar os conhecimentos adquiridos pelos estudantes universitários.
Continuam válidas nos nossos dias as ideias do Cardeal S. John Henry Newman formuladas em meados do século XIX. A universidade ideal é uma comunidade de
pensadores, envolvendo-se em atividades intelectuais não para qualquer propósito externo, mas como um fim em si mesmo. Prevendo uma educação ampla e liberal, que ensina os alunos a pensar e a raciocinar e a comparar e a discriminar e a analisar, Newman considerou que as mentes estreitas nascem de especialização estreita e ensinou que os estudantes devem receber uma base sólida em todas as áreas de estudo. A missão da Universidade, completou Ortega y Gasset, numa fórmula feliz e que continua válida para os nossos dias, é a de estar à frente do seu tempo. E isto só pode ser compreendido nesta ligação entre ciência e cultura, procura da verdade e sentido do bem.
Bibliografia principal:
- Guilherme Braga da Cruz, O Essencial sobre a História das Universidades, Lisboa, Imprensa Nacional, 2008
- John Henry Newman, The idea of a university, 1873 (https://www.gutenberg.org/files/24526/24526-pdf.pdf)
- J. Ortega y Gasset, Mission de la Universidad, Madrid, 1930
- António M. Feijó e Miguel Tamen, A Universidade como deve ser, Lisboa, FFMS, 2017 - Alasdair MacIntyre, God, Philosophy, Universities. A Selective History of the Catholic Philosophical Tradition, Rowman, Maryland, 2011
- Dicionário: Direito
por António Pedro Barbas Homem, 2024
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1. Definir o que é o direito é uma tarefa impossível sem a consideração da sua historicidade enquanto conceito e enquanto instituição. Gregos, romanos e as sociedades medieval ou moderna tiveram respostas distintas a esta questão. Cada Estado teve e tem as suas próprias leis e costumes, instituições políticas e sociais. Todos os Estados continentais da Europa têm as suas constituições e os seus códigos, frequentemente semelhantes, mas também com muitas diferenças quanto ao modelo de organização do poder – temos repúblicas e monarquias, Estados unitários e Estados federais, regimes presidenciais e parlamentares – e quanto à estrutura da sociedade – por exemplo, com diferenças quanto ao regime do casamento, do poder paternal ou dos contratos – ou quanto à natureza das penas para os crimes. Muitos Estados do mundo ainda admitem a pena de morte e alguns inclusivamente os castigos corporais e a tortura. Quando analisamos a história e a situação actual específica do direito de cada Estado e comunidade damo-nos conta deste paradoxo do particularismo perante uma ideia universalmente válida de direito.
2. Se o direito é uma norma ou um conjunto de normas, para evitar o niilismo dos Estados e dos poderes, durante séculos prevaleceu no ocidente cristão o princípio da existência de princípios e regras superiores ao direito de cada Estado. Na tradição cristã, era essa a função do direito natural, de um lado decorrente da vontade de Deus revelada aos homens e, de outro, construído a partir dessa vontade de modo dedutivo.
Nos nossos dias, as grandes declarações e convenções de direitos humanos ao nível mundial, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, e regional, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assentam na existência de direitos inerentes aos homens que cada Estado tem a obrigação de assegurar.
Do mesmo modo, no constitucionalismo contemporâneo, na Europa continental posterior à segunda guerra mundial, os direitos fundamentais são também formulados a partir de uma mesma convicção acerca da existência de direitos anteriores ao Estado, que este deve garantir.
Os três elementos centrais dos direitos humanos e dos direitos fundamentais são a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade perante a lei.
Direitos naturais e direitos fundamentais são, assim, uma primeira face do direito dos nossos dias.
3. De outro lado, existem princípios gerais que, mesmo não sendo universalmente aceites, constituem o pecúlio do que frequentemente designamos como ocidente ou civilização ocidental e que resumimos na fórmula Estado de direito (ou, em inglês, rule of law).
Foi com o liberalismo que se definiu um princípio que ainda hoje continua válido: é livre (lícito ou conforme à lei) tudo o que não for proibido por lei. A liberdade ou autonomia privada é, assim, um princípio do direito. Esta autonomia é mais protegida em certas matérias que designamos por vida privada e intimidade.
O perímetro do que entendemos como direito e, portanto, dos comportamentos judicialmente exigíveis, confronta-se, então, com as matérias que entendemos que ou não têm dignidade jurídica ou entendemos que estão para além do direito. O jurista francês Jean Carbonnier utiliza a divertida expressão o sono do direito para referir que a vida afectiva, a vida espiritual e a vida em família devem estar livres da intervenção do direito, isto é, do legislador e do juiz.
A autonomia privada apenas pode ser limitada por lei, lei que desempenha uma função essencial de garantir a liberdade e, de outro lado, de a concretizar.
Este é outro paradoxo do direito. De um lado os direitos são garantias contra o Estado, mas, de outro, as leis do Estado são necessárias para concretizar os direitos.
Em vários códigos civis diz-se, a este respeito, que os contratos valem como lei entre as partes.
Hoje, no entanto, existe uma ofensiva para reduzir a reserva de liberdade e de autonomia. Como se generalizou o entendimento de que qualquer pretensão de um indivíduo ou de um grupo tem dignidade de direito fundamental e está protegido pela constituição e pode ser levado para decisão de um tribunal – porque os tribunais e, por último, o tribunal constitucional, exercem uma função de tutela de todos os direitos e interesses – cabe então aos tribunais decidir em última instância dessas pretensões.
4. O funcionamento do direito exige, em caso de conflito, a intervenção de um terceiro imparcial. É a heteronomia: para além da lei e dos direitos, outras instituições básicas do direito são o tribunal e o julgamento.
Para o cristianismo, o julgamento de Cristo constitui uma das recordatórias mais importantes acerca da necessidade de um julgamento justo e das suas instituições, um conjunto ou feixe de princípios e de regras que também designamos como juiz natural e processo devido ou justo (due process). Lei prévia, acusação responsável, garantias de defesa, especialmente direito ao contraditório, tribunal independente e juiz imparcial são concretizações institucionais destes princípios. Direito ao recurso, isto é, uma nova instância que julgue os julgamentos tornou-se outra das instituições do processo devido, de modo a procurar evitar o erro judiciário. Que estes julgamentos sejam feitos por um colégio de juízes – e não por um só – é outra exigência organizativa que acresce às anteriores.
Estas ideias justificam a importância que adquiriram nas ordens jurídicas ocidentais o processo e o procedimento. São instituições fundamentais, quer para a qualidade da democracia, quer do processo judicial e do procedimento da administração.
5. Cabe aos terceiros imparciais, os juízes, aplicar nos casos de conflito, as sanções especificamente jurídicas. Também aqui, apenas o estudo da marcha histórica do direito ocidental permite compreender a nossa situação actual, que aboliu a pena de morte, as penas corporais, a tortura, a chamada morte civil, o cárcere privado, os castigos corporais. Recordo, como exemplo, que até recentemente, era permitida a aplicação de castigos corporais aos menores nas famílias e nas escolas.
A responsabilidade civil tornou-se exclusivamente patrimonial. A responsabilidade criminal assenta na aplicação da pena de privação da liberdade, ao lado de outras penas.
6. Mas como reagir perante a injustiça de uma lei, de uma sentença ou de um contrato?
Uma das mais importantes contribuições para o direito e para a política de uma visão que hoje conhecemos como tradição do direito natural ou ainda jusnaturalismo (esta uma expressão contemporânea) é precisamente a doutrina da justiça e do direito justo. Na verdade, e em especial na visão mais antiga, por exemplo de São Tomás de Aquino, o direito natural era o fundamento do direito positivo, no duplo sentido em que este se devia fundar naquele e, quando se afastasse, deixaria de ser exigido o acatamento das normas positivas.
O Compêndio de Doutrina Social da Igreja Católica recolhe o essencial dessa tradição, na verdade muito complexa e por vezes contraditória no seu desenvolvimento histórico, sob a forma do direito de objecção de consciência e do direito de resistência (n.ºs 393 ss., especialmente, 400-401). A consciência individual e a consciência colectiva do justo são instâncias que, nesta visão, examinam a obrigação de cumprimento das leis ou de ordens quando elas implicam colaborar em ações moralmente erradas.
De acordo com estas doutrinas do direito existe um conjunto de regras objectivas ou pressupostas chamadas direito natural, que são o fundamento e referência para o direito positivo criado pelos Estados, assim estabelecendo a ligação entre o direito e a moral.
7. De modo distinto em relação às doutrinas do direito natural, uma outra posição doutrinária sustenta a separação entre o direito e a moral e a ausência de qualquer tipo de referências supra-positivas. No plano filosófico, o positivismo encontra-se associado ao utilitarismo e ao liberalismo oitocentistas. Existem muitas formulações diferentes desta visão positivista, aqui resumida à rejeição da existência de regras superiores ao direito positivo.
8. O direito e a ciência do direito encontram-se hoje perante desafios complexos resultantes das transformações dos Estados, das sociedades e das mentalidades. Ao lado de uma revolução industrial – com a inteligência artificial, a robotização e a Internet das coisas, entre outras manifestações – e de transformações aceleradas na economia e na estrutura laboral, as sociedades confrontam-se também com uma revolução cultural e social, acelerada pelas redes sociais e na qual muitos protagonistas exigem novos direitos e uma nova ordem jurídica. Com a globalização, fala-se de um constitucionalismo global e multinível, na medida em que, ao lado das fontes nacionais, em cada Estado também se aplica o direito criado por instituições internacionais. O papel criador desempenhado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Tribunal de Justiça da União Europeia e Tribunais Constitucionais no plano interno convoca uma discussão acerca da crise da legitimidade democrática do direito e do Estado, agravada pela omnipresença de comissões de especialistas não eleitos na formulação de políticas públicas e na manipulação da opinião pública.
Saber se estas transformações se concretizam num novo tipo de sociedade pós-moderna é um tema controvertido e da maior actualidade.
BIBLIOGRAFIA:
António Castanheira Neves, Digesta, Coimbra, Coimbra Editora, I-II, 1995
José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Coimbra, Almedina, 2022
Stephan Kirste, Introdução à Filosofia do Direito, trad., Belo Horizonte, Fórum, 2013
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