por António Pedro Barbas Homem, 2024
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1. A Universidade é uma criação do espírito medieval europeu. Se bem que existam antecedentes nas academias gregas e romanas e, na Idade Média europeia, no ensino realizado nas igrejas, conventos e mosteiros, as universidades nascem no final do século XI como uma resposta original das cidades, reis e Igreja aos problemas do tempo. No início, o ensino centra-se em matérias específicas: em regra, teologia, direito (romano e ou canónico) e medicina. Desde então, a universidade prepara os profissionais que as sociedades necessitam em cada época.
Em toda a Europa estuda-se o mesmo e de acordo com um método também comum (por antonomásia, o método escolástico). Junto das universidades são criados colégios destinados à preparação dos futuros estudantes e o seu número, no início muito pequeno, aumenta gradualmente ao longo da Idade Média. Aí estudam-se as chamadas artes liberais, o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), num modelo por vezes designado como faculdade de artes.
O prestígio dos professores e do método justifica o sucesso. São fundadas universidades em toda a Europa ocidental nos séculos seguintes, embora com qualidade e reconhecimento muito diferente. Bolonha foi a primeira universidade (1088) e, seguindo o seu modelo foram fundadas ou reconhecidas como universidades em outros países europeus, em 1150 Paris, em 1156 Oxford, em 1209 Cambridge, em 1218 Salamanca, entre muitas outras. No caso português, D. Dinis funda o Estudo Geral na cidade de Lisboa, em 1290.
2. O modelo organizativo é peculiar, no contexto medieval. A universidade é uma corporação de professores e estudantes, com autonomia perante as autoridades municipais, eclesiásticas e reais. Tem património próprio e juízes privativos.
A organização dos saberes coloca a teologia no seu centro. A expressão a teologia é a mãe das ciências exprime a importância da religião e da teologia para todos os saberes. A reflexão acerca dos fundamentos do direito e da medicina é feita a partir da teologia. Teólogos como São Tomás de Aquino estudaram estes temas de acordo com um espírito sistemático, outro elemento característico da visão medieval. Mas um sistema que decorre da religião e da teologia.
3. No século XVI, o humanismo vai trazer novos desafios às universidades. De um lado e com a redescoberta de obras clássicas gregas e latinas, a invenção da imprensa e a sua utilização na divulgação do conhecimento, e as novas descobertas científicas trazidas com os descobrimentos em muitas áreas (astronomia, cartografia, geografia, geologia, história, entre outras), implicam uma revisão dos saberes e dos autores em que estes se fundavam. De outro lado, a reforma protestante e a contra-reforma católica dividem de modo dramático a comunidade cristã e obrigam os universitários a tomar partido nas contendas religiosas.
Neste contexto, que é simultaneamente de crise religiosa e de expansão do conhecimento, são fundadas novas universidades. No caso português, assinalamos a fundação da Universidade de Évora, dirigida pela Ordem de Jesus. Nunca foi autorizada a ministrar cursos jurídicos, embora seja aí e na Universidade de Coimbra que ensinam alguns dos grandes teólogos que intentaram prosseguir a visão medieval, como Francisco Suarez e Molina. Costuma designar-se esta visão como segunda escolástica ou escolástica peninsular, uma vez que ela tem também como foco outras universidades peninsulares, como Salamanca.
4. Esta herança clássica vai defrontar-se no Iluminismo com novas ideias e com a pretensão de construir um novo sistema científico e crítico já sem a presença da teologia. De um lado, a reacção anti-jesuítica leva à extinção das universidades, como a de Évora, e ao encerramento dos inúmeros colégios que dirigiam. Por toda a Europa reorganizam-se ou reformam-se as Universidades. Em Portugal, a chamada reforma pombalina de 1772 é um dos marcos destas ideias iluministas acerca da ciência. Aumenta o controlo do Estado e intensifica-se uma visão profissionalizante da universidade.
Décadas passadas, a visão iluminista confronta-se com uma nova visão liberal acerca do ensino e da educação, em geral. Torna-se evidente um caminho no sentido da secularização, de um lado, e de triunfo gradual de uma nova forma de pensar as ciências, as antigas e as novas – o positivismo.
Em vários países europeus, nascem, dentro das universidades ou como instituições especializadas, faculdades ou institutos ligados à formação prática de engenheiros e de arquitectos, de desenhadores e de outros profissionais. A reformulação dos saberes implica então a criação de novas Faculdades a partir da matriz antiga ou a criação de universidades para estes saberes técnicos. Nasce aqui uma tendencial diferenciação
entre os saberes clássicos e os saberes técnicos, as universidades clássicas e as técnicas ou politécnicas.
5. As universidades oitocentistas vão ainda exigir dos académicos a produção de novo conhecimento e a sua divulgação. De um lado, portanto, a exigência de investigação e de inovação, depois colocadas ao serviço do ensino; de outro, a exigência de publicitação desse conhecimento. A partir do século XIX, a formação da sociedade industrial e de massas é assim acompanhada por institutos de investigação científica dentro das universidades e por um novo tipo de cientistas cujas inovações e invenções, por exemplo corporizadas em patentes, são cruciais para o avanço do conhecimento e da qualidade de vida. A liberdade de investigar e de ensinar é reivindicada como uma das dimensões da nova ideia de universidade.
As universidades do século XIX completam assim a herança anterior. São inclusivamente fundadas universidades apenas focadas na investigação científica, mas a generalidade das instituições continua simultaneamente dedicada à investigação e ao ensino.
No quadro das ideias educativas liberais dos séculos XIX e XX, entende-se que o acesso ao ensino superior deve ser generalizado. As universidades vão assim defrontar-se com o desafio de incluir um número sempre crescente de estudantes e de definir sistemas concorrenciais justos de acesso. Na Europa, criados os liceus de acordo com um modelo primeiramente definido em França, caberá a estas instituições formar e na prática determinar os métodos de selecção dos futuros universitários.
6. Vale a pena lembrar alguns dos marcos da história da universidade em Portugal. Em 1836, a reforma liberal da universidade, que será depois continuada por outras. Ao longo do século XIX, a criação de escolas fora de Coimbra para o ensino da medicina, das ciências, da farmácia e da formação de professores, abre o caminho para que, em 1911, com a criação das Universidades de Lisboa e do Porto, termine o monopólio que a Universidade de Coimbra exercia em Portugal.
Mas é apenas no final do Estado Novo que se assinala a criação de novas universidades públicas e o reconhecimento da Universidade Católica e, com a democracia e a afirmação constitucional das liberdades de aprender e de ensinar, também de universidades privadas.
Em 2024 existem treze universidades públicas, nove universidades privadas e a Universidade Católica. Cerca de quatrocentos mil estudantes frequentam em cada ano instituições de ensino superior, incluindo as escolas do ensino politécnico. Uma das directrizes políticas da revolução de 1974, a democratização do ensino superior, está cumprida. Frequentar a universidade deixou de ser um privilégio para ser um direito.
Contudo, emergem novos problemas.
A multiplicação de áreas científicas já não permite encontrar um fundo comum a todas elas. Por esta razão, a legislação portuguesa desistiu de definir universidade e consagra um critério aritmético: podem ser reconhecidas como universidades as instituições que ministrem seis cursos de licenciatura, seis ciclos de mestrado e três de doutoramento em áreas científicas distintas e que produzam actividades de investigação, de ensino e de divulgação cultural. No entanto, não existe hoje em dia uma classificação universalmente aceite das ciências e áreas científicas.
7. Olhando em retrospectiva para a história pluricentenária da universidade, verificamos que as instituições estão hoje mergulhadas numa rede de complexidade burocrática sempre crescente, com processos de acreditação, de avaliação nacional e internacional, de avaliação dos docentes, de internacionalização, de medição das consequências das publicações e da investigação, processos que implicam por sua vez o recrutamento de uma multiplicidade de especialistas que não são académicos e que levam as universidades a fechar-se sobre si próprias.
A autonomia das universidades é uma forma institucional de assegurar que os professores e investigadores gozam de liberdade para investigar, ensinar e difundir o conhecimento. Uma liberdade que é conhecida internacionalmente como liberdade de cátedra. Mas esta liberdade não pode entender-se como absoluta e sem limites. Hoje, para além dos clássicos problemas da verdade, do belo e do justo, o conhecimento científico vive confrontado com as novas ameaças sociais e ideológicas, como o politicamente correcto, a massificação, a inteligência artificial e o transhumanismo.
A universidade portuguesa também perdeu o monopólio da formação profissional. A licenciatura deixou de ser a licença para exercer uma profissão. Hoje, uma multiplicidade de organismos, designadamente ordens profissionais, pretendem controlar e validar os conhecimentos adquiridos pelos estudantes universitários.
Continuam válidas nos nossos dias as ideias do Cardeal S. John Henry Newman formuladas em meados do século XIX. A universidade ideal é uma comunidade de
pensadores, envolvendo-se em atividades intelectuais não para qualquer propósito externo, mas como um fim em si mesmo. Prevendo uma educação ampla e liberal, que ensina os alunos a pensar e a raciocinar e a comparar e a discriminar e a analisar, Newman considerou que as mentes estreitas nascem de especialização estreita e ensinou que os estudantes devem receber uma base sólida em todas as áreas de estudo. A missão da Universidade, completou Ortega y Gasset, numa fórmula feliz e que continua válida para os nossos dias, é a de estar à frente do seu tempo. E isto só pode ser compreendido nesta ligação entre ciência e cultura, procura da verdade e sentido do bem.
Bibliografia principal:
– Guilherme Braga da Cruz, O Essencial sobre a História das Universidades, Lisboa, Imprensa Nacional, 2008
– John Henry Newman, The idea of a university, 1873 (https://www.gutenberg.org/files/24526/24526-pdf.pdf)
– J. Ortega y Gasset, Mission de la Universidad, Madrid, 1930
– António M. Feijó e Miguel Tamen, A Universidade como deve ser, Lisboa, FFMS, 2017 – Alasdair MacIntyre, God, Philosophy, Universities. A Selective History of the Catholic Philosophical Tradition, Rowman, Maryland, 2011
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- Dicionário: Portugalidade
por D. Manuel Clemente, 2024
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1. Que podemos referir com esta palavra? Talvez a qualidade comum de quem seja português. E que qualidade será esta, para ser comum e individual ao mesmo tempo?
Estaremos no campo da cultura, como entendimento básico das coisas, quase prévio e certamente generalizado a um grupo, a uma sociedade inteira, esta mesma a que chamamos Portugal. E como começou a definir-se assim e a ser assumida por todos? Modernamente, quando “povo” e “popular” ganharam sentido mais poético do que político, datávamo-nos antes do tempo propriamente português, herdeiros de antigos povos do Ocidente ibérico e até predestinados pela própria geografia. Hoje não diremos o mesmo, infundadas que estão a filiação direta e exclusiva nos lusitanos e a particularidade territorial do solo que ocupamos. Na verdade, os lusitanos eram um dos vários povos que por aqui estanciavam, mais no interior do que no litoral e também em território hoje espanhol. No tempo romano, a província da Lusitânia tinha a capital em Emerita (Mérida) e situava-se entre o Guadiana e o Douro, no curso português destes rios. Para cima era a Galécia, com capital em Bracara (Braga), e para baixo era a Bética, com capital em Hispalis (Sevilha). Muitos séculos depois, quando D. Afonso Henriques fundar Portugal, descerá da antiga Galécia até Lisboa, em vinte anos decisivos. O Algarve só entrará no todo português um século depois, com o seu bisneto Afonso III. E, muitos séculos após, ainda se dizia Algarve como algo distinto de Portugal… Este último ponto é de reter, por significar que a própria autodenominação dos habitantes podia não ser tão uníssona e imediata como é agora – num agora que nalguns casos tardou a ultrapassar a referência local ou regional. Contudo, devemos adiantar que Portugal, como designação comum e fronteira definida, é algo mais antigo aqui do que na maioria dos países europeus. Por exemplo, Espanha, indicando toda a península à exceção de Portugal, é dos finais do século XV, com a união de Castela e Aragão e a anexação de Granada.
2. Nascemos vários, mas relativamente aproximados uns dos outros ao longo do século XII. Tomando como referência a conquista de Lisboa pelo nosso primeiro rei, em 1147, o que eramos então? A população juntava gente do Norte, galaico-duriense ou coimbrã, depois moura ou moçárabe (cristãos que viviam sob domínio árabe e eram muitos do Mondego ao Tejo), e outros que vinham agora, mesmo de além Pirinéus, como era o caso dos cruzados que por cá ficavam. Se perguntados, dificilmente se diriam “portugueses”, mas eram já os primeiros dos que assim nos chamámos depois. Em 1139 D. Afonso Henriques travou em Ourique um recontro importante com os mouros. Foi por essa altura que começou a chamar-se rei. Com o tempo, Ourique ganhou outro alcance, sobretudo na tradição que se desenvolveu em Santa Cruz de Coimbra, onde foi sepultado. Do século XIV em diante vai-se escrevendo e dizendo que não fora apenas uma batalha entre outras, mas o momento em que o próprio Cristo sagrara a fundação dum reino que não soçobraria nunca. Nesta tradição o Padre António Vieira, já no século XVII, viu algo ainda maior: o gérmen dum reino universal, que de Portugal se estenderia a toda a parte, qual Quinto Império da antiga profecia bíblica. Era assim que a Cruzada em que Portugal nascera se alargaria a todo o mundo…
3. A tradição de Ourique subjazeu a muitos factos e sentimentos, até que o iluminismo do Padre Vernei (séc. XVIII) ou a crítica histórica de Herculano (séc. XIX) a pusessem em causa. Juntaram-na até a atavismos que nos atrasavam a modernidade e traziam decadência. Portugal precisaria, isso sim, de se regenerar em termos mais prosaicos, trocando fantasmas por medidas concretas de progresso científico e aplicação rentável. Do século XIX para o XX andamos por aí, mas nem por isso desapareceu de todo o sentimento de que fôramos feitos para mais alto e mais longe. Da letra d’ A Portuguesa, que continuamos a cantar, à Mensagem de Fernando Pessoa, que continuamos a recitar, o sentimento permanece, ainda que em versão laica – mas não menos onírica. Digamos que se trata duma portugalidade de topo, própria de minorias intelectuais, com tempo e possibilidade de devaneios. Em parte sim, mas no todo não. Na verdade, não é difícil verificar em várias manifestações religiosas ou folclóricas da nossa população continental ou insular, no torrão natal ou emigrada, laivos desse mesmo sentimento. Não no seu dia-a-dia, obrigatoriamente ocupado por necessidades urgentes, mas aflorando em momentos comuns de identidade e exaltação, quando surgem. Portugalidade então, em vários patamares socioculturais, agravados pelo analfabetismo que perdurou até perto de nós. Mas, ainda assim, existente, por melhores ou piores razões, com o afluxo de muita gente de fora, que foi chegando por comércio ou cativeiro nos séculos XV e XVI, prosseguindo nas vagas imigratórias mais recentes, em quantidade e qualidade nunca vistas. Possivelmente será este último fator o maior desafio a uma portugalidade que se sustentava mais de cá para fora, do que de fora para dentro. Cabe ainda lembrar que houve momentos em que o sentimento popular e a atitude das elites realmente se aproximaram. Assim aconteceu na crise de 1383 – 1385, quando se opuseram a vinculação particular das vassalagens, que levaria a aceitar a soberania castelhana, e a novidade da vinculação geral à “terra”, Portugal no caso, como acabou por prevalecer. O que se passou com a conjugação de levantamentos populares e o partido do Mestre de Avis foi talvez o primeiro sinal de “portugalidade” em termos sociopolíticos.
4. Algo semelhante aconteceu, dois séculos depois e com desfecho contrário, com a participação popular na resistência do Prior do Crato à ocupação do trono português por Filipe de Espanha. É certo que a causa pátria foi derrotada em 1580, mas foi notável o facto de D. António ter andado escondido em vários lugares e com a cabeça a prémio, sem que ninguém o denunciasse. Nestes dois casos, o sentimento “português” despontou com amplitude nacional, podemos dizer. Como aconteceu também com a resistência às Invasões Francesas, entre 1808 e 1811, coincidindo elites, ou boa parte delas, com a população em geral. Sem extrapolar, podemos dizer que a portugalidade se consolidou em muitas séculos de história comum, continental e ultramarina, e que se manifestou sobretudo em momentos de crise e sobrevivência do todo. Encontrou então motivos e símbolos que todos os estratos entenderam e assumiram. Nas condições atuais, com tanta população imigrada dos quatro cantos do mundo, será precisamente na experiência de sermos vários mas conjugáveis que cresceremos em portugalidade nova num universo de todos. O nosso passado, de integrações sucessivas, será o esteio para as que importam agora.
Sugestão Bibliográfica:
A reflexão sobre Portugal aparece em muita literatura de vária índole, como tema inevitável e recorrente. Visões globais podem obter-se, por exemplo, em:
SARAIVA, António José – A cultura em Portugal. Teoria e história, Amadora, Bertrand, 1982;
CALAFATE, Pedro -Portugal, um perfil histórico, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016.
José Mattoso dedicou muita da sua obra às origens políticas e culturais do país e deixou-nos um resumo do seu pensamento a propósito em:
MATTOSO, José – O essencial sobre a formação da nacionalidade, Lisboa, Imprensa Nacional –Casa da Moeda, 1985.
Poderá ser de alguma utilidade para um rápido relance:
CLEMENTE, Manuel – O que é Portugal? O que somos e porque o somos, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015.
- Dicionário: Dever e Direito de Trabalhar
por Mário Pinto, 2025
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«Para ser compreendida e amada, a doutrina social católica só precisa de uma exposição objetiva e clara» (G. C. Rutten, O. P.)
1. Partindo do ponto de fé na revelação divina, que constitui o fundamento da integral conceção cristã acerca do universo, da vida e da pessoa humana (que, como hipótese filosófica ou científica, é pelo menos tão racional como a hipótese do Big Bang), Deus criou o universo, a vida e a pessoa humana (como homem e como mulher), e estabeleceu uma ordem para a sua criação. Essa revelação está documentada na Bíblia (Génesis, 1,27-28), nestes termos: «Deus criou a pessoa humana à sua imagem e semelhança. Como homem e mulher ele a criou. Deus abençoou-os e disse: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e dominai-a.» E depois, após a queda do pecado original, Deus acrescentou assim à pessoa humana já decaída: «Comerás o teu pão com o suor do teu rosto» (Génesis, 3,19). Daqui se traduzem os dois originais e irrenunciáveis deveres-direitos humanos-pessoais: o de tomar posse e governo do mundo (que implica dispor das coisas, isto é, o direito de propriedade), e o de trabalhar penosamente. Nisto estão implícitos, e daqui decorrem, os dois originais e fundamentais institutos jurídicos humanos da propriedade (isto é, da disposição dos bens) e do trabalho.
2. O estudo da história bimilenar do pensamento social dos cristãos, sobre as duas questões da propriedade e do trabalho (que depois da queda se tornaram conflituais), mostra que, na base da sua conceção normativa, sempre se defendeu, como princípio, uma justa repartição, por todos, da oportunidade social do acesso ao direito de governo (propriedade) dos bens criados, em natural conjugação com a oportunidade social de assim cumprir o seu dever de trabalhar sobre esses bens, e consequentemente o direito aos frutos do trabalho para obter a própria sustentação.
De acordo com Santo Agostinho e depois com S. Tomás de Aquino, considerados os doutores da Igreja que, desde o princípio do cristianismo e ao longo dos séculos, mais reputados foram na teorização da teologia social-cristã, o gozo comum dos bens teria sido possível e normal durante a idade da inocência humana; mas já não assim posteriormente, decaída a natureza humana, sem perigo de discórdia. E por isso se justifica a propriedade privada, embora sem que se possa proibir a propriedade coletiva, mantendo-se, com toda a firmeza, que a legitimação da disposição privada dos bens não prejudica a destinação comum do seu uso ou usufruto. A justificação da racionalidade prática da propriedade privada ficou claramente formulada por S. Tomás, assente em três argumentos, que já tinham sido invocados por Aristóteles. Primeiro: é maior a solicitude daquele que se esforça por obter alguma coisa para si próprio, do que no caso de o seu trabalho se referir a uma comunhão de vários ou muitos. Segundo: a administração das coisas é mais facilmente ordenada quando cada um cuida das suas coisas, do que quando todos se ocupam de administrar as coisas comuns de todos. Terceiro: a propriedade comum e indivisa dos bens é fonte de maiores conflitos na sua administração, enquanto a administração da propriedade privada é menos conflitual. Dos poderes de aquisição e de administração, que podem ser privados, S. Tomás distinguiu o uso ou disfrute dos bens, afirmando assim: quanto ao uso dos bens, não pode o homem ter as coisas como privadas; devem ser tidas como comuns, de modo que o seu uso ou disfrute se possa comunicar a todos segundo as suas necessidades.
3. Em consequência desta doutrina da propriedade, conforma-se uma doutrina do trabalho. Dado que, em maior ou menor medida, todo o trabalho necessita do uso de bens, e os bens são apropriados individualmente para efeitos da sua administração, há que distinguir entre o trabalho autónomo daqueles que são proprietários dos bens necessários para o seu trabalho, e o trabalho daqueles que, se não forem proprietários, só poderão efetivamente trabalhar usando os bens dos proprietários mediante um acordo com eles. Resulta assim, para estes, que a efetividade do seu direito de trabalhar fica dependente da disponibilidade contratual daqueles. Além disso, os contratos de trabalho, pressuposto que os proprietários mantêm logicamente os seus poderes de administração dos bens utilizados, têm de incluir racionalmente um poder de direção da parte empregadora e um dever jurídico de subordinação da parte trabalhadora. Eis aqui a origem natural e a racionalidade das chamadas «relações de trabalho subordinado».
Deste regime global, que integra a propriedade e o trabalho, nasce uma dupla questão de justiça social, que a doutrina social-cristã sempre reconheceu e para que sempre propôs respostas: a questão da distribuição da propriedade privada e do seu uso, e a questão da justiça dos contratos de trabalho subordinado, principalmente no que respeita ao exercício do direito de direção do empregador e à repartição dos frutos da empresa na parte do trabalhador, isto é, do direito ao salário justo. Foi continuamente muito rica, muito desenvolvida e muito empenhada, ao longo dos séculos, a teologia moral católica sobre estas vastas problemáticas, quer da propriedade e uso das coisas, elaborando uma teorização ética da economia, quer do dever-direito de trabalhar, elaborando uma teorização do direito social do trabalho. Sempre em fidelidade ao cumprimento das finalidades ínsitas na doutrina original do Génesis, com adequação às condições técnicas e sociais do trabalho que foram evoluindo ao longo dos tempos, desde os primeiros séculos até à Revolução Industrial e aos posteriores progressos tecnológicos.
4. Seria interessante, mas é impossível, dar aqui um resumo dessa história. Mas ao menos é possível sugerir duas exposições exemplares da doutrina social católica, uma referente à vida económica e laboral na Idade Média até à Revolução Liberal dos fins do século XVIII; e outra que espelha o que foi a exposição da Doutrina Social da Igreja em resposta às novas e impetuosas ideias e movimentos sociais que, desde o advento da Revolução Liberal, têm marcado a modernidade, sobre a vida política, a vida económica e a vida laboral. Para a primeira exposição exemplar, da doutrina social cristã nos tempos antigos, sugerimos a leitura de um livro precioso, da autoria de um português, o Padre Manuel Rocha, apresentada como tese de doutoramento na Universidade Católica de Lovaina, depois publicado em francês em 1933, e em tradução portuguesa, revista pelo Autor, 60 anos depois, em 1992, pela Editora Rei dos Livros. E para a exposição exemplar da moderna Doutrina Social da Igreja, sugerimos ou bem uma leitura do conjunto das Encíclicas Sociais dos Papas desde Leão XIII, nos fins do século XIX, até ao presente, ou bem o resumo oficial dessa doutrina no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, aprovado pelo Papa João Paulo II, de 2004.
5. Desde os primeiros tempos e ao longo dos séculos, os teólogos católicos trataram sempre com muito empenho e profundidade, as questões que se levantavam das práticas da economia e das relações de trabalho. Sobre as questões da propriedade, a conceção cristã sempre pressupôs absolutamente que o seu exercício privado não exclui o seu usufruto comum; e por isso foi, desde os seus princípios, oposta à conceção então romanista da propriedade como direito absoluto (isto é, sem limites) de dominar, usufruir dispor dos bens: «jus utendi, fruendi et abutendi». Princípio este de que os teólogos sempre tiraram o direito à propriedade, numa ideia que na doutrina social católica da modernidade alguns chegaram a chamar como «capitalismo popular»; e, além disso, desenvolvendo uma teoria sobre a moralidade nas relações de comércio, do empréstimo a juros, do lucro do empresário empregador e do salário do trabalhador empregado. Sobre as questões do trabalho assalariado, a teologia católica sempre defendeu o princípio da moralidade nas condições de trabalho e o princípio do salário mínimo, cujo montante deveria corresponder ao necessário para a sustentação da família: e daí o princípio clássico do salário familiar. Foi ainda muito tratado o que atualmente se designa como direito dos trabalhadores na participação na gestão da empresa e na participação dos lucros.
Na Modernidade, perante o combate entre as novas, fortes e entre si inimigas concepções, a do capitalismo liberal-individualista e a do socialismo estatal-colectivista, a doutrina social católica foi enérgica e combativa na crítica a essas duas extremadas ideologias. Quem ler as Encíclicas sociais dos Papas modernos, desde Leão XIII até ao presente, verifica que a exposição da doutrina social da Igreja foi exposta, obviamente com base na expressa enunciação e fundamentação das suas próprias teses, sempre dialeticamente: em aguda crítica do liberalismo individualista político dominante no Ocidente, e igualmente em aguda crítica ao coletivismo marxista do Leste. E deve-se reconhecer que foi a dialetica crítica desenvolvida pela doutrina social católica que tornou hoje consensual, no Ocidente e em quase todo o mundo, o modelo das democracias caracterizadas como liberalmente pluralistas (contra o modelo original de Leste) e socialmente solidárias (contra o modelo original ocidental), em que se inclui a democracia portuguesa, e a União Europeia aprovou na designação de «modelo social europeu». Que, diga-se em nota final, dá mostras de algum descarrilamento, precisamente na medida em que perde o sentido medular do personalismo humanista e cristão que esteve na sua longa gestação histórica desde há dois milénios.
Da história política e social da modernidade, faz parte o movimento social e político dos católicos, que foi pioneiro por exemplo na defesa dos sindicatos e da greve como último recurso. A Confederação Mundial do Trabalho, fundada em 1920 sob o nome de Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos (CISC), é a mais antiga internacional sindical existente. E em muitos países europeus e americanos, a história da democracia deve muito aos chamados Partidos da Democracia Cristã.dade, a sua bondade e a sua beleza.
Bibliografia:
Compêndio da Doutrina Social da Igreja, maxime cap. VI;
Manuel Rocha, Trabalho e salário, Rei dos Livros, 1992;
João Paulo II, Encíclica Social Laborem exercens;
Mário Pinto, A doutrina Social da Igreja, ontem, hoje e amanhã, separata da revista “Direito e Justiça”, da Faculdade de Direito da Universidade Católica, Vol XII, 1998, Tomo I;
Bartolomeo Sorge, Introduzione alla dottrina sociale della Chiesa, Brescia, Queriniana, 2006.
- Dicionário: União de Facto
por Mafalda Miranda Barbosa, 2025
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1. A união de facto traduz-se na situação de duas pessoas que vivem em condições análogas às dos cônjuges. A partir deste simples enunciado, podemos destacar algumas das marcas características da união de facto: a) a factualidade inerente à relação, que surge despida de qualquer juridicidade intrínseca; b) a coabitação com cunho sexual entre duas pessoas; c) uma certa estabilidade, que as distingue das relações ocasionais ou esporádicas, embora sem se confundir com a estabilidade própria da vocação de perpetuidade inerente ao vínculo matrimonial, de tal sorte que os sujeitos estão constantemente abertos à possibilidade de interrupção da relação; d) uma certa tendência para a exclusividade que não resulta de qualquer dever legal de fidelidade, mas da ordenação básica das relações humanas amorosas [Cf., em sentido próximo, Héctor Franceschi, “Uniões de facto”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 970]. Havendo diversas razões – de ordem ideológica, económica, jurídica ou afetiva – para a constituição de uma união de facto, são notórias as diferenças relativamente à relação matrimonial. Desde logo, enquanto do casamento emana uma vinculatividade própria, que se explica em função da conjugalidade, esteja ela coberta com o vínculo da sacramentalidade ou seja ela compreendida em termos puramente civis, mas ainda assim dotada de uma vocação de perpetuidade, a união de facto caracteriza-se pela pura afetividade e, como tal, pela volatilidade e instabilidade própria do mundo dos afetos. Significa isto que, porque a distância que separa a união de facto do casamento não é puramente formal – assente na existência ou não de um formalismo que dê publicidade à relação –, mas substancial, apesar da definição legal de união de facto, não se cumpre em relação a ela o momento da analogia judicativa que justificaria oferecer a esta realidade o mesmo tratamento jurídico que é dispensado ao casamento. Se o direito disciplina o casamento e confere proteção à relação conjugal é porque existe a necessidade de garantir, por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, o bom funcionamento da célula social básica, uma vez que tal garantirá a estabilidade da própria sociedade, que se estrutura em torno da categoria axiológica da pessoa. Não sendo essa garantia oferecida pela simples união de facto, então, pode-se concluir que as diferenças abissais que distinguem as duas realidades impedem o estabelecimento do juízo analógico e qualquer forma de equiparação do ponto de vista jurídico. Aliás, parece não fazer sentido cobrir com o manto da juridicidade uma realidade que os protagonistas pretendem excluir de qualquer sentido de dever jurídico. Por outro lado, se com a união de facto se pretende garantir a atribuição de direitos a uma relação afetiva quando não seja possível aceder ao casamento, então, estar-se-ia a atribuir eficácia jurídica a uma relação à qual, em rigor, não se poderiam atribuir quaisquer direitos enquanto tal.
2. Não obstante, o legislador português, à semelhança do que se verifica além-fronteiras, aproximou a união de facto do casamento, equiparando-os para muitos efeitos, desde que aquela tenha uma duração superior a dois anos. Esta tendência dos modernos direitos da família surge paredes-meias com um gradual esvaziamento do instituto matrimonial, descaracterizado nos seus elementos essenciais: afastamento da regra da indissolubilidade pela introdução e facilitação do divórcio; admissibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo; fragilização dos deveres conjugais; cisão entre a sexualidade e a fecundidade no seio da própria família. Com isto, os ordenamentos jurídicos vão-se apartando da essência natural do casamento, que, mais do que um espaço de afirmação de individualidades, haverá de ser local de reunião de responsabilidades, por meio das quais a pessoa realiza integralmente a sua personalidade. O diagnóstico arrasta consigo males sociais evidentes, já que, ao fragilizar-se a família, destroem-se as estruturas intermédias de apoio à pessoa, tornando as crianças e os mais velhos, cada um à sua medida, particularmente vulneráveis.
3. Os autores têm vindo a defender que a união de facto não faz surgir um vínculo jurídico-familiar, na medida em que não constitui impedimento ao casamento. Ao invés, pode dissolver-se pelo casamento de um dos companheiros, sendo a rutura unilateral livre [cf. Rita Lobo Xavier, “Família, Direito e Lei”, Léxico da Família, Princípia, 2019, 371 s.]
Bibliografia:
Franceschi, Héctor, “Uniões de facto”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 959 s.
Xavier, Rita Lobo, “A união de facto e a lei civil no ensino de Francisco Manuel Pereira Coelho e na legislação”, Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, 653 s.
Xavier, Rita Lobo, “Família, Direito e Lei”, Léxico da Família, Princípia, 2019, 363 s.
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