por D. Manuel Clemente, 2024
1. Que podemos referir com esta palavra? Talvez a qualidade comum de quem seja português. E que qualidade será esta, para ser comum e individual ao mesmo tempo?
Estaremos no campo da cultura, como entendimento básico das coisas, quase prévio e certamente generalizado a um grupo, a uma sociedade inteira, esta mesma a que chamamos Portugal. E como começou a definir-se assim e a ser assumida por todos? Modernamente, quando “povo” e “popular” ganharam sentido mais poético do que político, datávamo-nos antes do tempo propriamente português, herdeiros de antigos povos do Ocidente ibérico e até predestinados pela própria geografia. Hoje não diremos o mesmo, infundadas que estão a filiação direta e exclusiva nos lusitanos e a particularidade territorial do solo que ocupamos. Na verdade, os lusitanos eram um dos vários povos que por aqui estanciavam, mais no interior do que no litoral e também em território hoje espanhol. No tempo romano, a província da Lusitânia tinha a capital em Emerita (Mérida) e situava-se entre o Guadiana e o Douro, no curso português destes rios. Para cima era a Galécia, com capital em Bracara (Braga), e para baixo era a Bética, com capital em Hispalis (Sevilha). Muitos séculos depois, quando D. Afonso Henriques fundar Portugal, descerá da antiga Galécia até Lisboa, em vinte anos decisivos. O Algarve só entrará no todo português um século depois, com o seu bisneto Afonso III. E, muitos séculos após, ainda se dizia Algarve como algo distinto de Portugal… Este último ponto é de reter, por significar que a própria autodenominação dos habitantes podia não ser tão uníssona e imediata como é agora – num agora que nalguns casos tardou a ultrapassar a referência local ou regional. Contudo, devemos adiantar que Portugal, como designação comum e fronteira definida, é algo mais antigo aqui do que na maioria dos países europeus. Por exemplo, Espanha, indicando toda a península à exceção de Portugal, é dos finais do século XV, com a união de Castela e Aragão e a anexação de Granada.
2. Nascemos vários, mas relativamente aproximados uns dos outros ao longo do século XII. Tomando como referência a conquista de Lisboa pelo nosso primeiro rei, em 1147, o que eramos então? A população juntava gente do Norte, galaico-duriense ou coimbrã, depois moura ou moçárabe (cristãos que viviam sob domínio árabe e eram muitos do Mondego ao Tejo), e outros que vinham agora, mesmo de além Pirinéus, como era o caso dos cruzados que por cá ficavam. Se perguntados, dificilmente se diriam “portugueses”, mas eram já os primeiros dos que assim nos chamámos depois. Em 1139 D. Afonso Henriques travou em Ourique um recontro importante com os mouros. Foi por essa altura que começou a chamar-se rei. Com o tempo, Ourique ganhou outro alcance, sobretudo na tradição que se desenvolveu em Santa Cruz de Coimbra, onde foi sepultado. Do século XIV em diante vai-se escrevendo e dizendo que não fora apenas uma batalha entre outras, mas o momento em que o próprio Cristo sagrara a fundação dum reino que não soçobraria nunca. Nesta tradição o Padre António Vieira, já no século XVII, viu algo ainda maior: o gérmen dum reino universal, que de Portugal se estenderia a toda a parte, qual Quinto Império da antiga profecia bíblica. Era assim que a Cruzada em que Portugal nascera se alargaria a todo o mundo…
3. A tradição de Ourique subjazeu a muitos factos e sentimentos, até que o iluminismo do Padre Vernei (séc. XVIII) ou a crítica histórica de Herculano (séc. XIX) a pusessem em causa. Juntaram-na até a atavismos que nos atrasavam a modernidade e traziam decadência. Portugal precisaria, isso sim, de se regenerar em termos mais prosaicos, trocando fantasmas por medidas concretas de progresso científico e aplicação rentável. Do século XIX para o XX andamos por aí, mas nem por isso desapareceu de todo o sentimento de que fôramos feitos para mais alto e mais longe. Da letra d’ A Portuguesa, que continuamos a cantar, à Mensagem de Fernando Pessoa, que continuamos a recitar, o sentimento permanece, ainda que em versão laica – mas não menos onírica. Digamos que se trata duma portugalidade de topo, própria de minorias intelectuais, com tempo e possibilidade de devaneios. Em parte sim, mas no todo não. Na verdade, não é difícil verificar em várias manifestações religiosas ou folclóricas da nossa população continental ou insular, no torrão natal ou emigrada, laivos desse mesmo sentimento. Não no seu dia-a-dia, obrigatoriamente ocupado por necessidades urgentes, mas aflorando em momentos comuns de identidade e exaltação, quando surgem. Portugalidade então, em vários patamares socioculturais, agravados pelo analfabetismo que perdurou até perto de nós. Mas, ainda assim, existente, por melhores ou piores razões, com o afluxo de muita gente de fora, que foi chegando por comércio ou cativeiro nos séculos XV e XVI, prosseguindo nas vagas imigratórias mais recentes, em quantidade e qualidade nunca vistas. Possivelmente será este último fator o maior desafio a uma portugalidade que se sustentava mais de cá para fora, do que de fora para dentro. Cabe ainda lembrar que houve momentos em que o sentimento popular e a atitude das elites realmente se aproximaram. Assim aconteceu na crise de 1383 – 1385, quando se opuseram a vinculação particular das vassalagens, que levaria a aceitar a soberania castelhana, e a novidade da vinculação geral à “terra”, Portugal no caso, como acabou por prevalecer. O que se passou com a conjugação de levantamentos populares e o partido do Mestre de Avis foi talvez o primeiro sinal de “portugalidade” em termos sociopolíticos.
4. Algo semelhante aconteceu, dois séculos depois e com desfecho contrário, com a participação popular na resistência do Prior do Crato à ocupação do trono português por Filipe de Espanha. É certo que a causa pátria foi derrotada em 1580, mas foi notável o facto de D. António ter andado escondido em vários lugares e com a cabeça a prémio, sem que ninguém o denunciasse. Nestes dois casos, o sentimento “português” despontou com amplitude nacional, podemos dizer. Como aconteceu também com a resistência às Invasões Francesas, entre 1808 e 1811, coincidindo elites, ou boa parte delas, com a população em geral. Sem extrapolar, podemos dizer que a portugalidade se consolidou em muitas séculos de história comum, continental e ultramarina, e que se manifestou sobretudo em momentos de crise e sobrevivência do todo. Encontrou então motivos e símbolos que todos os estratos entenderam e assumiram. Nas condições atuais, com tanta população imigrada dos quatro cantos do mundo, será precisamente na experiência de sermos vários mas conjugáveis que cresceremos em portugalidade nova num universo de todos. O nosso passado, de integrações sucessivas, será o esteio para as que importam agora.
Sugestão Bibliográfica:
A reflexão sobre Portugal aparece em muita literatura de vária índole, como tema inevitável e recorrente. Visões globais podem obter-se, por exemplo, em:
- SARAIVA, António José – A cultura em Portugal. Teoria e história, Amadora, Bertrand, 1982;
- CALAFATE, Pedro -Portugal, um perfil histórico, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016.
José Mattoso dedicou muita da sua obra às origens políticas e culturais do país e deixou-nos um resumo do seu pensamento a propósito em:
- MATTOSO, José – O essencial sobre a formação da nacionalidade, Lisboa, Imprensa Nacional –Casa da Moeda, 1985.
Poderá ser de alguma utilidade para um rápido relance:
- CLEMENTE, Manuel – O que é Portugal? O que somos e porque o somos, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015.