por António Bagão Félix, 2024
1. O conceito de empresa não é um conceito estático. Varia de cultura para cultura, como se pode constatar com a forma como é assumido, por exemplo, nos Estados Unidos, na Europa ou no Japão. E varia, sobretudo, no tempo. No pós-Revolução Industrial e até aos anos 60 do século passado, a empresa era vista, fundamentalmente, como uma realidade de natureza material, física, corpórea, e um referencial de técnicas e tecnologias produtivas e operativas.
A grande alteração, nas últimas décadas, teve que ver com a crescente tendência para exprimir a ideia de empresa, também e sobretudo, como uma comunidade de pessoas. A globalização, que induz uma tendência para quase tudo se igualizar (técnicas, tecnologias, matérias, métodos, comunicações, etc.), veio evidenciar que é nas pessoas que reside o principal factor diferenciador conducente ao desenvolvimento ou ao fracasso da iniciativa empresarial.
2. Afirmando a centralidade das pessoas (de todas, desde o topo até à base), a empresa corporiza-se, consequentemente, como entidade moral. Desde logo, sendo o maior denominador comum dos diferentes e legítimos interesses das partes interessadas (stakeholders). Mas, podendo ser, também, uma referência de valor na e para a sociedade, um centro de responsabilidade social e uma escola de vida e de conhecimento. Por outro lado, é cada vez mais desajustado ou incompleto afirmar-se que o mercado é a produção, a troca e o consumo de bens e serviços pelas pessoas. É mais adequado e correcto dizer-se que o mercado é o conjunto de relações entre pessoas produzindo, consumindo e trocando serviços e bens. É isso que lhe dá, aliás, uma não negligenciável dimensão ética.
3. Nos desafios que se colocam à empresa, importa assegurar o justo equilíbrio entre competitividade económica, personalismo laboral e justiça distributiva. A evolução das empresas passou daquilo a que comummente se chama a gestão dos 4 P’s (em inglês: product, place, price, promotion) para a gestão dos 6 P’s (os quatro referidos de produto, distribuição, preço e promoção a que se juntam agora os procedimentos e as pessoas). Uma visão mais humanista da empresa potencia a ideia de cooperação solidária no seu seio. De facto, é necessário interiorizar que entre o empregador e o trabalhador há a empresa, que entre a empresa e o emprego há o trabalho, que entre o empregador e a empresa há a responsabilidade social.
4. A responsabilidade social de qualquer comunidade, designadamente de natureza produtiva ou económica, passa pela múltipla obrigação de apetrechar o profissional, de valorizar civicamente o cidadão, de formar mais integralmente a pessoa e de ajudar a emergirem novos talentos e novos líderes. E passa também pela necessidade de melhor coabitação entre família, trabalho, educação dos filhos e lazer num mundo que se quer constituído com qualidade e com gerações actuais e vindouras equilibradas e com sentido de futuro.
5. As empresas não devem ser um fim em si mesmas, mas um meio de desenvolvimento de realização das pessoas. Numa visão personalista, a empresa é não apenas uma sociedade de capitais, mas também uma sociedade de pessoas. Não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. Obviamente que as empresas têm de ser lucrativas. O lucro não é um pecado, mas uma exigência. O lucro, além de constituir a remuneração do risco dos capitais investidos, é um teste à capacidade da empresa, no seu todo, de eficiência interna e de eficácia externa perante os trabalhadores, os clientes, o Estado e a Sociedade. O lucro pode e deve ser, também, uma forma de partilhar responsabilidades futuras. Como disse o antigo chanceler alemão Helmut Schmidt “os lucros de hoje, são os investimentos de amanhã, que, por sua vez, criam e sustentam os empregos de depois de amanhã”. Eis uma brilhante síntese de relevar a função social do lucro, como factor acrescido de progresso, de geração de emprego, de partilha solidária do risco.
6. Nas empresas, a expressão “recursos humanos” (ou o seu acrónimo RH) está generalizada enquanto modo de se referir ao colectivo de pessoas numa organização, em conjunto com todos os outros factores de produção e de recursos materiais, tecnológicos, financeiros, etc. Historicamente, saltámos do velho conceito marxiano de “força de trabalho” para esta perspectiva também algo redutora. Bastaria, aliás, substituir a palavra mais suave de “recursos” pelo vocábulo sinónimo de “meios” para melhor se percepcionar, quanto às pessoas, quão discutível é a referida expressão. É óbvio que os recursos das pessoas são humanos, mas as pessoas não são (só)recursos (meios) humanos. O trabalho tem uma dupla dimensão: objectiva e subjectiva. Objectivamente, enquanto noção económica e técnica, consiste no conjunto de actividades, meios, instrumentos e técnicas para a produção de bens e serviços. Na sua abordagem subjectiva, trata-se essencialmente de o ver à luz da inerente dignidade do trabalho, porque realizado por uma pessoa. É como pessoa que se é sujeito do trabalho. O primeiro fundamento do valor do trabalho é a própria pessoa. É aqui que se exprime, em plenitude, a sua dimensão ética e deontológica. O trabalho não é um elemento impessoal da organização produtiva. Como está escrito na Encíclica de João Paulo II Centesimus Annus, “se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no conhecimento científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro”.
7. De uma maneira muito esquemática e exemplificativa, a densificação humanista e personalista da ligação entre empresa, trabalho, responsabilidade e ética passa por algumas destas vertentes:
EMPRESA, TRABALHO, RESPONSABILIDADE E ÉTICA: UMA EVOLUÇÃO MAIS HUMANISTA
DE: | PARA: |
Relações autónomas | Reforço da interdependência |
A hierarquia significa uma diferenciação existencial | A hierarquia significa uma diferenciação de papéis |
O papel dos outros é visto como uma ameaça potencial | As pessoas sentem-se mais preparadas para confiar nos outros |
A gestão vista sobretudo como coordenação de recursos materiais | A gestão como coordenação de relações, saberes, motivações, expectativas e ideais |
As normas como imperativo de organização | Os valores como fundamento da organização |
Competição, resultados, sucesso | Mas também cooperação, procedimentos, compromisso |
Vive-se para trabalhar | Trabalha-se para viver |
A ambição é o principal factor de energia | O sentido de serviço e o bem comum também fazem parte da missão |
Dificuldade na aceitação do erro | Importância da pedagogia do erro |
Ordem das pessoas subordinada à ordem das coisas | Ordem das coisas subordinada à ordem das pessoas |
Primado da eficiência e utilidade | Eficácia com sentido de equidade |
Bibliografia:
- Geert Hofstede, Culturas e organizações, ed. Sílabo, 1991
- Filipe Almeida, Ética, valores humanos e responsabilidade social das empresas, ed. Principia 2020
- Vários autores, Ética aplicada à Economia, ed. Edições 70, 2017
- Conselho Pontifício Justiça e Paz, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, ed. Principia, 2005
- Várias Encíclicas Papais, entre as quais Rerum Novarum, de Leão XIII (1891); Octagesima Adveniens, de Paulo VI (1971); Laborem Exercens, de João Paulo II (1981); Centesimus Annus, de João Paulo II (1991); Caritas in Veritate, de Bento XVI (2009); Exortação Apostólica Evangelii Gaudium de Francisco (2013)