por Francisco Carmo Garcia, 2024

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1. A ideia do «contrato social» é uma das principais ideias da história da filosofia política, com o seu lugar de destaque incontestável na teoria política moderna. Esta teoria surgiu como uma tentativa de resposta à questão política fundamental sobre a legitimidade do governo e a justificação da obediência através de uma abordagem particular. Através da ficção de um «contrato» que fundaria a ordem política, encontramos um mecanismo que permite fazer-nos questionar: será que os princípios que justificam a ordem política seriam princípios aos quais daríamos o nosso consentimento?

2. Ainda que tenha alcançado o destaque na era moderna, a ideia do contrato social remonta a debates antigos. A lógica do contratualismo pode ser encontrada na resposta de Gláucon a Sócrates, no livro II d’A República de Platão, quando aquele tenta desenvolver o argumento do sofista Trasímaco. Segundo a lógica do sofista, «quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescripções da lei» (359a). Nesta visão, a origem da justiça está num «acordo mútuo» entre os homens para evitar as consequências nefastas da prática da injustiça uns contra os outros – ou seja, num cálculo determinado pelo interesse próprio para minimizar o sofrimento de eventuais injustiças.

3. Este argumento haveria de ganhar uma nova vida no dealbar da modernidade. Coincidência ou não, foi Thomas Hobbes (o adversário sistemático da tradição platónica e aristotélica) o responsável pela reintrodução da ideia de contrato no debate intelectual. Para Hobbes, o homem era um sujeito de desejos que encontra a sua felicidade na concretização contínua desses desejos; dessa sua relação com os seus desejos e aversões decorrem as paixões humanas, cuja paixão mais poderosa é o medo da morte; a vida do homem é determinada pela presença desta paixão maior, que está mais patente precisamente numa condição onde não existam leis que ordenam aquela busca permanente pelos desejos que leva ao conflito inter-humano, e faz do maior desejo humano a preservação. A solução do contrato surge neste momento como solução para o conflito inter-humano: a única forma de os homens saírem da condição de conflitualidade decorrente da sua natureza é através de um pacto feito entre todos. Neste pacto cada homem abandona o seu direito natural a decidir sobre as condições da sua preservação, transferindo-o para uma «pessoa artificial» que se colocará sobre todos eles, a quem caberá assegurar a preservação de cada um e a ordem coletiva. Tal como na solução de Gláucon, também só após o pacto é que podemos então falar da existência de justiça e de lei – em suma, de ordem. E a legitimidade do soberano para se fazer obedecer está precisamente no consentimento das partes contratantes que acordaram ceder o seu direito natural e a transferi-lo para o soberano.

4. Nesta sua primeira formulação moderna a ideia de contrato social parece depender de um conjunto de pressupostos e criar um conjunto de corolários específicos. Desde logo, o pressuposto da realidade do indivíduo como «homem genérico»; ou seja, da abstracção do homem concreto numa figura genérica que partilha do mesmo aparato fisiológico, psicológico e moral, que antecede qualquer pertença comunitária. Este indivíduo, como figura genérica, será quem tomará parte no contrato originário. Depois, o contratualismo parece depender de um estádio pré-político onde se inserem estes indivíduos – a que se chamaria «estado de natureza» – antes do contrato social. Em terceiro, as teorias contratualistas fazem da comunidade política um artifício; ou seja, uma obra da vontade humana, uma «obra de arte» cujo artífice é o homem. Do mesmo modo que a comunidade política tem uma origem artificial, também a matéria da comunidade política apenas adquire uma existência política como resultado do mesmo artifício: o «povo» só existe como resultado do pacto que funda o Estado, sendo antes daquele nada mais do que um agregado desordenado de indivíduos. Um «povo» pode, como vemos em Rousseau, ser constituído como obra da vontade – postulado que teria consequências enormes na vida política moderna, com o movimento nacionalista. Estas teorias do contrato social seriam ainda determinantes para dar forma ao liberalismo que se tornou na principal ideologia política da modernidade: sendo o contrato que dá origem ao Estado uma transferência de direitos (das partes contratantes
para o soberano), então o contratualismo dá origem à ideia tipicamente liberal de que o Estado é edificado para proteger os direitos dos indivíduos; e, como podemos verificar plenamente em Locke, esta transferência de direitos delimita também o âmbito da acção do Estado, i.e. cria os limites à própria acção do Estado como protector dos direitos individuais, limites esses que não poderá passar sem violar o contrato que o fez nascer, conduzindo à possibilidade e à legitimação de uma «revolução» levada a cabo pelos governados.

5. Vimos que as teorias do contrato social fundamentam a existência do Estado no consentimento. De modo que a legitimidade do governante decorre de uma «autorização» conferida pelos governados. Assim, a lei (que é, nas teorias contratualistas, a manifestação da vontade soberana) justifica-se como emanada de um poder voluntariamente constituído. Daí o trabalho dos primeiros contratualistas modernos em harmonizar a vontade do soberano, manifestada nas suas leis, com a vontade individual (como Rousseau e a sua «vontade geral»), ou em vincular o poder soberano a clausulas limitadoras da sua acção, de forma a evitar abusos de poder, como foi o caso de Locke e, em grande medida, do constitucionalismo setecentista e oitocentista. Podemos, assim, identificar nas teorias do contrato social dois grandes princípios, ambos ligados cronologicamente à sua evolução: o fundamento da existência do Estado e da legitimidade do governante na vontade humana, no consentimento; e a crença de que a existência política pode ser criada ex nihilo, como resultado da deliberação humana. Foi contra esta crença, omnipresente no constitucionalismo setecentista, que um Joseph de Maistre afirmou que um dos grandes erros do seu século «foi acreditar que uma constituição política poderia ser escrita e criada a priori».

6. Alvo de crítica ao longo de grande parte do século XIX, o contratualismo acabaria por ficar fora de moda. No entanto, assentando que nem uma luva no individualismo contemporâneo e na sua atenção desmedida ao conceito de autonomia, a lógica contratualista regressou ao centro do debate na filosofia política pelas mãos de John Rawls e do seu Uma Teoria da Justiça, que justifica a sobreposição da justiça em relação ao bem no acordo dos indivíduos que
partilham a condição do «véu de invisibilidade». Robert Nozick trataria do regresso do conceito de estado de natureza no seu Anarquia, Estado e Utopia, e os economistas da «rational choice» fariam do cálculo do interesse próprio o determinante das escolhas colectivas. Assim, o liberalismo ideologicamente dominante no ocidente (nas suas várias versões, «clássico» ou «moderno», de esquerda ou de direita, «social» ou «económico», etc.) tomaria logicamente pelas suas mãos uma renovação do contratualismo. Em todas estas versões do contratualismo contemporâneo descobrimos o mesmo objetivo, partilhado com as teorias modernas do contrato social: justificar racionalmente uma ordem política e os seus princípios ordenadores, fora de qualquer fundamento externo ou transcendente à própria ordem (em suma, sem o recurso a uma ideia transcendente de «bem supremo» ou «fim último»).-nos de Moscovo!» (A Revolução da Ordem, p. 21).

Bibliografia:

  • HOBBES, Thomas. Leviathan, or Matter, Form, and Power a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. Edição de Richard Tuck. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
  • LOCKE, John. Dois Tratados do Governo Civil. Tradução de Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2006.
  • MORRIS, Christopher W. (Ed.). The Social Contract Theorists: Critical Essays on Hobbes, Locke and Rousseau. Lanham: Rowman & Littlefield, 1999.
  • NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Vítor Guerreiro. Lisboa: Edições 70, 2009.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat social. Paris: Garnier Frères, 1962.

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