por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
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1. O aborto traduz-se na morte, natural ou provocada, de um embrião ou feto. Tratando-se da morte provocada, estamos diante de um crime, previsto no artigo 140º Código Penal, para salvaguarda do bem jurídico vida intrauterina, o qual, em termos ontológicos e axiológicos, não se diferencia da vida de uma pessoa já nascida. Consagram-se, porém, hipóteses de não punibilidade do aborto, reconduzidas pelos autores, consonante a situação em apreço e a posição doutrinal que sustentem, a situações de exclusão da ilicitude (v.g., no caso de risco de vida ou de lesão da integridade da mãe) ou de exclusão ou atenuação da culpa (v.g. no caso de aborto eugénico e nos casos de violação). A estas hipóteses acresce, depois da alteração legislativa de 2007, a possibilidade de aborto a pedido da mãe, nas primeiras dez semanas de gestação. A solução dos prazos, como ficou conhecida, suscita dúvidas de constitucionalidade, atento o disposto no artigo 24º CRP e a indiferenciação entre as diversas fases da vida. Na verdade, não só é inegável a dignidade do bem jurídico tutelado, como se revela imprescindível a proteção penal, pela ineficácia, sobretudo nos casos de consenso entre os dois progenitores, da solução responsabilizatória civil. A despenalização do aborto que por esta via se alcançou, a corresponder a uma verdadeira legalização, veio dar resposta a reivindicações várias, assentes em perspetivas muito diversas.
2. Numa tentativa de sistematização das diversas perspetivas favoráveis à despenalização do aborto, podemos falar de uma visão coisificadora do embrião, de uma visão libertária e de uma visão que, assente em preconceitos marxistas, prefigura na mãe a tradicional luta de classes. Para a primeira perspetiva, o embrião não teria o estatuto de pessoa, não lhe sendo reconhecida qualquer dignidade, ou porque não passaria de um agregado de células ou porque não seria capaz de percecionar a sua própria condição. Neste primeiro grupo filiam-se não só aqueles que negam os dados da biologia, como outros que, reconhecendo-os, se deixam orientar por uma ideologia utilitarista. Exemplo disso é Peter Singer, um dos arautos da causa da libertação animal, que chega ao ponto de defender o aborto até ao nascimento (e mesmo o infanticídio), pela falta de senciência do ser humano até uma certa idade, ao mesmo tempo que se opõe frontalmente à utilização de animais na alimentação, pela consciência que têm do seu sofrimento. Para a segunda perspetiva, numa versão radical, a mulher grávida teria sobre o seu próprio corpo um property right, o que lhe garantiria o poder de expulsar o embrião, dando-lhe a morte. Haveria como que um direito de propriedade da mulher sobre o seu corpo e a remoção do embrião justificar-se-ia em termos de recusa de ajuda, porque a sua presença constitui um uso não autorizado do corpo materno. Repare-se, contudo, que a justificação do bad samaritan, na base do qual está o pensamento de Locke e a influência que este pensador exercer na construção do liberalismo jusnaturalista americano, não permitiria justificar o aborto em todas as circunstâncias, mas apenas naquelas de gravidez indesejada (violação, falha de contraceção) ou de perigo para a vida ou a saúde da mãe. Por isso, avança-se, nesse espetro, com outra fundamentação, menos radical, mas nem por isso menos liberal, assente na ideia de privacidade decisional (a privacy), num argumento invocado no histórico precedente Roe v. Wade, que haveria de ser revertido muito recentemente, com a decisão Dobbs, State Health Officer of the Mississippi Department of Health et al. v. Jackson Women’s Health Organization et al., que, revogando o suposto direito constitucional ao aborto, que havia sido reconhecido, deixa em aberto o debate em torno da sua proibição ou não. No fundo, estando em causa uma matéria do foro privado, a pessoa teria direito a ser deixada só, não devendo haver qualquer interferência do Estado. É também nesta perspetiva que, no quadro continental, se filiam as posições que, invocando uma liberdade negativa e desarreigada de qualquer pressuposição de sentido, sustentam o aborto com base num suposto direito à autodeterminação da mulher. Na terceira perspetiva encontramos os que, sustentando que a mulher mais desfavorecida, por falta de condições económicas, seria condenada à clandestinidade do aborto, preferem a sua liberalização, ignorando totalmente a posição do filho.
3. Qualquer uma das perspetivas referidas deve ser liminarmente rejeitada. Por um lado, não é possível negar a dignidade do embrião enquanto pessoa. Com efeito, o embrião configura uma vida humana e a qualquer vida humana, em qualquer das suas formas, há de ser atribuído o estatuto de pessoa, sob pena de se abrirem as portas a uma diferenciação axiológica entre seres humanos que choca com os quadros valorativos em que nos movemos. Por outro lado, os direitos que pretensamente se invocam não passam de não direitos ou de contra-direitos, na linguagem de Puppinck, na medida em que, superado o formalismo do pensamento positivista e de uma visão consensual procedimental da juridicidade, somos levados a considerar que o direito subjetivo só o é, verdadeiramente, enquanto expressão do direito, se assentar num fundamento axiológico, que descobrimos na ideia ética de pessoa, diferente do indivíduo, na relação ética fundamental que ela pressupõe e que não é mais do que a projeção da relação transcendente a que somos convocados, dado que, mesmo que não seja por todos reconhecido, nos condiciona em termos civilizacionais. A liberdade predicativa do direito subjetivo envolve sempre a responsabilidade pelo outro, donde jamais o aborto poderia configurar o exercício de uma posição subjetiva válida, devendo continuar a afirmar-se a sua ilicitude, quer do ponto de vista civilístico, com possibilidade de se desencadearem pretensões indemnizatórias, quer do ponto de vista penal. Posições como a sufragada pelo Parlamento Europeu, em abril de 2024, de reconhecimento um direito ao aborto e, mais do que isso, de um direito fundamental ao aborto devem ser, pois, consideradas como injustas, no sentido metodológico-filosófico do termo, sob pena de redundarmos numa ordem regulativa que não pode ser considerada uma ordem de direito e do direito.
Bibliografia:
- Paulo Otero, Direito da Vida/Referendo sobre o programa, conteúdos e métodos de ensino, Coimbra, 2004
- Dagmar Coester-Waltien, “Der Schwangerschaftsabbruch und die Rolle des künftigen Vaters”, Neue Juristische Wochenschrift, 1985, 2175 s.
- Paul A. Roth, “Personhood, property rights and the permissibility of abortion”, Law and Philosophy, 2, 1983, 163-191
- Robert P. George, Choque de Ortodoxos. Direito, Religião e Moral em Crise, Coimbra: Edições Tenacitas, 2008
- Mafalda Miranda Barbosa, “Dobbs, State Health Officer of the Mississippi Department of Health et al. v. Jackson Women’s Health Organization et al. breves reflexões em sede de proteção do nascituro”, Boletim da Faculdade de Direito, 98/1, 2022, pp. 159-205
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1. Em 2006, com a Lei nº32/2006, de 26 de julho, o legislador português resolveu disciplinar o recurso às técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), entre as quais se contava a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a injeção intracitoplasmática de espermatozoides, a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos, o diagnóstico genético pré-implantação. Fê-lo, com todos os problemas ético-jurídicos daí advenientes (v.g. a questão dos embriões excedentários), assumindo como paradigma uma ideia de subsidiariedade. As técnicas de PMA surgem, no quadro legal, como um método subsidiário, ao qual se pode recorrer em caso de infertilidade ou doença grave.
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por Pedro Vaz Patto, 2025
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1. Pilar estruturante de um Estado de Direito é o princípio da separação de poderes, princípio inicialmente teorizado por Montesquieu no seu livro L´esprit des Lois.
A separação de poderes (a que também se associa, na tradição norte-americana a imagem dos “freios e contrapesos – checks and balances”) é fundamental na perspetiva da limitação do poder, porque os perigos de abusos são tanto maiores quanto menos limitado for o poder (de acordo com a célebre máxima: «todo o podere corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente»).
Os abusos de poder podem provir de políticos legitimados pelo voto popular maioritário. O Estado de Direito democrático distingue-se de uma democracia absoluta ou totalitária (ou “jacobina”), ou da “ditadura da maioria”, em que o poder não está limitado por direitos fundamentais ou por regras que garantam que os políticos que hoje gozam de apoio maioritário não se perpetuem no poder e que se sujeitem a escrutínios regulares que possibilitem a alternância.
Do princípio da separação de poderes decorre a independência do poder judicial. Essa independência não se coloca apenas no confronto com o poder político, mas nesse confronto assume um importante papel de limitação e controlo. Assegura o predomínio da legalidade, o predomínio da norma sobre o arbítrio. Garante que as normas elaboradas noutra sede (a do poder legislativo) são aplicadas aos casos concretos de forma equitativa e imparcial.
2. A independência dos juízes tem como corolários a sua inamovibilidade (não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos, senão nos casos previstos na lei – artigo 216.º, n.º 1, da Constituição portuguesa) e a sua irresponsabilidade (não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as exceções previstas na lei- nº 2 desse artigo 216.º). Essas exceções entram no âmbito disciplinar, que não se confunde com o controlo do sentido das próprias decisões (para tal, servem os recursos dessas decisões).
Garantia da independência dos juízes é, pois, o sistema das suas nomeação, colocação, transferência e promoção, assim como o do exercício da ação disciplinar a eles relativa.
3. A interferência do poder político na nomeação dos juízes não se afigura como a forma mais adequada de garantir a sua independência e a sua imparcialidade.
Essa interferência, em várias instâncias, verifica-se no sistema norte-americano, com a sistemática ligação dos vários juízes a correntes políticas determinadas, o que se reflete no sentido de muitas decisões. Ainda assim, as regras de inamovibilidade (com a consequente regra de não limitação de mandatos) e irresponsabilidade (os processos disciplinares são excecionais) não eliminam por completo, nesse sistema, a independência dos juízes, que nem sempre conformam as suas decisões à orientação da corrente política que levou à sua nomeação.
A tendência que vem prevalecendo no âmbito das orientações do Conselho da Europa é a de rejeição da interferência do poder político ma nomeação de juízes, que também se verificou, ou ainda se verifica, em vários países europeus.
Também não se afigura forma adequada de garantir a independência e imparcialidade dos juízes o sistema de eleição, que vigora, em algumas instâncias, nos Estados Unidos e na Europa apenas na Suiça. A eleição torna o juiz dependente das forças políticas que contribuem para ela, colocando-se, até, o problema do financiamento das respetivas campanhas eleitorais.
4. Garantia da independência dos juízes é também o sistema da sua colocação, transferência e promoção, assim como o exercício da ação disciplinar a eles relativa. Se o poder político pode influenciar a nomeação ou a carreira dos juízes, o risco de premiar os que lhe são fiéis, ou prejudicar os que não o são (como se verifica em cargos de nomeação política) é evidente.
Mas importa ter presente que os próprios juízes podem abusar do seu poder e há também que obstar a tais abusos, designadamente através de processos disciplinares. E também não pode ignorar-se o risco de prevalência de uma auto-referencialidade corporativa não suficientemente empenhada na condenação desses abusos por parte de colegas de profissão.
De acordo com o artigo 217.º, n.º 1, da Constituição portuguesa, a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judicias, assim como o exercício da ação disciplinar a eles relativa, cabem ao Conselho Superior da Magistratura, nos termos da lei.
A composição deste Conselho corresponde a um equilíbrio entre, por um lado, um princípio de auto-governo, como uma exigência da independência do poder judicial, que se traduz na presença do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e de juízes eleitos pelos seus pares (sete); e, por outro lado, um princípio de maior responsabilização democrática, que se traduz na presença de membros eleitos pela Assembleia da República (sete) e pelo Presidente da República (dois). Trata-se de um sistema equilibrado que satisfaz, na medida do possível, os vários valores em jogo, sem sacrificar o núcleo essencial de nenhum deles.
5. A intervenção do juiz na aplicação da Lei nunca é puramente automática, como se ela fosse, nas palavras de Montesquieu, “la bouche qui prononce les paroles de la loi”. Cada lei é geral e abstrata, nunca contempla toda a diversidade e complexidade da vida real e concreta. Como se afirma habitualmente, «cada caso é um caso», ainda que se possam sempre colher semelhanças e analogias entre os vários casos. Por isso, tem de haver sempre uma margem de flexibilidade na aplicação da lei. Há que respeitar o espírito da lei e não apenas (nem sobretudo) a sua letra («a letra mata, o espírito vivifica»).
6. Mas importa garantir que os juízes tenham uma consciência clara de que os seus poderes, que tendem a ser acrescidos pela “juridicialização” de cada vez mais questões, têm limites e não podem confundir-se com os poderes próprios dos políticos.
O campo próprio de atuação dos tribunais é o da aplicação da Lei (num sentido amplo, que inclui também os princípios jurídicos que se espelham na Constituição), não o da criação da Lei e o da opção política. Os juízes têm uma
legitimidade que lhes vem, não do voto, mas da Constituição e da Lei. Para aplicar a Constituição e a Lei, essa legitimidade é inquestionável. Mas para a criação de leis ou a tomada de opções políticas, já será imprescindível a legitimidade que deriva do voto popular.
Do mesmo modo que não deve tolerar interferências de outros poderes nessa sua missão de aplicação da Lei, o juiz não deve invadir domínios que cabem a esses outros poderes. São estas as exigências da separação de poderes e da independência do poder judicial.
É de salientar, ainda, que a independência dos juízes deve revelar-se face ao poder político, mas também face ao “contra-poder”, à maioria que governa, mas também face à oposição política e social. E deve afirmar-se face ao poder político, mas também face ao poder mediático e às pressões da “opinião que se publica”.
Por outro lado, também se impõe reconhecer que não favorece a independência e a imparcialidade dos juízes (ou a imagem dessa independência e imparcialidade, o que também importa preservar) a existência de associações sindicais de juízes conotadas política e ideologicamente (e em disputa entre si), como se verifica em países como a Itália, a França e a Espanha.
O mesmo se diga quando uma carreira judicial de grande notoriedade serve de “trampolim” para uma carreira política, como sucedeu em casos famosos de Itália, Espanha e Brasil.
7. Por isso, não será de aplaudir que, em vários países, inovações legislativas de grande alcance cético e civilizacional tenham resultado de decisões judiciais.
Isso verificou-se, designadamente, com a legalização do aborto nos Estados Unidos (através da jurisprudência do caso Roe v. Wade, mais recentemente corrigida com a do caso Dobbs v. Jackson Women´s Health Organization), e no México; com a despenalização do suicídio assistido na Colômbia, na Itália e na Alemanha; com a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos (através da jurisprudência do caso Obergefell v. Hodges); e com a alteração de vários aspetos da regulação da procriação artificial em Itália.
8. É de salientar, ainda, que a independência dos juízes deve revelar-se face ao poder político, mas também face ao “contra-poder”, à maioria que governa, mas também face à oposição política e social. E deve afirmar-se face ao poder político, mas também face ao poder mediático e às pressões da “opinião que se publica”.
Por outro lado, também se impõe reconhecer que não favorece a independência e a imparcialidade dos juízes (ou a imagem dessa independência e imparcialidade, o que também importa preservar) a existência de associações sindicais de juízes conotadas política e ideologicamente (e em disputa entre si), como se verifica em países como a Itália, a França e a Espanha.
O mesmo se diga quando uma carreira judicial de grande notoriedade serve de “trampolim” para uma carreira política, como sucedeu em casos famosos de Itália, Espanha e Brasil.
Bibliografia:
Charles de Montesquieu, O Espírito das Leis (tradução brasileira), Edipro, dezembro de 2023.
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