por Alexandre Franco de Sá, 2024

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1. A ditadura é uma magistratura republicana com origem em Roma. Na República Romana, o ditador é um magistrado extraordinário encarregado de concentrar o poder por um espaço de tempo limitado (não superior a seis meses) e com o fim de executar uma tarefa específica. Duplamente limitado pela exígua duração do seu mandato e pela finalidade determinada que lhe estaria pressuposta, o ditador dispunha de um poder concentrado que, em circunstâncias ordinárias, estaria disperso por vários órgãos e instâncias. Assim, o fundamento da ditadura consistia na possibilidade de proporcionar à República uma capacidade de decidir e agir rapidamente em circunstâncias excepcionais que exigiriam a sua defesa. Em tais circunstâncias, o exercício do poder executivo não poderia estar sujeito nem às limitações de autoridade dos órgãos colegiais, como acontecia com os cônsules, nem ao veto dos tribunos da plebe, nem aos apelos à participação popular (provocatio ad populum). Nomeado pelos cônsules, o ditador podia deliberar e agir sem consultar ninguém, fazendo o que entendesse necessário à salvação da República, e punir sem que houvesse lugar a recurso. Na sua actuação, não encontrava entraves normativos: diante do princípio supremo da salvação da República (salus populi), a observação das leis e procedimentos normais poderia ficar suspensa. No entanto, tal não significava que a ditadura pudesse transformar a República, destituindo o senado ou as autoridades consulares e substituindo leis antigas por uma nova ordem. Pelo contrário, tratar-se-ia de uma magistratura extraordinária, aplicada em momentos de excepcional gravidade, que, nessa medida, não se poderia substituir à normalidade nem normalizar a excepção. Daí que, por exemplo, Maquiavel, nas suas reflexões sobre o ditador romano, conclua que «somados o breve tempo da sua ditadura, a limitada autoridade que detinha e o não estar o povo romano corrompido, era impossível que ele extravasasse os seus limites e prejudicasse a cidade; e por experiência se vê que sempre ajudou» (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Livro I, 34). A limitação temporal e o carácter excepcional são essencialmente constitutivos da ditadura enquanto magistratura republicana. Por isso, a atribuição a Júlio César, em 44 a.C., do cargo de ditador vitalício acaba por ser interpretada como uma tentativa de transformação da República em Monarquia, determinando a conjura republicana que tem como desfecho o seu assassínio no Senado.

2. Apesar da sua origem republicana, a ditadura não se liga a um regimen ou a uma forma de governo específico. Trata-se antes de um modo de exercer o poder em virtude do que as circunstâncias possam exigir. A partir do século XVI, no seguimento da circunscrição do conceito de soberania, surge a figura de um «comissário governativo». No contexto da teoria do Estado moderno, o governo decorre da soberania, mas não se pode confundir com ela. Governar consiste em executar a vontade do soberano. Assim, desenvolvendo-se a figura do príncipe na concepção do monarca soberano, o «comissário governativo» aparece como o lugar-tenente do rei, encarregado de executar a sua vontade, representando-o e agindo em nome dele. O governante como comissário ou delegado do soberano, que exerce o poder em sua representação, permite desenhar a figura daquilo a que Carl Schmitt, no seu livro A Ditadura (1921), designou como «ditadura comissária». Agindo em nome do soberano, e da ordem por ele incorporada, o ditador comissário está vinculado a esta mesma ordem. Em nome dela, está autorizado a suspender excepcionalmente, quando as circunstâncias o impuserem, as normas que poderiam obstar à sua acção. É aquilo a que Schmitt chama «estado de excepção». No estado de excepção, subjacente à ditadura comissária, o vínculo às normas é suspenso em virtude de um vínculo primordial à ordem. É a reposição da ordem, e a defesa da soberania, que permite restabelecer a situação normal em que a vigência das normas pode ter lugar. Assim, numa ditadura comissária, tendo em conta a sua ligação à soberania, as normas jurídicas assentes nesta mesma soberania não desaparecem nem deixam de estar presentes. Elas estão presentes, mas estão-no como se estivessem ausentes. Ou seja, numa ditadura comissária, a suspensão das normas, e a intervenção directa do ditador em nome da soberania e da ultima ratio da salvação do Estado, é sempre entendida como uma reposição da situação de normalidade que permite às normas suspensas voltarem a vigorar.

3. O conceito de soberania popular, introduzido por Rousseau em Do Contrato Social (1762), e o uso deste conceito no contexto revolucionário francês, a partir de 1789, conduziu a uma nova representação da ditadura. Rousseau afirmara que, sendo o povo soberano, a soberania não poderia ser representada. Ninguém poderia representar a sua vontade – a vontade geral – e o governo não seria senão o seu delegado. Um Rei que se entendesse como representante soberano do povo, identificando a sua vontade particular com a vontade desse mesmo povo, seria um tirano usurpador. Assim, a partir da Revolução, tornava-se necessário um novo governo, entendido não como representante mas como delegado ou comissário da vontade popular. A República Francesa, estabelecida no decurso do poder jacobino e da execução de Luís XVI, institui esse novo governo, mediante a constituição do Comité de salut public, a 6 de Abril de 1793. Na concepção revolucionária de homens como Robespierre ou Saint-Just, o povo soberano exerce directamente a sua vontade através do governo revolucionário e o comité revolucionário é, sem qualquer mediação representativa, o exercício da vontade soberana do povo. Assim, a Revolução Francesa estabelece uma nova forma de ditadura. Já não se trata de uma ditadura comissária, que exerceria o poder em nome de um soberano. É agora a própria ditadura que é ela mesma soberana. Ao distingui-la no seu conceito, Carl Schmitt define a ditadura soberana como «a comissão de acção incondicionada de um pouvoir constituant». A evocação do poder constituinte do povo, definido por Sieyès, permite compreender o fundamento do conceito de ditadura soberana. A concepção de que o povo é soberano enquanto poder constituinte desemboca na ideia de que a soberania do povo só se exerce efectivamente numa ordem constituída (ou numa constituição). É, portanto, a ideia de construção no futuro de uma nova ordem revolucionária, e a ideia de que a Revolução antecipa esse futuro, que está subjacente ao conceito de ditadura soberana. Se o ditador comissário actua em virtude do vínculo a uma ordem passada, e encontra na concepção dessa ordem um limite ao exercício do seu poder, os revolucionários jacobinos exercem uma ditadura soberana sobre o povo sem qualquer vínculo ao seu passado, costumes e tradições. Ou seja, a ditadura soberana exerce-se não em nome de uma ordem passada a respeitar, proteger ou repor, mas em nome de um futuro que os revolucionários, actuando sem quaisquer limites como o seu poder criador, pretendem exclusivamente representar.

4. A confrontação com a Revolução, e com o estabelecimento da ditadura soberana que ela anuncia, leva, sobretudo a partir de 1848, ao surgimento de apologias da ditadura entendidas como invocações de um exercício autoritário do poder em nome do restabelecimento da autoridade e da ordem. Tratava-se, portanto, de apelar ao carácter comissarial da ditadura, invocando-o para se contrapor à violência revolucionária da ditadura soberana. Apelar à ditadura, como fazia Donoso Cortés num discurso famoso de 1849 nas Cortes espanholas, significaria invocar a «ditadura do sabre» – a ditadura do governo, da autoridade e da ordem que vem de cima – contra a «ditadura da navalha», concretizada no alastrar da insurreição e na disseminação da violência que vem de baixo. A figura do ditador assim invocado é, em geral, a de um chefe militar que, como o General Cavaignac em França ou o General Narváez em Espanha, usaria as forças armadas para pôr termo a tumultos e insurreições. Pode, por isso, chamar-se cesarismo a estas alusões à ditadura. Diante dos apelos à ditadura cesarista, o socialismo formará, a partir desses anos, o conceito de «ditadura do proletariado». Para Marx, que em 1848 publica com Engels o Manifesto do Partido Comunista, a transição da sociedade burguesa para a sociedade comunista não poderia deixar de se dar por meios violentos, implicando a tomada do poder e o seu exercício por uma «ditadura revolucionária do proletariado». Em 1875, na sua Crítica ao Programa de Gotha, em que, no contexto do projecto de um partido socialista unificado, contesta a Lassalle o propósito de integrar os socialistas no recentemente formado Império Alemão, Marx terá oportunidade de reforçar a ideia de que a ditadura do proletariado seria indispensável na realização do socialismo. É a imagem de uma ditadura revolucionária comunista, alimentada pela experiência da revolução bolchevista na Rússia a partir de 1917, que explica o aparecimento das ditaduras que marcaram a Europa no século XX. Estas entendiam-se, em geral, como a formação de governos autoritários limitados pela referência à ordem. Nestes governos, a abertura de um estado de excepção, se tal fosse necessário, deveria corresponder já não a um simples exercício cesarista do poder, mas a uma autorização constitucional para que o Presidente, ou um supremo magistrado, pudesse actuar em ditadura. Por exemplo, na Alemanha da República de Weimar, juristas como Carl Schmitt e Erwin Jacobi entendem o art. 48º da Constituição de 1919 como a abertura da possibilidade de, por via constitucional, decidir uma «ditadura do Presidente do Reich». Esta ditadura era entendida, naturalmente, em sentido comissarial. Assim, em países como Espanha e Portugal, o cesarismo da ditadura militar evolui para o aparecimento de novos Estados de cariz autoritário. Para os seus defensores, e para aqueles que invocavam como seu modelo o fascismo italiano,

chegado ao poder em 1922, tais Estados teriam na sua base uma ditadura comissária contra o projecto da ditadura soberana; uma «revolução da ordem» contra a ameaça comunista da Revolução e da sua «ditadura revolucionária do proletariado». Tratava-se de constituir um Estado que tivesse instrumentos, na sua ordem constitucional, para responder ao projecto comunista de tomar o poder e derrubar o próprio Estado, substituindo-o pela ditadura soberana do Partido. Como escrevia João Ameal em 1932, nas vésperas de, com a Constituição de 1933, a Ditadura Militar portuguesa se transformar no Estado Novo: «Olhemos atentamente para Roma – se queremos salvar-nos de Moscovo!» (A Revolução da Ordem, p. 21).

Bibliografia:

  • Bainville, Jacques. Les dictateurs. Paris: Denoël et Steele, 1935.
  • Donoso Cortés, Juan. Discurso sobre a Ditadura. Lisboa: Crítica XXI, 2023.
  • Maquiavel, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. trad., int. e notas de André Santos Campos e Giovanni Damele. Lisboa: Edições 70, 2024.
  • Saint-Bonnet, François. L’état d’exception. Paris: PUF, 2001.
  • Sartori, Giovanni. “Appunti per una teoria generale della dittatura”. in Theory and Politics: Festschrift zum 70. Geburtstag für Carl Joachim Friedrich (ed. Klaus von Beyme). Haag: Martinus Nijhoff, 1971, pp. 456-485.
  • Schmitt, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994.

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