por Manuel Carneiro da Frada, 2024

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A tolerância pode ser considerada como o acto ou o efeito da virtude cívica da convivência e do respeito para com opiniões e modos de vida diversos. Pressupõe, portanto, a divergência. Refere-se, sobretudo, ao plano das concepções gerais da existência e do mundo, das convicções políticas e da religião, assim como dos comportamentos correspondentes.

Na história do pensamento, a tolerância liga-se à afirmação da autonomia dos indivíduos e à liberdade do pensamento desde a idade moderna, avultando os escritos que Locke lhe dedicou. A sua importância torna-se especialmente evidente, enquanto base e garante da paz social, em contextos pluralistas e nos ambientes multiculturais que marcam muitas das sociedades da actualidade.

Enquanto atitude cívica, a tolerância não implica, em si mesma, qualquer compromisso com um cepticismo filosófico ou um relativismo moral, segundo os quais ninguém estaria em condições de produzir afirmações, no plano filosófico ou moral, com pretensão de verdade. Pode, sempre, respeitar-se alguém – como lhe é devido – sem subscrever as suas opiniões e sem que as suas compreensões tenham, só por isso, de ser consideradas tão válidas e atendíveis como quaisquer outras. A “abertura ao outro” que implica opõe-se, quer ao autoritarismo – aceitando o espaço do livre-arbítrio dos demais – quer ao dogmatismo, reconhecendo a possibilidade do contributo do pensamento alheio em ordem ao que constitui, em termos objectivos, o verdadeiro ou o bem (contributo a que se opõem, porém, “culturas de cancelamento” ideologicamente motivadas).

Na base da tolerância encontra-se a dignidade da pessoa humana e a necessidade do respeito da liberdade do pensamento e de acção de cada um. Ela radica na igual participação de todos da mesma natureza humana. Pode requerer, por isso, legitimamente, reciprocidade. Naturalmente, só um conceito não relativista de bem e de verdade – que a todos vincula – fundamenta e assegura definitivamente a tolerância, preservando a pessoa de todas as instrumentalizações e relativizações na ara de pragmatismos ou utilitarismos cegos.

Nenhuma sociedade culturalmente plural é susceptível de subsistir sem tolerância. Contudo, se todas as afirmações em matéria moral ou social puderem ser tão verdadeiras ou falsas como as suas contrárias – se todas forem radicalmente equiparáveis entre si -, nada pode também exigir-se, proibir-se ou esperar-se legitimamente, dos demais, na vida social. O indiferentismo, a anarquia, a intolerância e a exposição inexorável a meras lógicas de poder e de domínio são consequência da confusão entre a tolerância acima caracterizada como virtude cívica ou social e uma tolerância enquanto expressão de uma perspectiva relativista da justiça e da ética. Esta, ao descrer da comum razão humana, não permite nem é capaz de prover uma base não arbitrária para a convivência pacífica dentro da diversidade humana.

O fundo comum possibilitador de uma sã convivência, embora sensível às idiossincrasias de cada povo, tempo e lugar, há-de ser racionalmente compartilhável por todos, como expressão de uma natureza comum que se realiza no tempo e no espaço. A tolerância encontra-se, assim, num intervalo de tensão entre a cultura historicamente moldada, e a racionalidade que a sobrepassa e pode ser dela, no diálogo intersubjectivo, instância crítica.

Na actualidade, uma das principais justificações da tolerância encontra-se na salvaguarda do que se entendem ser direitos humanos essenciais: tão nuclearmente, aliás, que eles hão-de ser assegurados mesmo na defesa da sociedade tolerante contra os seus inimigos. Tal implica uma concepção substancialista da dignidade humana. Sem esse referente objectivo fixo, situado para lá de si mesma, a tolerância não vincula a um diálogo social susceptível de fazer evoluir dialecticamente, sob a égide da razão, as diversas posições em ordem a paradigmas mais perfeitos de integração social.

A tolerância requer o respeito incondicional pelos demais. São incompatíveis com ela, não só, v.g., as perseguições e os genocídios por motivos de raça, consciência, crença, religião, etc., mas também as selecções eugénicas de embriões, o aborto a pedido e a eutanásia praticada, como frequentemente, em quem não tem capacidade actual de entender ou querer.

O espaço da tolerância social mostra-se móvel. Tem variado ao sabor da história e das culturas, das pulsões socio-identitárias de (auto-)preservação, e em função do tipo e grau de intensidade da pluralidade existente em cada sociedade. Encontra-se hoje muito expandido como consequência do reconhecimento da liberdade individual, compreendendo-se, porém, a defesa de uma sociedade contra os intolerantes que põem em causa esse espaço.

A tolerância não é apenas uma atitude cívica ou social. Apresenta-se também juridicamente moldada e devida. Tal como em muitos estados da actualidade, ela encontra-se entre nós constitucionalmente fundada no princípio da igualdade e da não discriminação, assim como no reconhecimento de direitos fundamentais elementares como a liberdade de pensamento, de expressão e de religião. Trata-se de conseguir um espaço de tolerância garantido pela neutralidade do Estado, susceptível de ser partilhado por todos, e dentro do qual possam expressar-se e conviver diversos entendimentos do bem ou da verdade.

A tolerância, como se disse, não é igualitarismo nem indiferença. Por isso, dentro do seu espaço (normativamente assegurado), é justo considerar a sensibilidade das maiorias, assim como o entendimento do bem comum que maioritariamente se afirme hic et nunc. Ela harmoniza-se, portanto, com a regra da maioria própria das democracias representativas. Estas representam uma forma de institucionalização da tolerância política. A sua exposição à possibilidade de abusos de maioria, assim como a insusceptibilidade de por si só garantir outras dimensões da tolerância implicam também uma concepção não relativista do Direito na sua função de assegurar o espaço da tolerância.

Nesta sua função compreende-se que, embora uma ordem jurídica não deva senão limitadamente tomar partido entre concepções específicas de bem ou de verdade, nem por isso ela deixa de se encontrar vinculada ao que constituam objectivamente exigências indeclináveis da sociedade tolerante em si mesma considerada. Há, por isso, bens que não podem deixar de ser tutelados (v.g., a participação numa sociedade tolerante através da protecção da vida). Tal não obsta a que, salvaguardados os marcos da sociedade tolerante, se admitam condutas em si mesmas reprováveis, porque assim o reclamam, apesar disso, o respeito pela liberdade individual da pessoa humana ou a paz social (v.g., o consumo de droga). O princípio da harmonização (ou, se se preferir, da não beligerância) entre Direito e Moral – reclamado pela unicidade do ser humano nas várias dimensões que ele comporta – impõe apenas que a ordem jurídica respeite a ordem ética, e não obrigue nem declare lícito aquilo que se apresenta moralmente ilícito.

Bibliografia:

  • Ana Gaudêncio, O intervalo da tolerância nas fronteiras da juridicidade: fundamentos e condições de possibilidade da projecção jurídica de uma (re)construção normativamente substancial da exigência de tolerância, Coimbra, 2011
  • Artur Kaufmann, “Das Prinzip Toleranz- Rechtsphilosophie in der pluralistischen Risikogesellschaft”, in Rechtsphilosophie, München, 1997, 295 ss.
  • John Locke – Epistola de tolerantia, 1689
  • José Antonio Santos – “Tolerancia y relativismo en las sociedades complejas”, in Persona y Derecho, 56 (2007), 177 ss.
  • Joseph Ratzinger – Fé, verdade e tolerância, Lisboa, 2006.
  • Paulo Mota Pinto – “Nota sobre o “imperativo de tolerância” e seus limites”, in Estudos em Memória do Conselheiro Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, 745 ss.
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