por Manuel Carneiro da Frada, 2024
Segundo uma noção clássica, possivelmente a mais consensual de todas, a justiça corresponde ao acto (e à virtude) ou ao efeito de dar a cada um aquilo que é seu.
Expressão da justiça é o imperativo de tratar de modo igual aquilo que é igual e de modo diferente o que é (essencialmente) diferente, segundo a medida da diferença (traduzidos simbolicamente pelo prumo da balança, que manifesta também a proporcionalidade do “meio” entre dois extremos). No que vai implicado o carácter analógico do Direito enquanto “ordem de justiça”, a postular, não uma igualdade de tipo formal, mas a igualdade como relação de adequação à “natureza das coisas”.
Há, por certo, diversas concepções de justiça. Posições acentuadamente relativistas – negadoras da possibilidade de produzir asserções sobre o que a justiça implica com pretensão de verdade – conduzem fatalmente a uma desvalorização da pergunta acerca da justiça perante, no plano social, (i) as orientações reitoras da política, tidas então por definitivas e expressas nas determinações da potestas do legislador (positivismo jurídico-normativista) ou face (ii) ao que (meramente) na sociedade se reconhece ou afirma ser justo (positivismo sociológico). Em ambos os casos, a questão da justiça é, em último termo, relegada para o plano da pura subjectividade e do “metajurídico” (propiciando capturas ideológico-políticas).
No contexto relativista da actualidade, estão especialmente em voga concepções procedimentalistas, consequencialistas, utilitaristas, consensualistas ou libertárias da justiça.
Enquanto as primeiras vêem a justiça como termo meramente formal (independente de conteúdos) da observância de um mero procedimento normativamente estabelecido, as demais procuram já uma perspectiva material da justiça. Todas elas captam exigências da justiça, mas são, em si mesmas, redutoras. Ou porque a medem apenas pelas consequências sociais que se geram e/ou a cingem ao que é economicamente útil ao bem-estar social geral (ainda que sacrificando, em seu nome, sem limites, o que pode ser elementarmente devido a alguns ou a muitos), ou porque a aprisionam aos entendimentos política ou sociologicamente dominantes (expondo a sociedade e os indivíduos aos abusos e totalitarismos das maiorias, tragicamente comprovados por muitas ideologizações da justiça ao longo da história), ou porque, desligando a autonomia da pessoa do seu sentido responsabilizante, não explica nem dá qualquer critério para a forma de harmonizar a liberdade de todos entre si, resolvendo os conflitos de liberdades.
Embora relevantes, a justiça transcende, assim, essas concepções. De harmonia com um entendimento generalizado e comprovado ao longo da história, constitui um referente objectivo, racionalmente acessível, invocável por todos e de que todas sociedades, afinal, carecem.
O que é devido e pode ser exigido em nome da justiça é constituído por uma pluralidade de bens para os mais variados fins humanos. No seu cerne está, portanto, a dignidade da pessoa humana e o que se torna necessário à sua realização em cada tempo e lugar: é justo aquilo que serve a dignidade da pessoa, na sua circunstância concreta. Só uma concepção não relativista, nem subjectivista da dignidade humana confere um conteúdo objectivo à justiça, susceptível de possibilitar a crítica e impulsionar e mover os sujeitos, assim como a comunidade em que se inserem, em direcção a ela. A consideração da pessoa humana enquanto ser social conduz a uma conciliação entre as exigências do bem individual e o que constitui o bem comum de todos (sendo, portanto, incompatíveis com a justiça, quer o individualismo, quer o colectivismo totalitário). Expressando as exigências da razão prática num contexto de alteridade (isto é, de diversidade dos sujeitos) e de exterioridade (com autonomia, que não separação, da regra moral), ela integra-se na virtude da prudência, como saber ou arte do justo.
Tradicionalmente distingue-se entre a justiça distributiva e a justiça comutativa. Esta última determina o que pertence, numa relação horizontal de igualdade entre os indivíduos, a cada um de acordo com a equivalência de prestações ou de reciprocidade, sendo a justiça correctiva uma sua modalidade particular destinada a repor a igualdade perturbada. Diversamente, a justiça distributiva reparte os bens comuns e os sacrifícios entre todos os membros de uma comunidade (em função, vg., da necessidade, do mérito, do esforço, da aptidão). A igualdade implicada opera dentro dessa comunidade política, no âmbito de uma relação vertical de autoridade e sujeição entre o Estado e os cidadãos, vedando a discriminação infundada entre estes. A justiça legal será, por sua vez, aquela que corporiza as obrigações que os sujeitos têm para com a comunidade em que se inserem (por exemplo, de pagar impostos) enquanto contribuição para o bem comum.
Distingue-se também a justiça natural e a justiça positiva (ou legal positiva), consoante tem o seu fundamento na natureza (das coisas) ou na potestas do legislador. Contrapõe-se, por sua vez, com frequência, a justiça à equidade, que visa uma justiça extralegal, superando ou corrigindo as eventuais deficiências ou insuficiências da lei.
Fala-se ainda da justiça para significar a função jurisdicional e, mais amplamente, todo o sistema estadual destinado a assegurá-la.
A relação entre o Direito e a Justiça é complexa, sendo debatidos os seus termos. Independentemente da dimensão que cabe à Justiça numa noção inclusiva do Direito, os dois conceitos são correlativos (tal qual se encontra profundamente implantado na consciência humana e na experiência histórica). Ao primeiro interessa a objectividade do justo (prescindindo das motivações do sujeito, e ainda que a regra jurídica possa expressar, igualmente, uma exigência moral), integrando também a dimensão da segurança (e, ainda, para alguns, um juízo de adequação/oportunidade). A ordem jurídica corresponde, ou incorpora em si, uma ordo iustitiae. O Estado de Direito deverá ser, em conformidade, um estado de justiça.
Bibliografia
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