por Inês Neves, 2024

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1. Bem jusfundamental tradutor da relação privada de privados com bens e direitos patrimoniais (corpóreos ou intangíveis), em diálogo vertical (com e face ao Estado) e horizontal (com e face a terceiros). A propriedade privada (dos privados) é garantida, entre nós, pela norma de direito fundamental consagrada no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa de 1976 (‘CRP’), conhecendo recortes específicos, razão da individualidade e da destinação do seu objeto (cf. artigos 42.º, n.º 2, 65.º, n.º 4, 88.º, 94.º- 96.º CRP).

2.  Integra a tríade de direitos fundamentais económicos clássicos, carregando na sua matriz genética o ideal de liberdade prototípico do constitucionalismo liberal, hoje dialogante com a autonomia e a solidariedade, recondutíveis à matriz axiológica plural da Constituição.

3. Caracterizam a propriedade privada a sua complexidade, a sua multidimensionalidade e a sua amplitude. A complexidade, desde logo quanto aos valores-âncora que a sua jusfundamentalidade justificam, orientados às garantias i) de um espaço de autonomia pessoal, essencial à realização da pessoa e indispensável à prossecução de projetos de vida livres, autónomos e responsáveis, e ii) de separação-diferenciação (ainda que não absolutizante ou sequer excludente) da sociedade face ao Estado, em relação ao qual surge como contrapoder.

4. Caracteriza a norma de direito fundamental uma dupla dimensão. Na dimensão subjetiva, descobre-se o feixe de faculdades e de posições jurídicas ativas de índole patrimonial, invocáveis e justiciáveis para a garantia da esfera patrimonial juridicamente própria. Na dimensão objetiva ou institucional, expõe-se o invólucro protetor da propriedade como instituto, numa garantia tanto (im)positiva (de deveres de proteção, de organização, de procedimento, e de design de um enquadramento normativo, que é condição de efetividade do direito), como negativa (vedando a afetação ou, mesmo, a aniquilação dos traços essenciais e caracterizantes da propriedade constitucionalmente garantida). Em qualquer caso, a garantia sucedânea da “justa indemnização” prevista para os casos de requisição e expropriação por utilidade pública, nem é destas exclusiva, nem é substituto excludente do direito de defesa.

5. O objeto da garantia constitucional da propriedade privada é amplo. Não se identifica com o conteúdo civilístico de propriedade, nem se resume à propriedade em sentido jurídico-real (muito menos à proprietas rerum). Inclui, ainda, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e industrial, e, bem assim, direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei, como os direitos de crédito e as participações sociais. Numa síntese que arrisca reducionismo, está em causa a proteção de posições jurídicas sobre bens de valor patrimonial.

6. Aos respetivos titulares, reconhecem-se as faculdades jusfundamentais de aceder (direito à propriedade), de manter (não ser arbitrariamente privado de), de transmitir ou dispor, e de usar e fruir (i.e. aproveitar) a propriedade (independentemente da racionalidade e da eficiência do uso). Sujeitas a respostas cambiantes entre jurisdições e sistemas de proteção de direitos, ficam as simples expectativas de aquisição e a ‘Nova Propriedade’, inclusiva dos direitos subjetivos públicos com expressão patrimonial (‘Teilhaberechte’).

7. A propriedade privada não é prerrogativa absoluta que possa ser lida à luz de um liberalismo radical ou ‘quimérico’. O facto de a CRP omitir, na sua textualidade, a referência a uma ‘funzione sociale’ ou ao ‘Allgemeinheit’ (cf. artigos 33.º da Constitución Española de 1978; 42.º da Costituzione della Repubblica Italiana de 1948 e 14.º da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland de 1949), não silencia o enquadramento social vinculativo no qual a propriedade se move, nem as ingerências, de grau naturalmente variável. Nada consente, porém, tresler ou expropriar os “termos da Constituição” do seu sentido básico. Não são autorização de funcionalização-orientação da propriedade dos privados à prossecução de deveres do Estado social. Nem legitimam desnudar o flanco de defesa da capacidade de resistência a investidas políticas e/ou económicas sem tradução em valores, bens ou interesses constitucionalmente protegidos prevalecentes. Porque, nem a solidariedade entre privados, nem a função económico-social da propriedade podem ser degradadas a ponto de consentir uma subordinação funcional da propriedade privada ao social que a rodeia, convertendo um direito-liberdade fundamental em dever de exercício vinculado ao interesse público.

Bibliografia:

  • Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra: Coimbra Editora, 1998
  • Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra: Almedina, 2007
  • Jorge Medeiros – “Artigo 62.º” in Miranda, Jorge/Medeiros, Rui – Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I: preâmbulo, princípios fundamentais, direitos e deveres fundamentais, artigos 1.º a 79.º (2.ª ed.), Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017
  • Joaquim de Sousa Ribeiro, “O direito de propriedade privada na jurisprudência do Tribunal Constitucional” – Relatório português apresentado à Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, outubro 2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/ctri.html
  • Herman Schwartz “Property Rights and the Constitution: Will the Ugly Duckling Become a Swan”, American University Law Review, 37(1): 9-39, 1987
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