por Patrícia Fernandes, 2025
1. O multiculturalismo é um modelo de integração que propõe políticas públicas para responder ao fenómeno da multiculturalidade. Embora relacionados, os conceitos de multiculturalismo e multiculturalidade são distintos: dizer que uma sociedade é multicultural remete para a descrição factual da realidade e significa que ela inclui, no seu seio, várias culturas significativas (uma descrição que, considerando o modelo globalista atual, se revela adequada para quase todos os países ocidentais). Esta multiculturalidade pode ser originária (tendo sido o estado criado a partir dela, como aconteceu com o Canadá, Espanha ou Bélgica) ou derivada, em resultado de movimentos de imigração (o que aconteceu com a maioria dos países ocidentais). No caso português, a comunidade cigana tem sido tradicionalmente estudada como uma situação de multiculturalidade originária, enquanto os fluxos migratórios (em particular, os mais recentes) têm dado origem a situações de multiculturalidade derivada. O modelo para lidar com a multiculturalidade originária consistiu, em contexto liberal, na atribuição de direitos individuais universais, que garantiam o princípio de igualdade perante a lei e geravam o dever, para o estado, de tratar igualmente todos os cidadãos, sem discriminação fundada na cultura, religião ou etnia. O mesmo princípio seria aplicado à multiculturalidade derivada, de acordo com um modelo de integração assimilacionista: aqueles que chegavam a um novo país deveriam assimilar-se à cultura dominante e esbater a sua identidade por forma a manter a coesão do estado nacional. O exemplo tipicamente assimilacionista é o modelo francês, de cariz republicano, que estabelece políticas públicas que visam dissolver as diferenças culturais, em particular no domínio religioso de acordo com um rigoroso princípio de laicidade (os problemas resultantes deste modelo em França não serão abordados aqui).
2. O modelo assimilacionista foi o modelo de integração prevalecente até à década de 1970, momento a partir do qual o respeito pela diferença, pluralismo e diversidade passou a ser entendido como princípio fundacional das democracias liberais modernas. Este espírito progressista levou a que o modelo assimilacionista passasse a ser interpretado como uma política de afronta e opressão, na medida em que, ao invés de celebrar as diferenças culturais e garantir a defesa dessas identidades, promovia o seu apagamento em favor da cultura dominante. O novo ambiente intelectual de inclusão e identidade avançaria, então, com um novo modelo de integração: o multiculturalismo, desenvolvido no Canadá (Charles Taylor; cf. situação especial do Québec), que imprimiu duas alterações importantes nas políticas de integração. A primeira dessas alterações prende-se com o entendimento de igualdade, que já não residiria em direitos iguais e igual tratamento pelo estado, mas na defesa da diferença: o direito de ser tratado diferentemente em resultado das suas diferenças culturais. Nas palavras de Kenan Malik, em vez de direitos universais passamos a ter direitos diferenciais. A segunda alteração prende-se com o sujeito de direitos: na medida em que a identidade cultural tem uma dimensão fundamentalmente grupal, aqueles direitos diferenciais passam a ser atribuídos ao grupo ou ao indivíduo pela pertença a esse grupo. Como estas alterações prescindem do princípio liberal fundamental de direitos individuais universais, o multiculturalismo parece afastar-se da tradição do liberalismo filosófico – um posicionamento que alguns autores assumem explicitamente (Iris Marion Young), embora outros tentem fazer a quadratura do círculo com a defesa de um multiculturalismo de base liberal (Will Kymlicka).
3. Como política pública, o multiculturalismo estabelece direitos culturais e cria políticas de diferença, que podem passar pela concessão de direitos especiais, isenções legais, tratamentos preferenciais ou apoios estatais a esses grupos culturais. E revela-se particularmente relevante no domínio escolar, podendo traduzir-se em adaptações curriculares ou na alteração da língua usada nas escolas (enquanto o modelo assimilacionista defende o reforço do currículo e da língua oficiais, com apoio específico aos alunos referenciados). O exemplo europeu tipicamente apresentado de modelo multiculturalista é o aplicado na Grã-Bretanha, onde o estado é visto como um meio para promover e proteger as diferenças culturais, ao invés de esbatê-las.
4. Meio século após terem sido adotadas as primeiras políticas multiculturalistas, é já possível fazer um balanço. Por um lado, o multiculturalismo apresenta a vantagem de ter colocado em cima da mesa, contra as visões mais globalistas, a importância da identidade cultural e o modo como o contexto cultural é determinante na nossa forma de interpretar e lidar com o mundo – repetindo, na verdade, a velha oposição entre liberais e românticos. Por outro lado, são muitas as dificuldades teóricas que resultam deste modelo e que se traduzem em problemas práticos – ao ponto de alguns autores falarem hoje em interculturalismo como modelo alternativo ou se aventar, no domínio filosófico, a hipótese de um modelo liberal antimulticulturalista, como faz João Cardoso Rosas entre nós. Vejamos que problemas são esses. O primeiro conjunto de problemas resulta do facto de o multiculturalismo pôr em causa pilares fundamentais das sociedades liberais, como o princípio da universalidade e igualdade da lei: de facto, o entusiasmo multiculturalista pela diferença fratura o tecido social quando põe em causa a ideia fundamental de que a lei se aplica igualmente a todos os cidadãos. A título de exemplo, pensemos na chamada prova cultural (“cultural defense”), a que um arguido poderá recorrer no âmbito do processo penal para justificar o seu comportamento. Outro princípio liberal que é igualmente desafiado pelo modelo multiculturalista é o princípio da liberdade de expressão, como o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, relativo ao caso E.S. v. Austria, de 25 de outubro de 2018, revela: a limitação do discurso foi aqui justificada com a exigência de respeito pelas culturas minoritárias. Um segundo conjunto de problemas resulta do facto de o multiculturalismo promover a essencialização das identidades que visa proteger: embora os seus defensores celebrem a diversidade cultural das sociedades, não aplicam o mesmo raciocínio no interior dos próprios grupos culturais, pelo que acabam por essencializar uma identidade, que se manifestaria, de igual modo e de forma estática, por todos os membros do grupo. Esta consideração essencialista da cultura, para além de ignorar a mudança cultural e a liberdade e a identidade individuais, tende a perpetuar tratamentos desiguais dentro do grupo, como Susan Moller Okin chama a atenção no popular artigo “Is multiculturalism bad for women?”. A situação das mulheres tem sido especialmente relevante nesta discussão, em particular no contexto da institucionalização dos polémicos Sharia Councils, em Inglaterra. Um último grupo de problemas resulta da dinâmica subjacente às políticas multiculturalistas, que se revelam muito mais fomentadoras de identidade do que protetoras de identidade. Essa dinâmica decorre do facto de estas políticas atribuírem ao estado um papel intervencionista, nomeadamente com a atribuição de benefícios, o que força os grupos a identificarem-se culturalmente e os indivíduos a reforçarem uma identidade cultural, que até podia estar em processo de remissão. Estes incentivos acabam por conduzir a divisões artificiais dentro da sociedade, que depois se traduzem em conflitos entre grupos. Refletindo a partir da sua própria experiência, Kenan Malik defende que não foram as comunidades minoritárias a exigir políticas multiculturalistas; antes foram essas políticas a moldar, pelo menos em parte, essas comunidades culturais. Embora Malik não o refira, a sua crítica revela uma constante fragilidade democrática na institucionalização das políticas multiculturalistas: é que elas são quase sempre impostas de cima para baixo, isto é, forçadas pelas elites académicas e políticas sem discussão pública e democrática junto da população.
5. Esta última fragilidade é agravada por um outro aspeto particularmente relevante em tempos de crise democrática: um dos argumentos apresentados em favor do multiculturalismo e da sua defesa da diferença remete para a ideia de que a multiculturalidade foi historicamente a regra entre as sociedades europeias, que foram sempre muito menos homogéneas do que as atuais. Embora o caso português constitua uma exceção, a maioria das nações europeias teve, de facto, de ser politicamente construída, nomeadamente em termos linguísticos e religiosos. Mas este argumento omite um aspeto fundamental: é que sem essa homogeneização cultural não teríamos os regimes democráticos liberais que hoje consideramos uma conquista civilizacional do ocidente. De facto, as democracias modernas só foram possíveis após um longo processo de construção de comunidades imaginadas, para usar a expressão de Benedict Anderson, até à formação de uma identidade nacional (David Miller). Ao contrário do que aquele argumento parece indicar, a lição que a história nos dá é a de que a diversidade cultural conviveu sempre com regimes de base imperial ou monarquias fortes; já o regime democrático, criado numa pequena e homogénea polis grega, exige um nível forte de homogeneidade para ser possível escolher um projeto coletivo comum. A multiculturalidade e, por inerência, o multiculturalismo parecem, neste sentido, levantar particulares dificuldades de conciliação com a democracia.
Bibliografia:
– Charles Taylor (et al.), Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994.
– Will Kymlicka, Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, Clarendon Press, 1995.
– Iris Marion Young, Justice and the politics of difference, Princeton, Princeton University Press, 1990.
– Kenan Malik, Multiculturalism and its discontents, London/New York/Calcutta, Seagull Books, 2013.
– Susan Moller Okin (et al.), Is Multiculturalism Bad for Women?, Princeton, Princeton University Press, 1999.
– David Miller, Citizenship and National Identity, Cambridge, Polity Press, 2000.
– João Cardoso Rosas, “Sociedade multicultural: conceitos e modelos”, in Relações Internacionais, Junho, 2007 (14), pp. 47-56.
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