por Francisco Carmo Garcia, 2024

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1. Falar do Estado é, como surge invariavelmente nos manuais dedicados ao tema, falar do que parece ser a forma paradigmática de organização política de um povo. Desse modo, na sociologia e na ciência política encontramos normalmente associados ao conceito de Estado os seus elementos constitutivos: o «povo», o seu elemento humano; o «território», como elemento geográfico; e o «poder político». Num mundo composto de Estados, como é o mundo moderno, estes parecem ser os seus traços genéricos, de uma forma ou outra generalizáveis por toda a experiência humana.

2. Fazer do Estado a unidade política paradigmática implica usar a sua imagem para explicar todas as experiências políticas registadas historicamente. Ou seja, dizer que tanto a pólis grega, a civitas romana, a experiência do império, a respublica christiana, as cidades renascentistas, etc., são todas formas distintas desta mesma unidade política que é o Estado. No entanto, esta generalização precipitada acaba por esconder a essência peculiarmente moderna da ideia de Estado. Com efeito, não se nos pode escapar a novidade que o uso do termo «Estado» (State, État, Staat, Stato) significou na história do pensamento político: um exercício genealógico demonstra que apenas a partir dos séculos XV/XVI o termo começou a ser utilizado para articular aquilo que hoje queremos com ele significar – a ideia de comunidade política – e que se afastou progressivamente do seu significado tradicional, ainda verificado em Maquiavel, de «estado» enquanto condição distintiva de um agrupamento de homens em hierarquia ou função. A evolução do uso do termo sugere seguir o aviso de Carl Schmitt, quando lembrou que o conceito de Estado remete a um «fenómeno histórico» específico e não ao fenómeno político concreto, testemunhado em todos os tempos e geografias.

3. O primeiro traço distintivo do conceito de Estado em relação às restantes formas de unidade política é a sua artificialidade, contrária a toda uma tradição de pensamento político que via no homem um animal naturalmente político e a cidade uma forma de comunidade natural. Aqui não interessa tanto se o Estado é de facto um artifício, mas sim que na sua forma mais articulada se concebe precisamente como um artifício – como uma obra humana. Esta artificialidade está patente nas teorias contratualistas que são a fonte intelectual do Estado moderno, e que fazem deste um produto da vontade humana. Não é um mero acaso que à imagem mitológica do Estado como «grande Leviatã» esteja associada a imagem secularizada do fiat originário – uma criação que já não é divina, mas exclusivamente humana. Tal como o conceito de soberania, indelevelmente ligado ao de Estado, também este último significou um passo na «autonomização» do domínio político face ao teológico, e neste processo a articulação teórica do Estado encontrou o seu contexto histórico: a Europa tardo-medieval, palco para incessantes conflitos religiosos e políticos, fruto do cisma protestante que multiplicou as interpretações subjectivas das Escrituras. A tarefa dos primeiros teorizadores do Estado foi precisamente a de ultrapassar esta condição permanente de conflito – poderíamos dizer «conflito natural», que apenas seria ultrapassado mediante uma solução artificial que se colocasse acima de todas as contendas. Daí o seu segundo traço distintivo: o seu objetivo primeiro, a garantia da ordem. O Estado surge como o instrumento dotado do poder unitário – da soberania – que vai imprimir a ordem num mundo desordenado.

4. O Estado, enquanto fenómeno histórico, corresponde ao momento em que o problema da ordem toma a primazia sobre todos os restantes problemas políticos. É neste sentido que a imagem do Estado adquire os traços de toda a sua artificialidade. O Estado surge como máquina, como um instrumento a cumprir uma função meramente técnica: assegurar a ordem perante a desordem. Para trás ficam todas as considerações teleológicas que animavam a tradição aristotélica da filosofia política, que encontravam na cidade o espaço para a concretização plena do ser humano, para a concretização de um determinado modelo do «melhor homem». Surge nesta figura do Estado-máquina a imagem tipicamente moderna do «Estado neutro», do Estado sem opinião, que apenas cumpre a função para a qual foi edificado pelo homem. A forma como o Estado surge enquanto artifício que se coloca acima de todas as contendas cristaliza-se na dicotomia típica da modernidade que divide o domínio público do privado: privado e público separam-se nitidamente porque o segundo se coloca sobre o primeiro, encarregando-se de regular os seus excessos; na separação público-privado encontramos os resquícios da dicotomia elementar natureza-artifício, e nela testemunhamos as principais aporias da modernidade (a oposição hegeliana entre cidadão e burguês constará na lista, ganhando uma intensidade particular com todas as suas consequências).

5. Obra da vontade humana, imagem de máquina com a função de assegurar a ordem, a ideia moderna de Estado abriu as portas a um horizonte alargado de possibilidades que, exceptuando algumas experiências históricas, partilham de um denominador comum: a ausência de toda a referência teleológica a um modo de concretização humana. Seja o Estado liberal, dedicado a proteger os direitos ou a «autonomia» individuais; o Estado social-democrata, que aliou a garantia da ordem com a construção da «sociedade de bem-estar»; sejam os sonhos marxistas de um «fim da História» no qual o Estado seria destroçado e, com ele, eliminado todo o conflito humano. Este mesmo Estado que resolveu o problema da ordem no mundo tardo-medieval e moderno vê-se a braços com uma dupla investida: por parte de órgãos supranacionais que neutralizam a sua capacidade de agir e tentam limitar o seu direito à soberania; por parte de unidades infra-políticas que vão desde blocos regionais a grandes empresas multinacionais que, se não minam o Estado internamente, adquirem externamente um poderio tal que ultrapassa frequentemente o de muitos Estados. É possível que este novo problema encaminhe o mundo para um novo tipo de organização do poder, do qual o mais exemplificativo historicamente seria o feudalismo; contudo, perante a desordem material e espiritual que se vive hoje, a necessidade de um agente de ordem é cada vez mais premente, e, até ver, não se encontrou nenhum substituto à altura do Estado.

Bibliografia:

• GOYARD-FABRE, Simone. L’État : figure moderne de la politique. Paris: Armand Colin, 1999.
• HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1990.
• HOBBES, Thomas. Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Common-Wealth Ecclesiastical and Civil. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
• SKINNER, Quentin. «A Genealogy of the modern State», em Proceedings of the British Academy, Volume 162 (2009), pp. 325.

• IBSEN NORONHA, Lições de História da Cultura Jurídica, Caminhos Romanos, Coimbra, 2024.

• SANTO TOMÁS de AQUINO, Tratado da Lei, Resjuridica, Porto, 1992.

• WILSON COIMBRA LENKE, A Lei e sua ordem a Deus segundo Santo Tomás de Aquino, Contra Errores, São Paulo, 2024.

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