- Dicionário: Gerra Justa
por Afonso Seixas Nunes, SJ, 2025
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As situações de guerra fizeram e fazem parte do nosso cenário existencial, mas é certamente um fenómeno que não pode escapar aos esforços interpretativos da moral, filosofia e do direito. A Teoria da Guerra Justa resulta do empenho intelectual em compreender as circunstâncias em que o recurso a guerra pode ser justificado e necessário (Jus ad Bellum) e em que condições uma guerra pode e deve ser combatida (Jus in Bello). Desta forma, a Teoria da Guerra Justa encontra-se entre dois extremos. Por um lado, o pacifismo como impossibilidade de encontrar qualquer justificação para o acto da guerra; por outro lado, no extremo oposto, a noção de que a guerra pertence a outro mundo que não o da moral ou ao da lei, mas simplesmente a ‘lei do mais forte’ (inter arma silent leges). A inumanidade da guerra e’ o resultado de uma humanidade colada sob pressão, para o qual não há outra consideração senão o realismo da guerra.
O pensamento actual sobre a guerra justa não é o resultado de um autor ou de um período específico no tempo, mas antes o fruto de séculos de reflexão. Em ordem a sistematizar o pensamento que desenhou a ‘guerra justa’ é necessário distinguir três períodos: 1. O Direito Natural e a Escolástica; 2. O Estado Moderno e da Raison d’Etat; 3. Entre o Legalismo e o Revisionismo.
O Direito Natural e a Escolástica
A Teoria da Guerra Justa recebeu o seu primeiro desenvolvimento sistemático no seio dos pensadores cristãos, muito embora já encontremos normas sobre a legitimidade da guerra na tradição Chinesa, Hindu, Islâmica e Judaica, anteriores à era Crista. Nos inícios do Cristianismo a guerra é visto como um mal absoluto, sem possibilidade qualquer tipo de justificação moral, e como tal pacifismo perdurou na Europa até ao Sec. III. No entanto, o declínio do Imperio Romano e a ameaça crescente dos povos do Norte, a Igreja sentiu a necessidade de reflectir sobre a possibilidade da ‘guerra’ mas sendo ‘justa’.
Os primeiros autores a destacar são Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. Partindo do Direito Natural, St Agostinho e St Tomas de Aquino descrevem as situações para uma guerra justa: autoridade legitima; defesa da honra do Estado; um acto vindicativo contra um Estado em falta; ou como um acto de defesa colectivo em favor de um dos aliados do Estado. São Tomas, na Questão 40 da Summa Theologiae, acresce que a guerra terá que servir uma ‘justa causa’ e ser combatida com ‘recta intenção’. No âmbito das ‘justas causas’, St Agostinho refere, por exemplo, que o Direito Natural nunca justificaria uma guerra de expansão do territorial ou uma guerra sem autorização da autoridade legitima.
No período da escolástica tardia, dois autores merecem particular destaque: Francisco De Vitoria, OP e Francisco Suarez, SJ. O primeiro autor desenvolve pela primeira vez um tratado sobre o problema da guerra entre Estados. Duas obras são publicadas em 1557, De Indis e de Iure Belli, sendo o aspecto a destacar a distinção entre ‘guerras defensivas’ e ‘guerras ofensivas’. À parte da guerra em ‘legitima defesa’, as ‘guerras ofensivas’ só podem ser justificadas em circunstâncias excepcionais.
No contexto do Séc. XVII, Hugo Grotius, considerado o pai do Direito Internacional contemporâneo, na obra De Jure Belli ac Pacis Libri Tres (1625), reforça a tradição anterior das causas legitimantes da guerra (legitima defesa; recuperação de propriedade; forma de castigo ou por obrigações não cumpridas por Estado), mas dá os primeiros passos para o que mais tarde vem a ser conhecido como Direito da Guerra ou Direito Internacional Humanitário, ao conceber regras relativas ao tratamento de prisioneiros de guerra e às regras da neutralidade.
O Estado Moderno e a Raison d’Etat
O segundo período tem início com a Contra-Reforma. Este período que perdurará até ao início do Séc. XX, caracteriza-se pelo abandono de qualquer reflexão critica sobre a legitimidade da guerra. Embora encontremos alguns autores que fazem a passagem dos princípios de direito natural para uma visão positivista (Van Pufendorf; Emerich Vattel), o recurso à guerra está agora ao serviço exclusivo da ‘raison d’Eat’ (razão do Estado). O expoente máximo desta corrente é Machiavelli com a obra O Principe, em que a soberania do Estado e a vontade do soberano são os valores a salvaguardar. A condução da guerra não deve conhecer limites senão os da ‘guerra total’, que mais não e do “um acto de violência com o objectivo de subjugar o inimigo a nossa vontade” (Carl von Clausewitz (1780-1831).
Entre o Legalismo e o Revisionismo
O terceiro período é marcado por uma nova e profunda reflexão critico-filosófica da Guerra Justa. As duas guerras mundiais deram lugar a fase do ‘legalismo’ e ‘institucionalização’ do direito à guerra. Com a Carta das Nações Unidas, as Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos Adicionais de 1977 estabeleceram-se vários dos princípios herdados da tradição escolástica. De acordo com a Carta das Nações Unidas, estabelece-se o princípio da proibição absoluta do recurso à guerra (Artigo 2/4), com duas excepções: direito à legitima defesa por parte do Estado (Art. 51); e autorização Conselho de Segurança das Nações Unidas ao abrigo do Capítulo VII.
É com base neste paradigma que nascem as duas correntes actuais de reflexão sobre a guerra justa: os tradicionalistas, de um lado, e os revisionistas, por outro.
Tradicionalistas, como Michael Walzer, partem do princípio da autoridade soberana do Estado em matéria do recurso a guerra. Baseado na doutrina do ‘contrato social’, o individuo delega para o Estado a autoridade sobre o recurso à guerra. Desta forma, o Estado pode recorrer à ‘legitima defesa’ sempre que for vítima de uma ‘guerra de agressão’ que ameace a integridade a soberania ou integridade territorial do Estado, ou usar de força em situações excepcionais de ‘intervenção humanitária’. No âmbito do direito humanitário, o tradicionalismo defende a igual dignidade dos combatentes independentemente da justiça que antecede o uso da forca, e moralidade do principio da distinção (alvos militares vs protecção da população civil) A causa justa está na legitimidade da lei internacional.
O revisionismo tem por intuito reconfigurar a teoria da Guerra Justa, assente não na centralidade do Estado mas na dignidade do individuo (reducionismo individualista). O revisionismo não distingue diferentes princípios morais no âmbito do Jus ad Bellum e Jus in Bello. Existe apenas um conjunto abstracto de princípios morais aplicativos à justiça de guerra. Desta forma, para os revisionistas a noção de ‘justa causa’ é fundamental. O revisionismo parte dos seguintes princípios:
Todas as pessoas são unidades de valor moral e todas as pessoas tem o mesmo valor moral.
Os direitos que os Estados possam ter só existem enquanto os Estados servem os direitos e interesses fundamentais dos seus nacionais.
Os Estados tem a obrigação fundamental de proteger os direitos fundamentais de todos os indivíduos, nacionais ou estrangeiros.
Em conclusão, para o revisionismo a inexistência de uma ‘causa justa’ por parte de um Estado conduz à ilegitimidade moral das suas forcas armadas. Quanto ao princípio da imunidade civil não tem aplicação, na medida em que a guerra só pode ser um conjunto de actos legítimos ou ilegítimos de legitima de indivíduos num esforço comum de legitima defesa.
Bibliografia:
Walzer, Michael Just and Unjust Wars. A Moral Argument with Historical Illustrations (4th Edition, Basic Books 1977).bra, mesmo, à possibilidade de uma “alma” e ao desenvolvimento, de igual forma, de uma espiritualidade do trabalho, a reflectir contemplativamente a dignidade transcendente do ser humano (para lá, também, do espaço cultural cristão onde tem as suas raízes mais profundas: l´homme qui dépasse infiniment l´homme (Pascal)). Que para tal considere integradamente o trabalho, e o seu quotidiano, em todas as suas dimensões, valorizando a sua verdade, a sua bondade e a sua beleza.
Bibliografia:
Fabre, Cecile Cosmopolitan Peace (Oxford University Press 2019);
Gill, Terry; Tibori-Szabo, The Use of Force and the International Legal System (Cambridge University Press 2024);
Sorabji, Richard David Rodin (eds), The Ethics of War. Shared Problems in Different Traditions (Ashgate 2007);
Frowe, Hellen The Ethics of War and Peace:An Introduction (2nd Edition, Routledge 2016);
Walzer, Michael Just and Unjust Wars. A Moral Argument with Historical Illustrations (4th Edition, Basic Books 1977).
- Revista Nº 55
- Dicionário: Contrato Social
por Francisco Carmo Garcia, 2024
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1. A ideia do «contrato social» é uma das principais ideias da história da filosofia política, com o seu lugar de destaque incontestável na teoria política moderna. Esta teoria surgiu como uma tentativa de resposta à questão política fundamental sobre a legitimidade do governo e a justificação da obediência através de uma abordagem particular. Através da ficção de um «contrato» que fundaria a ordem política, encontramos um mecanismo que permite fazer-nos questionar: será que os princípios que justificam a ordem política seriam princípios aos quais daríamos o nosso consentimento?
2. Ainda que tenha alcançado o destaque na era moderna, a ideia do contrato social remonta a debates antigos. A lógica do contratualismo pode ser encontrada na resposta de Gláucon a Sócrates, no livro II d’A República de Platão, quando aquele tenta desenvolver o argumento do sofista Trasímaco. Segundo a lógica do sofista, «quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescripções da lei» (359a). Nesta visão, a origem da justiça está num «acordo mútuo» entre os homens para evitar as consequências nefastas da prática da injustiça uns contra os outros – ou seja, num cálculo determinado pelo interesse próprio para minimizar o sofrimento de eventuais injustiças.
3. Este argumento haveria de ganhar uma nova vida no dealbar da modernidade. Coincidência ou não, foi Thomas Hobbes (o adversário sistemático da tradição platónica e aristotélica) o responsável pela reintrodução da ideia de contrato no debate intelectual. Para Hobbes, o homem era um sujeito de desejos que encontra a sua felicidade na concretização contínua desses desejos; dessa sua relação com os seus desejos e aversões decorrem as paixões humanas, cuja paixão mais poderosa é o medo da morte; a vida do homem é determinada pela presença desta paixão maior, que está mais patente precisamente numa condição onde não existam leis que ordenam aquela busca permanente pelos desejos que leva ao conflito inter-humano, e faz do maior desejo humano a preservação. A solução do contrato surge neste momento como solução para o conflito inter-humano: a única forma de os homens saírem da condição de conflitualidade decorrente da sua natureza é através de um pacto feito entre todos. Neste pacto cada homem abandona o seu direito natural a decidir sobre as condições da sua preservação, transferindo-o para uma «pessoa artificial» que se colocará sobre todos eles, a quem caberá assegurar a preservação de cada um e a ordem coletiva. Tal como na solução de Gláucon, também só após o pacto é que podemos então falar da existência de justiça e de lei – em suma, de ordem. E a legitimidade do soberano para se fazer obedecer está precisamente no consentimento das partes contratantes que acordaram ceder o seu direito natural e a transferi-lo para o soberano.
4. Nesta sua primeira formulação moderna a ideia de contrato social parece depender de um conjunto de pressupostos e criar um conjunto de corolários específicos. Desde logo, o pressuposto da realidade do indivíduo como «homem genérico»; ou seja, da abstracção do homem concreto numa figura genérica que partilha do mesmo aparato fisiológico, psicológico e moral, que antecede qualquer pertença comunitária. Este indivíduo, como figura genérica, será quem tomará parte no contrato originário. Depois, o contratualismo parece depender de um estádio pré-político onde se inserem estes indivíduos – a que se chamaria «estado de natureza» - antes do contrato social. Em terceiro, as teorias contratualistas fazem da comunidade política um artifício; ou seja, uma obra da vontade humana, uma «obra de arte» cujo artífice é o homem. Do mesmo modo que a comunidade política tem uma origem artificial, também a matéria da comunidade política apenas adquire uma existência política como resultado do mesmo artifício: o «povo» só existe como resultado do pacto que funda o Estado, sendo antes daquele nada mais do que um agregado desordenado de indivíduos. Um «povo» pode, como vemos em Rousseau, ser constituído como obra da vontade – postulado que teria consequências enormes na vida política moderna, com o movimento nacionalista. Estas teorias do contrato social seriam ainda determinantes para dar forma ao liberalismo que se tornou na principal ideologia política da modernidade: sendo o contrato que dá origem ao Estado uma transferência de direitos (das partes contratantes
para o soberano), então o contratualismo dá origem à ideia tipicamente liberal de que o Estado é edificado para proteger os direitos dos indivíduos; e, como podemos verificar plenamente em Locke, esta transferência de direitos delimita também o âmbito da acção do Estado, i.e. cria os limites à própria acção do Estado como protector dos direitos individuais, limites esses que não poderá passar sem violar o contrato que o fez nascer, conduzindo à possibilidade e à legitimação de uma «revolução» levada a cabo pelos governados.
5. Vimos que as teorias do contrato social fundamentam a existência do Estado no consentimento. De modo que a legitimidade do governante decorre de uma «autorização» conferida pelos governados. Assim, a lei (que é, nas teorias contratualistas, a manifestação da vontade soberana) justifica-se como emanada de um poder voluntariamente constituído. Daí o trabalho dos primeiros contratualistas modernos em harmonizar a vontade do soberano, manifestada nas suas leis, com a vontade individual (como Rousseau e a sua «vontade geral»), ou em vincular o poder soberano a clausulas limitadoras da sua acção, de forma a evitar abusos de poder, como foi o caso de Locke e, em grande medida, do constitucionalismo setecentista e oitocentista. Podemos, assim, identificar nas teorias do contrato social dois grandes princípios, ambos ligados cronologicamente à sua evolução: o fundamento da existência do Estado e da legitimidade do governante na vontade humana, no consentimento; e a crença de que a existência política pode ser criada ex nihilo, como resultado da deliberação humana. Foi contra esta crença, omnipresente no constitucionalismo setecentista, que um Joseph de Maistre afirmou que um dos grandes erros do seu século «foi acreditar que uma constituição política poderia ser escrita e criada a priori».
6. Alvo de crítica ao longo de grande parte do século XIX, o contratualismo acabaria por ficar fora de moda. No entanto, assentando que nem uma luva no individualismo contemporâneo e na sua atenção desmedida ao conceito de autonomia, a lógica contratualista regressou ao centro do debate na filosofia política pelas mãos de John Rawls e do seu Uma Teoria da Justiça, que justifica a sobreposição da justiça em relação ao bem no acordo dos indivíduos que
partilham a condição do «véu de invisibilidade». Robert Nozick trataria do regresso do conceito de estado de natureza no seu Anarquia, Estado e Utopia, e os economistas da «rational choice» fariam do cálculo do interesse próprio o determinante das escolhas colectivas. Assim, o liberalismo ideologicamente dominante no ocidente (nas suas várias versões, «clássico» ou «moderno», de esquerda ou de direita, «social» ou «económico», etc.) tomaria logicamente pelas suas mãos uma renovação do contratualismo. Em todas estas versões do contratualismo contemporâneo descobrimos o mesmo objetivo, partilhado com as teorias modernas do contrato social: justificar racionalmente uma ordem política e os seus princípios ordenadores, fora de qualquer fundamento externo ou transcendente à própria ordem (em suma, sem o recurso a uma ideia transcendente de «bem supremo» ou «fim último»).-nos de Moscovo!» (A Revolução da Ordem, p. 21).
Bibliografia:
HOBBES, Thomas. Leviathan, or Matter, Form, and Power a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. Edição de Richard Tuck. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
LOCKE, John. Dois Tratados do Governo Civil. Tradução de Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2006.
MORRIS, Christopher W. (Ed.). The Social Contract Theorists: Critical Essays on Hobbes, Locke and Rousseau. Lanham: Rowman & Littlefield, 1999.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Vítor Guerreiro. Lisboa: Edições 70, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat social. Paris: Garnier Frères, 1962.
- Dicionário: Multiculturalismo
por Patrícia Fernandes, 2025
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1. O multiculturalismo é um modelo de integração que propõe políticas públicas para responder ao fenómeno da multiculturalidade. Embora relacionados, os conceitos de multiculturalismo e multiculturalidade são distintos: dizer que uma sociedade é multicultural remete para a descrição factual da realidade e significa que ela inclui, no seu seio, várias culturas significativas (uma descrição que, considerando o modelo globalista atual, se revela adequada para quase todos os países ocidentais). Esta multiculturalidade pode ser originária (tendo sido o estado criado a partir dela, como aconteceu com o Canadá, Espanha ou Bélgica) ou derivada, em resultado de movimentos de imigração (o que aconteceu com a maioria dos países ocidentais). No caso português, a comunidade cigana tem sido tradicionalmente estudada como uma situação de multiculturalidade originária, enquanto os fluxos migratórios (em particular, os mais recentes) têm dado origem a situações de multiculturalidade derivada. O modelo para lidar com a multiculturalidade originária consistiu, em contexto liberal, na atribuição de direitos individuais universais, que garantiam o princípio de igualdade perante a lei e geravam o dever, para o estado, de tratar igualmente todos os cidadãos, sem discriminação fundada na cultura, religião ou etnia. O mesmo princípio seria aplicado à multiculturalidade derivada, de acordo com um modelo de integração assimilacionista: aqueles que chegavam a um novo país deveriam assimilar-se à cultura dominante e esbater a sua identidade por forma a manter a coesão do estado nacional. O exemplo tipicamente assimilacionista é o modelo francês, de cariz republicano, que estabelece políticas públicas que visam dissolver as diferenças culturais, em particular no domínio religioso de acordo com um rigoroso princípio de laicidade (os problemas resultantes deste modelo em França não serão abordados aqui).
2. O modelo assimilacionista foi o modelo de integração prevalecente até à década de 1970, momento a partir do qual o respeito pela diferença, pluralismo e diversidade passou a ser entendido como princípio fundacional das democracias liberais modernas. Este espírito progressista levou a que o modelo assimilacionista passasse a ser interpretado como uma política de afronta e opressão, na medida em que, ao invés de celebrar as diferenças culturais e garantir a defesa dessas identidades, promovia o seu apagamento em favor da cultura dominante. O novo ambiente intelectual de inclusão e identidade avançaria, então, com um novo modelo de integração: o multiculturalismo, desenvolvido no Canadá (Charles Taylor; cf. situação especial do Québec), que imprimiu duas alterações importantes nas políticas de integração. A primeira dessas alterações prende-se com o entendimento de igualdade, que já não residiria em direitos iguais e igual tratamento pelo estado, mas na defesa da diferença: o direito de ser tratado diferentemente em resultado das suas diferenças culturais. Nas palavras de Kenan Malik, em vez de direitos universais passamos a ter direitos diferenciais. A segunda alteração prende-se com o sujeito de direitos: na medida em que a identidade cultural tem uma dimensão fundamentalmente grupal, aqueles direitos diferenciais passam a ser atribuídos ao grupo ou ao indivíduo pela pertença a esse grupo. Como estas alterações prescindem do princípio liberal fundamental de direitos individuais universais, o multiculturalismo parece afastar-se da tradição do liberalismo filosófico – um posicionamento que alguns autores assumem explicitamente (Iris Marion Young), embora outros tentem fazer a quadratura do círculo com a defesa de um multiculturalismo de base liberal (Will Kymlicka).
3. Como política pública, o multiculturalismo estabelece direitos culturais e cria políticas de diferença, que podem passar pela concessão de direitos especiais, isenções legais, tratamentos preferenciais ou apoios estatais a esses grupos culturais. E revela-se particularmente relevante no domínio escolar, podendo traduzir-se em adaptações curriculares ou na alteração da língua usada nas escolas (enquanto o modelo assimilacionista defende o reforço do currículo e da língua oficiais, com apoio específico aos alunos referenciados). O exemplo europeu tipicamente apresentado de modelo multiculturalista é o aplicado na Grã-Bretanha, onde o estado é visto como um meio para promover e proteger as diferenças culturais, ao invés de esbatê-las.
4. Meio século após terem sido adotadas as primeiras políticas multiculturalistas, é já possível fazer um balanço. Por um lado, o multiculturalismo apresenta a vantagem de ter colocado em cima da mesa, contra as visões mais globalistas, a importância da identidade cultural e o modo como o contexto cultural é determinante na nossa forma de interpretar e lidar com o mundo – repetindo, na verdade, a velha oposição entre liberais e românticos. Por outro lado, são muitas as dificuldades teóricas que resultam deste modelo e que se traduzem em problemas práticos – ao ponto de alguns autores falarem hoje em interculturalismo como modelo alternativo ou se aventar, no domínio filosófico, a hipótese de um modelo liberal antimulticulturalista, como faz João Cardoso Rosas entre nós. Vejamos que problemas são esses. O primeiro conjunto de problemas resulta do facto de o multiculturalismo pôr em causa pilares fundamentais das sociedades liberais, como o princípio da universalidade e igualdade da lei: de facto, o entusiasmo multiculturalista pela diferença fratura o tecido social quando põe em causa a ideia fundamental de que a lei se aplica igualmente a todos os cidadãos. A título de exemplo, pensemos na chamada prova cultural (“cultural defense”), a que um arguido poderá recorrer no âmbito do processo penal para justificar o seu comportamento. Outro princípio liberal que é igualmente desafiado pelo modelo multiculturalista é o princípio da liberdade de expressão, como o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, relativo ao caso E.S. v. Austria, de 25 de outubro de 2018, revela: a limitação do discurso foi aqui justificada com a exigência de respeito pelas culturas minoritárias. Um segundo conjunto de problemas resulta do facto de o multiculturalismo promover a essencialização das identidades que visa proteger: embora os seus defensores celebrem a diversidade cultural das sociedades, não aplicam o mesmo raciocínio no interior dos próprios grupos culturais, pelo que acabam por essencializar uma identidade, que se manifestaria, de igual modo e de forma estática, por todos os membros do grupo. Esta consideração essencialista da cultura, para além de ignorar a mudança cultural e a liberdade e a identidade individuais, tende a perpetuar tratamentos desiguais dentro do grupo, como Susan Moller Okin chama a atenção no popular artigo “Is multiculturalism bad for women?”. A situação das mulheres tem sido especialmente relevante nesta discussão, em particular no contexto da institucionalização dos polémicos Sharia Councils, em Inglaterra. Um último grupo de problemas resulta da dinâmica subjacente às políticas multiculturalistas, que se revelam muito mais fomentadoras de identidade do que protetoras de identidade. Essa dinâmica decorre do facto de estas políticas atribuírem ao estado um papel intervencionista, nomeadamente com a atribuição de benefícios, o que força os grupos a identificarem-se culturalmente e os indivíduos a reforçarem uma identidade cultural, que até podia estar em processo de remissão. Estes incentivos acabam por conduzir a divisões artificiais dentro da sociedade, que depois se traduzem em conflitos entre grupos. Refletindo a partir da sua própria experiência, Kenan Malik defende que não foram as comunidades minoritárias a exigir políticas multiculturalistas; antes foram essas políticas a moldar, pelo menos em parte, essas comunidades culturais. Embora Malik não o refira, a sua crítica revela uma constante fragilidade democrática na institucionalização das políticas multiculturalistas: é que elas são quase sempre impostas de cima para baixo, isto é, forçadas pelas elites académicas e políticas sem discussão pública e democrática junto da população.
5. Esta última fragilidade é agravada por um outro aspeto particularmente relevante em tempos de crise democrática: um dos argumentos apresentados em favor do multiculturalismo e da sua defesa da diferença remete para a ideia de que a multiculturalidade foi historicamente a regra entre as sociedades europeias, que foram sempre muito menos homogéneas do que as atuais. Embora o caso português constitua uma exceção, a maioria das nações europeias teve, de facto, de ser politicamente construída, nomeadamente em termos linguísticos e religiosos. Mas este argumento omite um aspeto fundamental: é que sem essa homogeneização cultural não teríamos os regimes democráticos liberais que hoje consideramos uma conquista civilizacional do ocidente. De facto, as democracias modernas só foram possíveis após um longo processo de construção de comunidades imaginadas, para usar a expressão de Benedict Anderson, até à formação de uma identidade nacional (David Miller). Ao contrário do que aquele argumento parece indicar, a lição que a história nos dá é a de que a diversidade cultural conviveu sempre com regimes de base imperial ou monarquias fortes; já o regime democrático, criado numa pequena e homogénea polis grega, exige um nível forte de homogeneidade para ser possível escolher um projeto coletivo comum. A multiculturalidade e, por inerência, o multiculturalismo parecem, neste sentido, levantar particulares dificuldades de conciliação com a democracia.
Bibliografia:
- Charles Taylor (et al.), Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994.
- Will Kymlicka, Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, Clarendon Press, 1995.
- Iris Marion Young, Justice and the politics of difference, Princeton, Princeton University Press, 1990.
- Kenan Malik, Multiculturalism and its discontents, London/New York/Calcutta, Seagull Books, 2013.
- Susan Moller Okin (et al.), Is Multiculturalism Bad for Women?, Princeton, Princeton University Press, 1999.
- David Miller, Citizenship and National Identity, Cambridge, Polity Press, 2000.
- João Cardoso Rosas, “Sociedade multicultural: conceitos e modelos”, in Relações Internacionais, Junho, 2007
- Dicionário: Ditadura
por Alexandre Franco de Sá, 2024
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1. A ditadura é uma magistratura republicana com origem em Roma. Na República Romana, o ditador é um magistrado extraordinário encarregado de concentrar o poder por um espaço de tempo limitado (não superior a seis meses) e com o fim de executar uma tarefa específica. Duplamente limitado pela exígua duração do seu mandato e pela finalidade determinada que lhe estaria pressuposta, o ditador dispunha de um poder concentrado que, em circunstâncias ordinárias, estaria disperso por vários órgãos e instâncias. Assim, o fundamento da ditadura consistia na possibilidade de proporcionar à República uma capacidade de decidir e agir rapidamente em circunstâncias excepcionais que exigiriam a sua defesa. Em tais circunstâncias, o exercício do poder executivo não poderia estar sujeito nem às limitações de autoridade dos órgãos colegiais, como acontecia com os cônsules, nem ao veto dos tribunos da plebe, nem aos apelos à participação popular (provocatio ad populum). Nomeado pelos cônsules, o ditador podia deliberar e agir sem consultar ninguém, fazendo o que entendesse necessário à salvação da República, e punir sem que houvesse lugar a recurso. Na sua actuação, não encontrava entraves normativos: diante do princípio supremo da salvação da República (salus populi), a observação das leis e procedimentos normais poderia ficar suspensa. No entanto, tal não significava que a ditadura pudesse transformar a República, destituindo o senado ou as autoridades consulares e substituindo leis antigas por uma nova ordem. Pelo contrário, tratar-se-ia de uma magistratura extraordinária, aplicada em momentos de excepcional gravidade, que, nessa medida, não se poderia substituir à normalidade nem normalizar a excepção. Daí que, por exemplo, Maquiavel, nas suas reflexões sobre o ditador romano, conclua que «somados o breve tempo da sua ditadura, a limitada autoridade que detinha e o não estar o povo romano corrompido, era impossível que ele extravasasse os seus limites e prejudicasse a cidade; e por experiência se vê que sempre ajudou» (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Livro I, 34). A limitação temporal e o carácter excepcional são essencialmente constitutivos da ditadura enquanto magistratura republicana. Por isso, a atribuição a Júlio César, em 44 a.C., do cargo de ditador vitalício acaba por ser interpretada como uma tentativa de transformação da República em Monarquia, determinando a conjura republicana que tem como desfecho o seu assassínio no Senado.
2. Apesar da sua origem republicana, a ditadura não se liga a um regimen ou a uma forma de governo específico. Trata-se antes de um modo de exercer o poder em virtude do que as circunstâncias possam exigir. A partir do século XVI, no seguimento da circunscrição do conceito de soberania, surge a figura de um «comissário governativo». No contexto da teoria do Estado moderno, o governo decorre da soberania, mas não se pode confundir com ela. Governar consiste em executar a vontade do soberano. Assim, desenvolvendo-se a figura do príncipe na concepção do monarca soberano, o «comissário governativo» aparece como o lugar-tenente do rei, encarregado de executar a sua vontade, representando-o e agindo em nome dele. O governante como comissário ou delegado do soberano, que exerce o poder em sua representação, permite desenhar a figura daquilo a que Carl Schmitt, no seu livro A Ditadura (1921), designou como «ditadura comissária». Agindo em nome do soberano, e da ordem por ele incorporada, o ditador comissário está vinculado a esta mesma ordem. Em nome dela, está autorizado a suspender excepcionalmente, quando as circunstâncias o impuserem, as normas que poderiam obstar à sua acção. É aquilo a que Schmitt chama «estado de excepção». No estado de excepção, subjacente à ditadura comissária, o vínculo às normas é suspenso em virtude de um vínculo primordial à ordem. É a reposição da ordem, e a defesa da soberania, que permite restabelecer a situação normal em que a vigência das normas pode ter lugar. Assim, numa ditadura comissária, tendo em conta a sua ligação à soberania, as normas jurídicas assentes nesta mesma soberania não desaparecem nem deixam de estar presentes. Elas estão presentes, mas estão-no como se estivessem ausentes. Ou seja, numa ditadura comissária, a suspensão das normas, e a intervenção directa do ditador em nome da soberania e da ultima ratio da salvação do Estado, é sempre entendida como uma reposição da situação de normalidade que permite às normas suspensas voltarem a vigorar.
3. O conceito de soberania popular, introduzido por Rousseau em Do Contrato Social (1762), e o uso deste conceito no contexto revolucionário francês, a partir de 1789, conduziu a uma nova representação da ditadura. Rousseau afirmara que, sendo o povo soberano, a soberania não poderia ser representada. Ninguém poderia representar a sua vontade – a vontade geral – e o governo não seria senão o seu delegado. Um Rei que se entendesse como representante soberano do povo, identificando a sua vontade particular com a vontade desse mesmo povo, seria um tirano usurpador. Assim, a partir da Revolução, tornava-se necessário um novo governo, entendido não como representante mas como delegado ou comissário da vontade popular. A República Francesa, estabelecida no decurso do poder jacobino e da execução de Luís XVI, institui esse novo governo, mediante a constituição do Comité de salut public, a 6 de Abril de 1793. Na concepção revolucionária de homens como Robespierre ou Saint-Just, o povo soberano exerce directamente a sua vontade através do governo revolucionário e o comité revolucionário é, sem qualquer mediação representativa, o exercício da vontade soberana do povo. Assim, a Revolução Francesa estabelece uma nova forma de ditadura. Já não se trata de uma ditadura comissária, que exerceria o poder em nome de um soberano. É agora a própria ditadura que é ela mesma soberana. Ao distingui-la no seu conceito, Carl Schmitt define a ditadura soberana como «a comissão de acção incondicionada de um pouvoir constituant». A evocação do poder constituinte do povo, definido por Sieyès, permite compreender o fundamento do conceito de ditadura soberana. A concepção de que o povo é soberano enquanto poder constituinte desemboca na ideia de que a soberania do povo só se exerce efectivamente numa ordem constituída (ou numa constituição). É, portanto, a ideia de construção no futuro de uma nova ordem revolucionária, e a ideia de que a Revolução antecipa esse futuro, que está subjacente ao conceito de ditadura soberana. Se o ditador comissário actua em virtude do vínculo a uma ordem passada, e encontra na concepção dessa ordem um limite ao exercício do seu poder, os revolucionários jacobinos exercem uma ditadura soberana sobre o povo sem qualquer vínculo ao seu passado, costumes e tradições. Ou seja, a ditadura soberana exerce-se não em nome de uma ordem passada a respeitar, proteger ou repor, mas em nome de um futuro que os revolucionários, actuando sem quaisquer limites como o seu poder criador, pretendem exclusivamente representar.
4. A confrontação com a Revolução, e com o estabelecimento da ditadura soberana que ela anuncia, leva, sobretudo a partir de 1848, ao surgimento de apologias da ditadura entendidas como invocações de um exercício autoritário do poder em nome do restabelecimento da autoridade e da ordem. Tratava-se, portanto, de apelar ao carácter comissarial da ditadura, invocando-o para se contrapor à violência revolucionária da ditadura soberana. Apelar à ditadura, como fazia Donoso Cortés num discurso famoso de 1849 nas Cortes espanholas, significaria invocar a «ditadura do sabre» – a ditadura do governo, da autoridade e da ordem que vem de cima – contra a «ditadura da navalha», concretizada no alastrar da insurreição e na disseminação da violência que vem de baixo. A figura do ditador assim invocado é, em geral, a de um chefe militar que, como o General Cavaignac em França ou o General Narváez em Espanha, usaria as forças armadas para pôr termo a tumultos e insurreições. Pode, por isso, chamar-se cesarismo a estas alusões à ditadura. Diante dos apelos à ditadura cesarista, o socialismo formará, a partir desses anos, o conceito de «ditadura do proletariado». Para Marx, que em 1848 publica com Engels o Manifesto do Partido Comunista, a transição da sociedade burguesa para a sociedade comunista não poderia deixar de se dar por meios violentos, implicando a tomada do poder e o seu exercício por uma «ditadura revolucionária do proletariado». Em 1875, na sua Crítica ao Programa de Gotha, em que, no contexto do projecto de um partido socialista unificado, contesta a Lassalle o propósito de integrar os socialistas no recentemente formado Império Alemão, Marx terá oportunidade de reforçar a ideia de que a ditadura do proletariado seria indispensável na realização do socialismo. É a imagem de uma ditadura revolucionária comunista, alimentada pela experiência da revolução bolchevista na Rússia a partir de 1917, que explica o aparecimento das ditaduras que marcaram a Europa no século XX. Estas entendiam-se, em geral, como a formação de governos autoritários limitados pela referência à ordem. Nestes governos, a abertura de um estado de excepção, se tal fosse necessário, deveria corresponder já não a um simples exercício cesarista do poder, mas a uma autorização constitucional para que o Presidente, ou um supremo magistrado, pudesse actuar em ditadura. Por exemplo, na Alemanha da República de Weimar, juristas como Carl Schmitt e Erwin Jacobi entendem o art. 48º da Constituição de 1919 como a abertura da possibilidade de, por via constitucional, decidir uma «ditadura do Presidente do Reich». Esta ditadura era entendida, naturalmente, em sentido comissarial. Assim, em países como Espanha e Portugal, o cesarismo da ditadura militar evolui para o aparecimento de novos Estados de cariz autoritário. Para os seus defensores, e para aqueles que invocavam como seu modelo o fascismo italiano,
chegado ao poder em 1922, tais Estados teriam na sua base uma ditadura comissária contra o projecto da ditadura soberana; uma «revolução da ordem» contra a ameaça comunista da Revolução e da sua «ditadura revolucionária do proletariado». Tratava-se de constituir um Estado que tivesse instrumentos, na sua ordem constitucional, para responder ao projecto comunista de tomar o poder e derrubar o próprio Estado, substituindo-o pela ditadura soberana do Partido. Como escrevia João Ameal em 1932, nas vésperas de, com a Constituição de 1933, a Ditadura Militar portuguesa se transformar no Estado Novo: «Olhemos atentamente para Roma – se queremos salvar-nos de Moscovo!» (A Revolução da Ordem, p. 21).
Bibliografia:
Bainville, Jacques. Les dictateurs. Paris: Denoël et Steele, 1935.
Donoso Cortés, Juan. Discurso sobre a Ditadura. Lisboa: Crítica XXI, 2023.
Maquiavel, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. trad., int. e notas de André Santos Campos e Giovanni Damele. Lisboa: Edições 70, 2024.
Saint-Bonnet, François. L’état d’exception. Paris: PUF, 2001.
Sartori, Giovanni. “Appunti per una teoria generale della dittatura”. in Theory and Politics: Festschrift zum 70. Geburtstag für Carl Joachim Friedrich (ed. Klaus von Beyme). Haag: Martinus Nijhoff, 1971, pp. 456-485.
Schmitt, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994.