por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
No período da filosofia grega, a pessoa era a pessoa dramatúrgica, já que a persona identificava as máscaras (prosopon) que se colocavam diante dos olhos para esconder o rosto, no teatro. Seria apenas na Idade Média, para solucionar questões teológicas, cristológicas, trinitárias e para a solução de heresias, que o conceito surgiria. O primeiro problema que, nos primeiros anos do cristianismo, a patrística teve de resolver foi o da Trindade – um Deus uno e trino. A explicação foi encontrada através da diferença entre natureza e pessoa. Em Deus, há uma só natureza, mas três Pessoas diferentes. O conceito de pessoa surge como um conceito relacional, permitindo que a pessoa humana fosse compreendida a esta luz. O homem, porque feito à imagem e semelhança de Deus, é, tal como Ele, Pessoa. E Pessoa, em Deus, significa relação. Com Santo Agostinho, porém, não se dá uma total transferência da pessoalidade para o seio da humanidade. Projetando as Pessoas divinas para o interior da pessoa humana, para Santo Agostinho, a Trindade fica encerrada no interior de Deus, que se torna, exteriormente, um simples Eu (Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, Communio – International Catholic Review, 17/3, 1990, 439 s.). Donde se acentuam a individualidade e singularidade como notas do conceito de pessoa, aparecendo, como integrantes do conceito, as notas da inteligência, da memória e da vontade. Denotava-se no santo a influência da Escola de Antioquia, para a qual a pessoa surgia como um conceito de natureza concreta, ou seja, determinada pelas suas propriedades concretas. Já para a Escola de Alexandria, da qual faziam parte nomes como Apolinário de Laodiceia, Santo Atanásio, Cirilo de Alexandria, a pessoa foi compreendida segundo um estatuto ontológico. Para Boécio, a pessoa é substância individual de natureza racional, sendo este o conceito que seria aprofundado por São Tomás de Aquino (Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke: integração entre a tradição metafísica de pessoa e a tradição fenomenológica contemporânea sob a ótica de Tomás de Aquino, Brasília, 2014, 35). Para o pensador, a substância individual que se coloca na definição de pessoa implica uma substância completa, que subsiste por si, separadamente dos demais (subsisten in rationalis natura), o que permitiria, igualmente, explicar que Cristo tivesse duas naturezas e fosse uma só pessoa (divina). A ideia da existência de duas naturezas numa só pessoa conduz, igualmente, a uma ideia relacional. Como explica Joseph Ratzinger, “é da natureza do espírito colocar-se em relação”. Ao ser com os outros, “o espírito está a ser ele próprio”, porque “apenas quem se nega a si pode encontrar-se”. Em Cristo, ser com os outros é realizar-se de forma radical. Ser com os outros não cancela o ser consigo mesmo, mas permite que ele se realize totalmente, continua Bento XVI (Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, 451). O erro de São Tomás de Aquino foi ter perspetivado o aspeto relacional e autocomunicacional apenas à luz da explicação da Trindade e já não da natureza de Cristo, porque com isto deixou na sombra esta dimensão fundamental da noção de pessoa. A teologia católica posterior haveria, porém, de tentar superar este lapso (Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke , 37). Norris Clarke reafirma a ideia tomista da pessoa humana como um ser de natureza intelectual e um espírito incorporado (W. Norris Clarke, Person and Being, The Aquinas Lecture, Marquette University Press, 2004, 32 s.), mas procura superar a perda de sentido relacional e comunicacional.
O ser humano apresentaria, assim, três principais dimensões: pessoa como auto-possuidora (cada homem existe, primeiramente, como unidade-identidade-totalidade no meio da comunidade de existentes, donde resulta o seu autodomínio, a sua autoconsciência, a sua autodeterminação, a permitir que o homem se afirme como responsável); pessoa como auto-comunicativa (a vincar o seu aspeto relacional, na medida em que “todo o ser está inserido nessa dialética interminável do interior e do exterior, o em-si e o para-os-outros”, uma “síntese entre substancialidade e relacionalidade”, de tal modo que só através da mediação do outro o ser humano pode descobrir-se como único e auto-consciente); e pessoa como auto-transcendente (porque, ao sair de si para se dirigir ao outro, numa relação de amor e de cuidado, o homem transcende-se, deixando de lado o egocentrismo natural) [Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke , 38-42]. Mas, a relacionalidade a que assim chegamos, por influência dos pensadores cristãos, anda longe do sentido fenomenológico do diálogo. Não só a fenomenologia não foi capaz de compreender a dimensão de substancialidade, como acaba por, na sua redução fenomenológica e eidética, olhar para a relação como puro diálogo. Ora, como bem explicita Joseph Ratzinger, a “relatividade em relação aos outros” que constitui a pessoa humana não se traduz numa mera ideia dialógica, mas está em causa o Nós (Pai, Filho e Espírito). Ou seja, não há um puro Eu, nem um puro Tu, mas um integrador Nós. E é exatamente o Nós divino que prepara o nós humano (Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, 458). Na transposição para o plano humano, a pessoa passa a ser entendida, durante toda a Idade Média, como um membro de uma comunidade, ordenada por Deus, a Quem deve obediência, com consequências diretas do ponto de vista da fundamentação do direito.
Seria o iluminismo racionalista a não deixar incólume esta compreensão que o homem tinha de si mesmo. A primazia da subjetivação associada à exaltação da razão, entendida à boa maneira cartesiana em termos puramente dedutivos, enfatizaria no homem a sua dimensão psíquica, a sua consciência. A precisão do raciocínio matemático conduziria a um empobrecimento da inteligência globalmente considerada e condenaria o homem ao fechamento de si mesmo, ao abstrato solipsismo. Mas, se a época moderna forjou o homem indivíduo centrado na sua racionalidade cartesiana, variadas correntes filosóficas posteriores mostraram a insuficiência da visão alicerçada na autista consideração da inteligência entendida como possibilidade de cálculo e de gestão de informação e na compreensão do homem como pura subjetividade, entre as quais o existencialismo, quer de matriz ateia, quer se matriz cristã, bem como o pensamento fenomenologista. A alteridade intersubjetiva a que assim fazemos referência não é exclusiva do existencialismo, do personalismo ou do pensamento fenomenológico. Ao invés, está presente (e assume centralidade) no seio da antropologia cristã, que a compreende de forma enriquecida quando comparada com o que resulta do eu fenomenológico. O eu fenomenológico, se bem que dialógico, levando à autotranscendência pela necessária relação com o outro, acaba por esquecer a importante dimensão de substancialidade que caracteriza o ser humano. Ora, parece ser nessa dimensão substancial, porque o espírito humano reflete o conceito de Deus, que, por um lado, reside a historicidade da pessoa, ou seja, o seu dinamismo como ser que tende a algo, e, por outro lado, assenta a dimensão relacional, não meramente dialógica, mas auto-transcendente, porque o homem se dirige ao outro para amar e cuidar, procurando o seu bem. A pessoa surge, portanto, não como uma categoria ontológica, mas ético-axiológica. Podendo o homem degradar-se com as suas escolhas, perdendo o sentido da autotranscendência, da autocomunicação e da autopossessão, então, teremos de concluir que não pode ser na mera ontologia que apenas atenta nas suas características essenciais, sem ligação à razão fundadora e criadora de todas elas, que nos comunica um quadro valorativo específico, que podemos encontrar a raiz da sua dignidade, mas na dimensão axiológica que enforma a sua pessoalidade assim compreendida.
Bibliografia:
- Joseph Ratzinger, “Concerning the notion of person in theology”, Communio – International Catholic Review, 17/3, 1990, 439 s.
- Manuel Porto Cruz, O conceito de pessoa por W. Norris Clarke: integração entre a tradição metafísica de pessoa e a tradição fenomenológica contemporânea sob a ótica de Tomás de Aquino, Brasília, 2014, 10 s.
- W. Norris Clarke, “Person, Being and St. Thomas”, Communio –International Catholic Review, 19, 1992, 601 s.
- W. Norris Clarke, Person and Being, The Aquinas Lecture, Marquette University Press, 2004