por Mafalda Miranda Barbosa, 2024

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1. Em 2006, com a Lei nº32/2006, de 26 de julho, o legislador português resolveu disciplinar o recurso às técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), entre as quais se contava a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a injeção intracitoplasmática de espermatozoides, a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos, o diagnóstico genético pré-implantação. Fê-lo, com todos os problemas ético-jurídicos daí advenientes (v.g. a questão dos embriões excedentários), assumindo como paradigma uma ideia de subsidiariedade. As técnicas de PMA surgem, no quadro legal, como um método subsidiário, ao qual se pode recorrer em caso de infertilidade ou doença grave. Com as subsequentes alterações à disciplina, embora o artigo 4º/1 continue a afirmar que as técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação, e o artigo 4º/2 refira que “a utilização de técnicas de PMA só pode verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade ou ainda, sendo caso disso, para tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doença de origem genética, infeciosa ou outras”, parece operar-se uma mutação no paradigma. Com efeito, o artigo 4º/3 passa a dispor que as técnicas de PMA podem ser utilizadas por todas as mulheres independentemente de diagnóstico de infertilidade. Acresce que, se outrora os beneficiários apenas podiam ser os casais heterossexuais inférteis, agora passam a poder recorrer às referidas técnicas quer os casais heterossexuais, quer os “casais” de mulheres, num caso e noutro, quer se encontrem efetivamente casados, quer vivam em união de facto, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil. De certo modo, o legislador parece ter desenhado um modelo de acesso às técnicas de PMA do qual resulta (ou parece resultar) um direito reprodutivo de cada cidadão, o que acaba por convocar problemas que tocam nos fundamentos do próprio direito. Estas considerações tornam-se particularmente pertinentes se atentarmos no fenómeno da maternidade de substituição (gestação de substituição). Outrora rejeitado em termos normativos pelo legislador, é agora possível recorrer ao procedimento em face do disposto no artigo 8º do citado diploma. Embora com limitações, admite-se que seja celebrado um acordo mediante o qual uma mulher se dispõe a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. A maternidade, antes exclusivamente assente em factos naturais, passa a estar assim dependente, em todos os casos em que se recorra a uma “barriga de aluguer”, de uma relação contratual, necessariamente gratuita, em face da proibição legal de contaminação do contrato em que o fenómeno assenta com a nota de onerosidade.
Optando inicialmente por um modelo de proibição absoluta, o nosso legislador comutou-o recentemente por um sistema de proibição da maternidade de substituição de índole comercial. Significa isto, a contrario, que passa a ser permitida a maternidade de substituição de índole gratuita, motivada, presume-se, por uma intenção altruísta e benemérita. É, então, possível que uma mulher leve a cabo uma gravidez, por conta de outrem, comprometendo-se a entregar a criança após o parto e renunciando a todos os poderes e deveres inerentes à maternidade. Em nenhuma situação esta mulher pode ser dadora do ovócito que será utilizado no procedimento em que vai participar. Do mesmo modo, não pode ser cobrada qualquer compensação monetária ou ser efetuada qualquer doação à gestante de substituição, com exceção do valor que permita cobrir as despesas correntes de acompanhamento da saúde da grávida, incluindo as despesas com deslocações. 

2. O procedimento e o que ele envolve implicam, necessariamente, uma instrumentalização de outra mulher e uma objetivação/coisificação do filho, a quem, a priori, mesmo antes do nascimento são coartados determinados direitos. Significa isto que o recurso à maternidade de substituição, sendo legalmente possível, não se pode assumir como projeção normativa de um direito de personalidade fundamental da mulher beneficiária. Ainda que o recurso à mesma possa corresponder a uma ambição legítima por parte da mulher que quer ter um filho – o que nem sempre se verificará, na prática –, o ordenamento jurídico não pode permitir que se lance mão de qualquer expediente, independentemente das consequências desdignificantes para o próprio ou para terceiros, para se alcançar um objetivo. Se fundadamente chegámos à conclusão de que não é possível invocar, da parte da mãe beneficiária, um direito à autodeterminação reprodutiva que legitime, sem mais, o recurso à maternidade de substituição, haveremos também de considerar que não é possível invocar a este propósito quer o direito a constituir família, quer, muito menos, um direito à igualdade entre os cidadãos que postule a ideia de que o Estado não pode discriminar uma pessoa, permitindo a outras que se reproduzam e impedindo o acesso à maternidade de substituição. Considerando-se a mãe beneficiária, haveremos de concluir que o seu papel no quadro de um processo de maternidade de substituição não corresponde ao exercício de um direito, muito menos ao exercício de um direito absoluto no sentido de para ele não se reconhecer qualquer limite. 

3. Quanto à mãe gestante, ao limitar-se a fornecer o útero para gerar um filho alheio, relativamente ao qual prescinde, antecipadamente, de todos os direitos associados à maternidade, aquela vê o seu estatuto reduzido ao de um mero instrumento de procriação, cujo estilo de vida, alimentação, entre outros aspetos do quotidiano passam a ser, direta ou indiretamente, controlados por terceiros que têm interesse no nascimento de um filho saudável. A maternidade deixa de ser vista como um dom para passar a ser um produto negociável no âmbito de um contrato, ainda que gratuito. Com isto, é a dignidade da mulher, amputada de uma dimensão do seu ser, que só é integralmente experienciado na abertura relacional à própria criação, que é posta em causa. 

4. O filho nascido no quadro de um procedimento de maternidade de substituição acaba por ver os seus direitos preteridos, alguns dos quais postos em causa mesmo antes do nascimento. Desde logo, não se asseguram, com a maternidade de substituição, as condições plenas para um adequado desenvolvimento da criança, por não estar suficientemente provado qual o impacto que a ligação entre o feto e a mulher gestante terá no futuro, pondo-se em causa o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da criança que irá nascer. O filho-coisa é despido da dignidade de pessoa, também porque se preveem, na regulamentação do procedimento e nos contratos modelo elaborados pelo conselho nacional, regras no tocante à revogação unilateral do contrato de gestação de substituição, que pode concretizar-se mediante a prática de um aborto. Ou seja, é tratado como o objeto de um negócio, com total desconsideração da sua dimensão de pessoalidade. 

Bibliografia:

  • Mafalda Miranda Barbosa/Tomás Prieto Álvarez, O Direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Sentido e limites, Gestlegal, 2020
  • Mafalda Miranda Barbosa, A dignidade da pessoa. A fundamentação do jurídico, a (re)compreensão do direito à luz do dever e o bloqueio da simples aspiração, Gestlegal, 2024
  • Guilherme de Oliveira, Mãe há só uma/duas (contrato de gestação), Coimbra, Coimbra Editora, 2012
  • Dário Moura Vicente, “Maternidade de substituição e reconhecimento internacional”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 2012
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