por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. A liberdade é um valor político fundamental. E é assim porque a liberdade é constitutiva da própria pessoa humana e condição necessária para o agir moral (embora não suficiente para agir bem) e, portanto, afim da dignidade humana. Só têm valor moral os “actos humanos”: as acções livres, aquelas que são objecto de escolha ou aceitação, deliberadas, conscientes, intencionais, racionalmente motivadas. A pessoa humana é, de certo modo, autora do seu próprio ser, tarefa e missão para si mesma, e responsável por si mesma. Em suma, a liberdade toca o nível mais profundo da pessoa.
2. Tudo isto pressupõe a convicção fundada de que as pessoas são mesmo capazes de liberdade, autodeterminação e intencionalidade ou, por outras palavras, capazes de livre arbítrio: daquilo que se chama liberdade “psicológica”. Além disso, pressupõe que a pessoa humana seja capaz de “liberdade moral”, ou seja, de actuar livremente bem, de se auto-finalizar para o seu verdadeiro bem (ou fim), o que consiste também em ser capaz de se libertar do mal moral.
3. Numa perspectiva mais propriamente política, Benjamin Constant estabeleceu uma distinção, que se tornou famosa, entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”. A primeira estava associada ao autogoverno das comunidades políticas da antiguidade clássica, e manifestava-se na faculdade de exercer colectivamente, e directamente, funções de soberania: deliberar – no espaço público – sobre os assuntos públicos, sobre tratados e alianças, sobre a guerra e a paz; votar as leis; examinar as contas; convocar, escrutinar, julgar e condenar (ou absolver) os magistrados, etc. Diferentemente, a “liberdade dos modernos” referia-se sobretudo às liberdades individuais privadas: de opinião, expressão, culto, circulação, reunião, comércio, disposição de propriedade, etc. Esta distinção mantem-se relevante para a actualidade, porquanto realça dois modos de pensar sobre a liberdade política (e mesmo dois modos de pensar a política), em várias dimensões: entre uma “liberdade republicana”, mais comunitarista e cívica, e mais preocupada com quem exerce o poder; e uma “liberdade liberal”, mais individualista, mais afecta à autonomia e independência pessoal, e mais preocupada com os limites do poder.
4. Uma outra distinção, tornada proverbial na teoria política, diferencia a “liberdade negativa”, (entendida basicamente como ausência de coacção externa) da “liberdade positiva” (entendida como capacidade de controlar a própria vida, de realizar o tipo de vida desejado, de alcançar os propósitos fundamentais de cada um). A primeira pode considerar-se uma “liberdade de oportunidade”; a segunda, uma “liberdade de exercício”.
A “liberdade negativa” desconsidera os obstáculos internos à liberdade – vício, corrupção da vontade, medo, irracionalidade ou ignorância… – e assume uma certa neutralidade face aos fins ou objectos das escolhas dos cidadãos. Contudo, o conceito liberal clássico de liberdade é fundamentalmente negativo não porque presuma forçosamente qualquer irrelevância ou arbitrariedade no que respeita aos fins humanos que tornam a liberdade significativa, mas porque corresponde a uma concepção política de liberdade: porque visa proteger uma esfera individual de não interferência externa (nomeadamente, do Estado) que permita – embora também não garanta – a autonomia da pessoa, uma vez que essa autonomia é uma condição necessária para o agir moral. Por seu lado, do ponto de vista político, a ênfase unilateral na “liberdade positiva” corre o risco do paternalismo moral, mais ou menos autoritário: o Estado – ou seja, pessoas tão falíveis como quaisquer outras, mas munidas do poder de coerção – poderia arrogar-se o direito de decidir sobre as “verdadeiras” preferências dos cidadãos, melhor do que os próprios o fariam, em nome do que eles julgariam razoavelmente ser o seu próprio interesse, se não fossem ignorantes e incontinentes…
A liberdade não é o único valor político. Todavia, também neste domínio deve valer o antigo princípio: in dubio pro libertate.
Bibliografia:
- Charles Taylor, “What’s Wrong with Negative Liberty”,’ The Idea of Freedom, A. Ryan (ed.), Oxford: Oxford University Press, pp. 175–93, 1979
- Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford: Oxford University Press, pp. 118–72, 1969
- Benjamin Constant, De la Liberté des Anciens comparée à celle des Modernes, [Discours prononcé à l’Athénée royal de Paris.1819], Paris : Fayard/Mille et une nuits, 2010