por Pedro Rosa Ferro, 2024
1. Aristóteles observou que as pessoas são iguais em certos aspectos e desiguais em outros. E insinuou que os problemas advêm de se assumir que elas são simplesmente iguais em todos os aspectos ou, ao invés, simplesmente desiguais. Todavia, aparentemente, sugeriu que aqueles aspectos em que as pessoas se diferenciam ou sobressaem são mais importantes do que os outros. Ao contrário, pode sustentar-se que a dignidade básica e fundamental reside não naquilo que distingue as pessoas – e as faz grandes ou pequenas, amarelas, pretas ou brancas, ricas ou pobres, mulheres ou homens… – mas naquilo que elas têm em comum e, ao mesmo tempo, de modo único: precisamente a igual natureza humana, que é – por si mesma – portadora de valor. Com efeito, cada um de nós tem um rosto diferente e um nome próprio; mas todos nós temos um rosto e um nome singulares. É difícil negar que esta ideia – a da essencial e inerente igual dignidade – seja uma “invenção” (no sentido de descoberta) cristã: só no cristianismo a desigualdade natural ou social se superou, porque aí já «não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher» (Gal 3, 28), porque todos são filhos de Deus, criados à Sua imagem (Gn. 1, 27).
2. Como se podem articular, politicamente, esta radical igualdade, as evidentes diferenças de capacidades naturais, e a universal e constante desigualdade social? Será que alguém merece (tem direito a) ter melhores condições de vida do que outrem? Alguns autores (como J. Rawls) salientaram a arbitrariedade moral da desigualdade: ela resultaria basicamente da “lotaria genética” e da “lotaria social” (neste caso, do berço e educação). O “mérito” e a meritocracia não seriam realmente merecidos: seriam fortuitos, no melhor dos casos; e, às vezes, seriam cristalização de privilégios, velhos ou novos. Entretanto, é razoável admitir que entre as razões do sucesso social haja algum lugar para o esforço moral (para esse tal “mérito”), mas só mesmo Deus será capaz de isolar o efeito desse factor. Daí, a sugestão rawlsiana de que as desigualdades apenas se justificariam na medida em que fossem vantajosas para os menos favorecidos. Ao mesmo tempo, não dispomos de nenhuma fórmula que nos indique quanta desigualdade uma sociedade saudável pode tolerar, sem que avilte a igual dignidade de todas as pessoas humanas, nem quanta igualdade uma sociedade saudável pode comportar (e financiar), sem que constitua uma camisa-de-força que sufoque a liberdade e o dinamismo económico e, consequentemente, a diminuição da pobreza.
3. Em qualquer caso, numa sociedade livre, as desigualdades serão espontâneas e inevitáveis. Elas são resultado de um jogo de liberdade, talento e sorte (o país onde nascemos e quem são os nossos pais, entre outros factores…), coisas que não é possível ou desejável suprimir (embora algumas das suas consequências possam, e devam, ser corrigidas). A igual liberdade (formal) para todos – mesmo ajustada por mecanismos institucionais visando uma igualdade real de oportunidades – nunca produzirá igual valor da liberdade para todos, porque alguns aproveitarão melhor do que outros essa liberdade e essas oportunidades. A única solução seria eliminar a liberdade, o que não parece aceitável. Por outro lado, pode aduzir-se que nossa preocupação principal neste campo, em prioridade e urgência, não deve ser a minimização das desigualdades, mas sim a minimização da pobreza absoluta (sendo que a interdependência entre as duas é discutível…) e a garantia de um “chão comum”: um mínimo de condições que permitam uma vida digna, para todos.
4. Mesmo que, em parte, seja produto da aleatoriedade referida por Rawls, a desigualdade social é, até certo ponto, benigna, enquanto expressão legítima da diversidade de personalidades e da liberdade individual. Numa perspectiva cristã, aquela “lotaria” aparente é manifestação da providência de Deus, que distribui sabiamente os Seus dons (cf. Mt 25,14-30), que de todos espera fruto, e do qual nos pedirá contas. Daí que, sobre o talento e fortuna daqueles que os auferem – sobre esses dons –, impende uma espécie de ónus ou hipoteca social: o usufruto dessas vantagens estará onerado por uma correlativa obrigação (moral) de serviço, pelo dever de procurar que esses dons redundem também em benefício dos menos dotados ou afortunados.
5. No seu espectro global, é muito difícil medir as desigualdades e descobrir se têm aumentado ou não, convergido ou divergido. (Trata-se de uma questão empírica: as estimativas variam consoante os métodos de estimação e os períodos de referência; por outro lado, podem referir-se a desigualdades na repartição do rendimento – e, dentro deste, ao rendimento bruto ou ao rendimento disponível –, ou da riqueza, ou do consumo.) De qualquer modo, a concentração extrema e as desigualdades excessivas de riqueza, saúde e educação – quer entre países quer dentro de cada país – são problemáticas, embora secundariamente face a eliminação da pobreza absoluta. Frequentemente, são percebidas como obscenas, injustas e indignas. Debilitam a solidariedade cívica e política. Suscitam ressentimentos potencialmente perigosos, porquanto reflectem uma real desigualdade de atenção, “reconhecimento” e respeito. Promovem uma certa segregação residencial e educacional. E geram também indesejáveis desigualdades de acesso à justiça e de poder social e político.
Bibliografia:
- Angus Deaton, The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality, Princeton University Press, 2015
- Deirdre Mccloskey, Why Liberalism Works: How True Liberal Values Produce a Freer, More Equal, Prosperous World for All, Yale University Press, 2019
- Thomas Michael Scanlon, Why Does Inequality Matter?, Oxford University Press, 2018