por Mafalda Miranda Barbosa, 2024

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1. A família é uma realidade natural e uma instituição social que se impõe ao próprio direito que a reconhece. Recuando a Roma, a família integrava todos os sujeitos que vivessem sob na casa do dominus, numa hierarquia que mantinha num lugar cimeiro o pater familias e, abaixo dele, a mulher, os filhos e os servos, que viviam sob domínio do primeiro [Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, Theologica, 2ª série, 41/1, 2006, 52 s.]. Em causa um conceito muito alargado de família, que “chegou a designar os «agnati», parentes pertencendo à linha paterna, e os «cognati», parentes concernentes à linha materna, assim como o conjunto dos parentes unidos pelos laços de sangue, vindo a tornar-se em sinónimo de «gens»” [Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, 52 s.], e que haveria de conhecer a sua primeira restrição fruto da influência do Cristianismo, que forjou a família nuclear conjugal baseada no amor [Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, 60; Tony Anatrella, “Casal hoje e confusões afectivas e ideológicas”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 82], assente no casamento elevado à dignidade de sacramento e no livre consentimento dos nubentes, que tinha na família de Nazaré o seu arquétipo. Proibindo-se certas práticas no seu seio, como decorrência da moral imposta pelo catolicismo, a família surge como um núcleo privilegiado de afirmação do cuidado com o outro e, nessa medida, de realização do amor – caritas.

2. O panorama familiar haveria de começar a modificar-se com a alteração de mentalidades, primeiro com o iluminismo, e o consequente individualismo que ele forjou, e, posteriormente, com a industrialização saída da Revolução Industrial. A importância crescente da privacidade, por um lado, e, por outro lado, a galvanização dos afetos, fruto do romantismo oitocentista, foram determinantes neste processo, do mesmo modo que se assistiu a uma crescente atenção dada às crianças e à sua educação, contribuindo, assim, para uma centralidade da afeição na constituição familiar. Simultaneamente, assiste-se, por força da valorização da educação, a uma valorização do mérito, o que terá contribuído para uma sociedade menos hierarquizada e menos imobilista, na qual o estatuto se pode adquirir e não apenas herdar. O liberalismo e as revoluções que lhe andam associadas haveriam de ser igualmente determinantes nesta evolução. Por um lado, prioriza-se o indivíduo, distante da pessoa e, como tal, afastado de qualquer nota de relacionalidade; por outro lado, do ponto de vista político, acentua-se uma tendência para a laicização do mundo, com a consequente introdução do casamento civil nos ordenamentos jurídicos, perdendo-se a sacramentalidade do vínculo, exceto quanto tal correspondesse a uma escolha dos nubentes, e, como tal, fragilizando-se a instituição, para o que também terá contribuído a introdução da possibilidade de divórcio. A ordem harmoniosa da família constituída a partir do casamento indissolúvel ficou submetida à vontade do indivíduo, e o casamento transformou-se numa forma de afirmação da liberdade individual. Aos poucos, a instituição foi sendo suplantada pela expressão do direito do sujeito, ao ponto de a própria conformação do divórcio prescindir, mais recentemente, da descoberta da culpa, para se contentar com a mera rutura da conjugalidade.

3. De uma comunidade assente no recíproco cumprimento de deveres, segundo os papéis estabelecidos, a família passou a ser um espaço de afirmação de individualidades. Uma certa funcionalização do jurídico, que acompanha uma visão política da sociedade, determinou que se fosse transformando uma instituição sólida, através da qual se cumpria o sentido da solidariedade intergeracional e na qual o homem encontrava as condições para o livre desenvolvimento da sua personalidade, num agregado de relações líquidas, fugidias, egoístas e potencialmente conflituosas, moldada segundo a vontade arbitrária de cada um. A família deixa, assim, de ser um espaço de afirmação da pessoalidade para se transformar num domínio de realização da individualidade, o que não pode deixar de gerar a sua própria crise, correspondente a uma marginalização da sua importância na realização de funções que lhe eram tradicionalmente cometidas. Abandonada a família na sua conceção tradicional, esta deixa de ser um grupo coeso, ligado por laços invioláveis, para se reduzir a um conjunto de indivíduos que perseguem a sua própria felicidade. E com isto é o próprio direito da família que passa a estar em causa. Para tanto terão contribuído não só as modificações da estrutura social, como também a evolução no campo filosófico-jurídico: o formalismo próprio do pensamento positivismo em que desembocou o jusnaturalismo racionalista conduziu, pela necessidade de conter os excessos do nominalismo e do voluntarismo, à afirmação de direitos de personalidade que, tematizados como direito subjetivos, assentes na vontade, acabam por, se predicados na individualidade reivindicadora de uma liberdade negativa e de uma liberdade positiva dissociada de qualquer conteúdo material, poder levar à escravização do homem por si mesmo; posteriormente, no quadro da superação do próprio positivismo, assiste-se, pela complexidade do mundo atual, a tentativas várias de, por via de alterações legislativas, se imporem formas de funcionalização da família, transformando-a num campo de ensaio privilegiado para a afirmação de micro-causas. Se o triunfo do individualismo potenciou o surgimento de uma nova geração de direitos totalmente ancorados na vontade arbitrária do sujeito, entendida no sentido de desejo e aspiração, que encontravam na família um campo privilegiado de afirmação, o aproveitamento da visão individualista radical do ser humano levou a que o materialismo histórico, despojado da sua dialética luta de classes, transferisse a conflitualidade para o seio das relações humanas, subvertendo o sentido da própria família. Um certo voluntarismo político abriu as portas à consagração de novos direitos desenraizados de qualquer sentido ontológico e despojados qualquer referencial axiológico. E o poder judicial, sobretudo em instâncias com conotações políticas claras, acabou por assumir a interpretação das normas como um expediente para a consagração de novos direitos, sem embargo do sentido da juridicidade, numa redução clara da decisão judicativa a um instrumento de prossecução de uma ideologia.

4. Porque o direito não é uma pura forma, mas uma ordem regulativa que não pode deixar de fazer apelo a um fundamento axiológico que lhe permita ser justo, então haveremos de o encontrar no sentido da pessoalidade, enquanto categoria ético-axiológica. Não pode ser na mera ontologia que apenas atenta nas suas características essenciais, sem ligação à razão fundadora e criadora de todas elas, que nos comunica um quadro valorativo específico, que podemos encontrar a raiz fundamentadora do direito. Na verdade, não é o encontro do Eu com o Tu que garante o respeito cuidadoso pelo outro, no respeito pela sua dignidade, mas o encontro do Eu que, reconhecendo-se como pessoa, dotada de uma ineliminável dignidade ética, vê no Tu um semelhante igual a si, com o qual estabelece uma plena comunhão. Na compreensão da família, haveremos de pressupor o personalismo assente na pessoalidade, que se afasta de construções marxistas, mas nos encaminha para o sentido cristão da nossa civilização.

5. Resulta daqui a necessidade de o direito tutelar a família. O ser humano, entendido como pessoa, encontra no núcleo familiar o meio fundamental para o integral desenvolvimento da sua personalidade, pelo estabelecimento de laços de amor, confiança, lealdade, partilha. Além disso, é na família e através da família que a pessoa se reconhece a si mesmo, que desenvolve as suas potencialidades, que encontra a proteção necessária e os meios para a sua edução e a sua subsistência. O direito não poderia ser alheio a estes dados; e o direito civil, que coloca no centro da sua regulamentação a pessoa, não poderia deixar de derramar a sua eficácia protetiva sobre a família. Mas, se assim é, o direito não cria a família; antes a tutela. Se o direito civil se dirige à família é porque existe a necessidade de garantir, por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, o bom funcionamento da célula básica da sociedade, uma vez que tal garantirá a estabilidade da própria sociedade, que se estrutura em torno da categoria axiológica da pessoa. Nessa medida, não é possível impor soluções que, em abono da micro causas próprias do neo-marxismo, aliado a um certo liberalismo, subvertam o sentido da família e a transformem em algo que, em vez de cumprir o seu sentido social e ético que lhe é reconhecido, degrade o homem no seu hedonismo, egoísmo e individualismo.

Bibliografia:

  • Conselho Pontifício para a Família, Léxico da família, Princípia, 2010
  • Grégor Puppinck, A família, os direitos do homem e a vida eterna, Princípia, 2018
  • Leite Campos, Eu-Tu: o amor e a família (e a comunidade) (eu-tu-eles)”, Nós. Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, 165 s.
  • Maria Engrácia Leandro, “Transformações da família na história do Ocidente”, Theologica, 2ª série, 41/1, 2006
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