por Pedro Rosa Ferro, 2024

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1. Em sentido geral, “virtude” designa a excelência de uma faculdade operativa – como são a inteligência e a vontade – que capacita para realizar a “vida boa”, i.e., uma vida ordenada conforme à razão. Em particular, a virtude moral consiste na plenitude ética, i.e, na perfeição da disposição volitiva e afectiva da pessoa. Do ponto de vista civil, podemos distinguir entre: virtudes fortes, como a responsabilidade individual e espírito de iniciativa, a coragem, a prudência face ao futuro e ao condicional…; virtudes nobres, como a generosidade e magnanimidade; virtudes republicanas, abrangendo o patriotismo e o sentido de responsabilidade cívica; e virtudes domésticas, como a laboriosidade, autorrespeito, independência e boa vizinhança… Na história do pensamento político, o estatuto da virtude moral foi um tema incontornável: deve a virtude ser procurada por razões funcionais, como meio para viabilizar uma ordem pública saudável e livre? Ou, ao contrário, deve o regime ser organizado em ordem à excelência moral dos cidadãos, como fim em si mesmo da comunidade política? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

2. No Livro III da Política, Aristóteles coloca a seguinte questão: a lei existe para aperfeiçoar os homens – «por mor de nobres acções» – ou existe meramente para poder «viver em comum», sendo apenas, «em frase do sofista Lycophron, uma garantia das reivindicações justas que os homens têm entre si, sem pretender fazê-los virtuosos e justos»? O Estagirita inaugura, de algum modo, a tradição perfeccionista: as leis teriam como finalidade produzir cidadãos virtuosos e educá-los em conformidade, através da coerção legal, se necessário. A sua polis é um empreendimento pedagógico: na ética-política aristotélica, a desabituação dos vícios e a repressão das paixões desordenadas – por via da ameaça de punição legal – é o primeiro momento (o momento negativo) dessa pedagogia, enquanto (ou quando) as pessoas não são educáveis pela razão (o momento positivo). Nesta visão, os princípios de justiça dependem do valor intrínseco das finalidades que servem, da capacidade de se demonstrar que esses princípios de direito honram ou promovem um bem humano importante. Entretanto, a neutralidade moral do Estado seria impossível – porque a demarcação dos direitos pressupõe sempre uma noção moral sobre o que é a pessoa humana, sobre o que lhe é devido para que ela se “cumpra”; e seria também indesejável – por razões de ecologia moral, uma vez que a (i)moralidade privada tem geralmente consequências públicas .

3. Esta posição tem os seus méritos, mas também os seus problemas. Em primeiro lugar, por questões de princípio: as leis podem obrigar os cidadãos a comportar-se externamente de determinada maneira, mas não conseguem obrigar os cidadãos a ser bons, uma vez que – por definição – o acto virtuoso exige que o agente escolha livremente o bem por boas razões. Formar o carácter mediante a coacção seria destruí-lo em potência, arriscando hipocrisia, conformismo e servilismo. Por outro lado, a liberdade é constitutiva da própria pessoa: a sua autonomia na procura do bem não deve ser violada, em geral, senão por proporcionadas razões de ordem pública. Em segundo lugar, o paternalismo moral do Estado é problemático também por razões prudenciais: o perigo de conceder ao Estado demasiado poder (o de formatar as convicções dos cidadãos). Se concedermos ao Estado legitimidade para prosseguir uma agenda moral em sentido forte – para educar e aperfeiçoar os cidadãos e para os conduzir à verdade – estaremos vulneráveis (com maior probabilidade, nos tempos que correm) a que o Estado promova com igual direito uma outra agenda (i)moral e possa degradar os cidadãos. Por último, ergue-se o “facto do pluralismo, desacordo, ou conflito moral” típico das sociedades modernas: não existe já o consenso moral e religioso, ou a “totalidade ética”, que se poderia presumir no mundo antigo ou medieval. Todavia, mesmo um pensador como Montesquieu afirmou que «em qualquer país do mundo a moralidade é desejada».

4. Quer a corrente perfeccionista, quer a liberal – que fundamenta os direitos na prioridade da autonomia pessoal, defende a neutralidade dos governos face a quaisquer concepções particulares de bem (excluindo-as do âmbito da “razão pública”) e, em algumas versões, apenas se opõe aos vícios públicos fundamentais, mais do que promove a virtude – admitem gradações e sobreposições. No entanto, talvez se possa dizer (de acordo com Ernst-Wolfgang Böckenförde) que o Estado constitucional democrático é sobretudo uma «ordem de liberdade e de paz», mais do que uma «ordem de verdade e virtude». Não que Aristóteles não tenha razão quando sustenta que vivemos juntos com vista a viver bem, e não apenas para sobreviver. Mas isso não justifica suficientemente a atribuição ao Estado do papel de guardião coercivo da virtude dos cidadãos. Antes, o melhoramento da sociedade deve ser feito, livremente, ao nível pré-político: pela chamada voz moral, integrada na personalidade dos cidadãos e nas suas interacções mútuas; e pelas instituições sociais básicas e intermédias (famílias, escolas, igrejas, universidades, associações voluntárias, etc.), que constituem uma espécie de musculatura democrática e liberal da comunidade política. O bem comum integral compete à sociedade como um todo e às pessoas que a compõem. Só a esse nível se poderão talvez conciliar as duas ordens a que se referia Böckenförde.

Bibliografia:

  • Aristóteles, Política
  • Aristóteles, Ética a Nicómaco
  • Ernst-Wolfgang Böckenförde, Staat, Gesellschaft, Freiheit. Studien zur Staatstheorie und zum Verfassungsrecht, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976
  • Robert P.George, Making Men Moral. Civil Liberties and Public Morality, Oxford: Clarendon Press, 1995
  • Martin Rhonheimer, “The Democratic Constitutional State and the Common Good”, in The Common Good of Constitutional Democracy: Essays in Political Philosophy and on Catholic Social Teaching, William F. Murphy, Jr. (Translator), Washington, DC: Catholic University of America Press, 2013
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