por Manuel Monteiro, 2024
1. A regionalização exprime a ideia política defensora de uma Forma de Estado em que vigora uma ampla descentralização do poder. Essa descentralização, pressupondo a criação de regiões com poder próprio, tanto pode ser apenas administrativa, como incluir uma forte componente política. Podemos por isso dizer que a regionalização “consiste na atribuição, em maior ou menor grau, da capacidade de decisão política e administrativa à região (entendida como escalão intermédio entre o nível central e local)” (J. L. Ferreira Mendes, «Regionalização», in POLIS, 5, 1987, p. 810). Os partidários desta ideia, mesmo que em geral não coloquem em causa a permanência do Estado unitário, apresentam-se como claros opositores da centralização do poder e consideram que só uma transferência e distribuição desse mesmo poder para entidades territoriais regionais pode corresponder aos seus objectivos políticos.
2. As teses defensoras da descentralização têm as suas raízes em meados do século XIX e encontraram em Portugal ilustres cultores de que é exemplo Marnoco e Sousa que, em 1913, nos seus comentários à Constituição de 1911, dizia que “todos os países civilizados teem admitido, numa escala mais ou menos vasta, o principio da descentralização administrativa” (Marnoco e Souza, Constituição Política da Republica Portuguêsa – Commentario, 1913, p. 589). É certo que o princípio da descentralização administrativa então sustentado não traduzia aquilo que mais recentemente passou a abranger a chamada descentralização territorial, mas não é menos certo que as bases para a existência de um Estado descentralizado e até regional encontram aí as suas principais fontes.
3. O percurso que de então para cá foi feito permite-nos compreender que “o Estado não é hoje a única pessoa colectiva pública territorial. A par dele, várias outras pessoas colectivas públicas de base territorial assumem vastas e importantes atribuições” (Vital Moreira, Sebenta de Direito Constitucional, 2019, p. 547), sendo a regionalização e os seus efeitos um dos factores preponderantes desta nova realidade. É uma realidade também motivada pela perspectiva de que a democracia não pressupõe apenas a existência de um «governo nacional», devendo igualmente contemplar a presença de «governos locais» e de «governos regionais» aptos a responder a problemas que especificamente se colocam nesse plano territorial e que aí devem encontrar as suas soluções.
4. Mas se são indiscutíveis e inegáveis as vantagens decorrentes da descentralização territorial, nada impede que nos questionemos sobre se essa descentralização deve implicar sempre a criação de novos órgãos políticos. A dúvida suscitada poderá até ser reforçada, quando nos deparamos com países de forte tradição municipal e de quase nulo impulso regionalista. Acresce que qualquer discussão sobre a regionalização, nomeadamente em Estados que integram organizações internacionais como a União Europeia, não deverá deixar de analisar o futuro papel do Estado e das regiões no quadro das decisões supranacionais. Por outro lado, e agora num plano puramente nacional, poder-se-á perguntar se uma nova organização territorial do Estado derivada da regionalização justifica que se mantenha inalterada a composição de determinados órgãos políticos nacionais, como é o caso do Parlamento. Significa isto, atentos também aqui às novas realidades, que a reflexão suscitada pela regionalização – nomeadamente em países onde ainda não se verifica – não deve ficar limitada, diríamos mesmo condicionada, ao estrito quadro até aqui existente.
5. Esta questão não deixou de estar presente no debate político em Portugal, principalmente em 1998 quando os portugueses se pronunciaram em referendo contra a instituição de regiões administrativas entendidas como “autarquias supramunicipais, destinadas à coordenação e à solidariedade entre os municípios” (Jorge Miranda, Aperfeiçoar a Constituição, reimp. Coimbra, Almedina, 2021). E ainda que o tema não tenha até agora voltado a suscitar qualquer sobressalto político, não deixam de persistir vozes a considerar que “sem a regionalização perde-se, ainda o que é também grave, a oportunidade de se seguir uma via fecunda de reforço da nossa democracia” (Manuel Porto, «”Estado fragmentado” ou regionalização administrativa?», in 20 Anos da Constituição de 1976, 2000, p. 256). Certo é, independentemente de quem legitimamente pugna pelo regresso do debate, que “a criação de regiões administrativas deixou de ser um imperativo constitucional, transformada que está em mera possibilidade facultada pela Constituição” (Paulo Otero, Direito Constitucional Português, v. II, 2019, p. 640). Sendo uma possibilidade sempre aberta num regime democrático, ela não deixará seguramente de ter em atenção que “não há reformas políticas, económicas ou sociais que vinguem quando não correspondem ao sentimento profundo da Nação” (Marcello Caetano, «A Codificação Administrativa em Portugal», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano 2º, 1934, in Marcello Caetano, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, 1994, p. 445).
Bibliografia:
- L. Ferreira Mendes, «Regionalização», in POLIS, 5, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1987.
- Jorge Miranda, Aperfeiçoar a Constituição, reimp. Coimbra, Almedina, 2021.
- Manuel Porto, «”Estado fragmentado” ou regionalização administrativa?», in 20 Anos da Constituição de 1976, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2000.
- Marcello Caetano, «A Codificação Administrativa em Portugal», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano 2º, 1934, in Marcello Caetano, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, (org. e prefácio de Diogo Freitas do Amaral), Coimbra, Coimbra Editora, 1994.
- Marnoco e Souza, Constituição Política da Republica Portuguêsa – Commentario, Coimbra, F. França Amado, 1913.
- Paulo Otero, Direito Constitucional Português, reimp. da ed. de Abril de 2010, v. II, Coimbra, Almedina, 2019.
- Vital Moreira, Sebenta de Direito Constitucional, Porto, Universidade Lusíada, 2019