por Inês Neves, 2024

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1. A iniciativa económica privada é um bem jusfundamental, garantido e protegido, entre nós, pelo direito fundamental consagrado no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa de 1976 (‘CRP’). Enquanto direito fundamental económico clássico, a liberdade de iniciativa económica privada ou liberdade de empresa afirma-se – logo no constitucionalismo liberal português, e ainda que então sob as vestes de “liberdade de comércio ou indústria” – pela sua história e constância (indícios da respetiva natureza e valor jusfundamental). Através de um conteúdo plúrimo e rico, a liberdade de iniciativa económica privada logra assegurar aos privados um espaço de liberdade (dimensão negativa) e uma garantia justiciável, qualificada e centralizada, de iniciativa e de atuação no mercado (dimensão positiva).

2. Pese embora também se lhe adequem as vestes de garantia institucional, de princípio fundamental da organização económica, e de elemento caracterizante do modelo económico acarinhado pela Constituição portuguesa – uma economia social de mercado -, a sua localização sistemática e, acima de tudo, os valores que a suportam – autonomia, liberdade, igualdade e solidariedade -, atestam e fundam a sua jusfundamentalidade, i.e., a sua natureza de verdadeiro direito fundamental, não hipotecado nem instrumentalizado a quaisquer outros (direitos, interesses, e, muito menos, políticas estaduais).

3. A iniciativa económica privada traduz a escolha e o exercício autónomo por um privado (pessoa singular ou coletiva, isoladamente ou em conjunto), de determinada(s) atividade(s) económica(s), consistente(s) na produção-oferta de bens e/ou na prestação de serviços em determinado(s) mercado(s), em termos minimamente organizados e estáveis, assente(s) ou não num substrato des-subjetivado ou em estabelecimento com valor a se no mercado. Caracteriza a iniciativa económica privada o ter como fim a satisfação de necessidades que, começando por ser as do próprio titular (e, portanto, egoísticas), não deixam, também e simultaneamente (desde logo pela extroversão e destinação ao mercado suas prototípicas), de se afirmar como garantia de prosperidade económica e da efetivação da democracia económica, social e cultural.

4. O justificativo para uma sujeição mais recorrente, e quiçá mais intensa, a cenários de conflito e/ou de colisão, na origem do recuo da liberdade enquanto direito prima facie, poderá, porventura, encontrar-se no facto de se estar perante uma liberdade referencial ou relacional. Não é um tal recuo (do direito em potência) sintomático de menor valor axiológico nem, muito menos, credencial para um discurso de subordinação, funcionalização ou instrumentalização da liberdade de empresa a outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. A extroversão é, pelo contrário, manifestação do specialis e da importância da iniciativa económica privada em sociedade, não obscurecendo a sua jusfundamentalidade.

5. Enquanto direito-feixe (‘Bündelungsgrundrecht’), a liberdade de iniciativa económica privada apresenta-se-nos como um quid pluris com um conteúdo a se. A ele se reconduzem um conjunto de faculdades jusfundamentais, entre as quais a liberdade de acesso, de atuação e de expansão no mercado, e a liberdade de organização, direção e gestão da empresa, todas vinculando o(s) outro(s) e, em particular, o Estado (lato sensu), a quem, além de vedada a ingerência arbitrária e a apropriação indevida de um espaço naturalmente reservado aos privados, se acometem deveres positivos de garantia e de proteção, materializados em enquadramentos normativos garantes e potenciadores da atividade económico-empresarial privada.

6. A iniciativa económica privada não é exclusivo pátrio. Além do seu reconhecimento e tutela em vários textos constitucionais nacionais, é objeto de garantia clara nos sistemas de proteção de direitos da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (‘CEDH’) e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (‘CDF’), onde conhece, aliás, positivação expressa (cf. artigo 16.º CDF). Seja como direito fundamental ancorado nos valores da liberdade, da democracia e do Estado de Direito, seja como direito instrumental ou veículo de prosperidade económica e riqueza, ou condição de efetividade dos demais direitos e liberdades, seja, ainda, como parte da herança comum das tradições políticas dos vários Estados, eis atestado o consenso em torno da sua natureza e força jusfundamental.

Bibliografia:

  • João Pacheco de Amorim, A liberdade de empresa” in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008
  • Antonio Cidoncha Martín, La libertad de empresa en el marco de la economía de mercado: el artículo 38 de la Constitución Española, Madrid: Facultad de Derecho (Departamento de Derecho) – Universidad Autónoma de Madrid, 2004
  • Everson, Michelle/Gonçalves, Rui Correia, “Article 16 – Freedom to Conduct a Business” in Peers, Steve et al. (coord.) The EU Charter of Fundamental Rights: A Commentary, Oxford: Hart/Beck, 2021
    García Vitoria, Ignacio La libertad de empresa: ¿un terrible derecho?, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008
  • Fritz Ossenbühl, “Las libertades del empresario según la Ley Fundamental de Bonn”, Revista Española de Derecho Constitucional, 11(32): 9-44, 1991
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