por Paulo Otero, 2024
1. A esquerda política entende-se por oposição ideológica à direita, apesar de ambas terem a sua origem designativa numa mera disposição dos corpos sociais na assembleia dos Estados Gerais subsequente à Revolução Francesa: situada a burguesia e o povo à esquerda do respetivo presidente, aqui se localizam os protagonistas da revolução e do liberalismo radical, os inconformados com a ordem sociopolítica vigente, os impulsionadores das transformações dos valores e das instituições do “Ancien Régime” – dentro da lógica revolucionária, a esquerda representa os progressistas, apostados na edificação de um novo futuro, por contraste com aqueles que, situados à direita, simbolizando a defensa de uma ordem edificada no passado.
2. A esquerda está longe, porém, de ser uma realidade política homogénea. Não obstante a pluralidade de “esquerdas”, podem identificar-se traços característicos comuns: (i) desprezando o passado e a existência de uma ordem natural, a esquerda procura implementar um programa de roturas, se necessário por via revolucionária, tentando edificar uma sociedade utopicamente igualitária, acreditando na edificação de um homem novo; (ii) conferindo prevalência à igualdade sobre a liberdade, a esquerda olha com desconfiança a propriedade privada, a religião e a iniciativa económica privada, preferindo sempre a intervenção do Estado a qualquer postulado de subsidiariedade; (iii) o Estado é instrumento de reforma e reconfiguração da sociedade, da economia e da cultura, limitando a autonomia das pessoas, das famílias e da sociedade civil, numa preferência do coletivo sobre o individual que tem expressão no primado dos direitos sociais sobre os direitos individuais: (iv) as relações de trabalho e os direitos dos trabalhadores são entendidos no contexto da luta de classes, numa dicotomia maniqueísta que separa explorados e exploradores, justificando políticas de nivelação social, por via da redistribuição de rendimentos, e de coletivização dos meios de produção; (v) afirmação autorreferencial de uma pretensa superioridade moral e cultural, mostrando-se, no presente, empenhada na implementação de políticas libertárias em matéria de costumes, direitos de minorias e ideologia de género.
3. Reconhecendo a autonomia política da extrema-esquerda diante da esquerda, podemos dizer que esta alberga duas diferentes modalidades: (i) existe, por um lado, uma “esquerda democrática”, própria de sociedades abertas, aceitando sem reservas o pluralismo e convivendo com o capitalismo, respeitando a propriedade privada, no contexto de uma economia social de mercado e até passível de ser contagiada pelo neoliberalismo – é a esquerda que se identifica com o “socialismo democrático” e a social-democracia; (ii) existe, por outro lado, uma “esquerda pseudodemocrática”, meramente tolerante ao pluralismo, inimiga da subsidiariedade do Estado, enfadada com a economia de mercado e crítica de um modelo de sociedade aberta, pois acha-se dotada de certezas absolutas e sem simpatia por quem pensa diferente, usando uma linguagem agressiva, sempre pronta a qualificar de “fascistas” ou de “(qualquer coisa)-fóbicos” os seus opositores, preferindo aliar-se ou aderir à agenda política da extrema-esquerda, podendo assumir uma vertente europeia de origem marxista ou, pelo contrário, sob influência norte-americana, defender postulados da cultura woke – trata-se de uma esquerda populista e libertária, dominada por discursos inclusivos e emancipatórios de minorias, que se encontra em transição para a extrema-esquerda ou, numa diferente ótica, estamos substancialmente diante de uma extrema-esquerda que, por razões de maior facilidade política de acesso ao poder, se infiltra e disfarça de esquerda.
Bibliografia:
- BOBBIO, Norberto, Destra e Sinistra, 2ª ed., Roma, 1995
- MELLÓN, Joan Antón (ed.), Ideologías y Movimentos Políticos Contemporáneos, 2ª ed, reimp., Madrid, 2008, pp. 63 ss.
- NEMO, Philippe, Histoire des Idées Politiques aux Temps Modernes et Contemporains, Paris, 2009, pp. 27 ss., 700 ss. e 779 ss.
- TIERNO GALVÁN, Enrique, O que são as Esquerdas?, Lisboa, 1976