por Mafalda Miranda Barbosa, 2024

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1. O conceito de dignidade humana caracteriza-se pela sua ambivalência, ao ponto de ser invocado para sustentar posições diametralmente opostas. Tal ambivalência pode ser explicada não só pela sua complexidade, como pela ausência de linearidade histórica na construção do conceito, ao ponto de muitos autores entenderem que o sentido moral que hoje se lhe reconhece generalizadamente (mas também acriticamente) só foi estabilizado com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (Remy Debes, “Dignity”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2023). Ainda que se duvide deste entendimento, por não ser estável o conteúdo da dignidade humana nos nossos dias, é seguro afirmar que em tempos mais recuados a dignidade surgia associada a uma ideia de mérito, de honra, de estatuto, de gravitas, de nível social (Josiah Ober, “Meritocartic and civic dignity in Greco-Roman Antiquity”, The Cambridge Handbook of Human Dignity (ed. Marcus Düwell, Jens Braarvig, Roger Brownsword, Dietmar Mieth), Cambridge University Press, 2014, 53-63). Na Grécia e Roma Antigas, ser digno significava manter a cabeça erguida na companhia dos outros, o que implicaria que as reivindicações de cada um fossem reconhecidas pelos restantes. Estar-se-ia, portanto, diante de uma dignidade meritocrática e cívica, diversa, nas suas bases e nos seus fundamentos, da dignidade baseada nos direitos humanos (Josiah Ober, “Meritocartic and civic dignity in Greco-Roman Antiquity”, 53), apesar de autores como Cícero parecerem aproximar-se de um sentido generalizante de dignidade, associando-a às capacidades distintivas do ser humano relativamente às outras espécies, entre as quais se destacava a capacidade reflexiva, a partir das quais seria possível estabelecer um padrão ético (Remy Debes, “Dignity”). A possibilidade de se extrair a dignidade humana da racionalidade seria depois desenvolvida em autores como Pico della Mirandola, na sua De hominis dignitate oratio. Se Mirandola extrai a dignidade da antiga doutrina cristã da Imago Dei, o homem feito à imagem e semelhança de Deus (Brian Copenhaver, “Dignity, Vile Bodies, and Nakedness: Giovanni Pivo and Giannozzo Manetti”, Dignity: A History, Oxford University Press, New York, 2017, 134 s.), o seu pensamento surge fortemente influenciado pela cabala e pelas ideias de superação do corpo, próprias dos gnósticos e dos cátaros, por forma a aproximar-se dos anjos, de tal modo que a dignidade surge como uma aspiração e com uma dimensão desencarnada e racional. Haveria, assim, de preparar o caminho para a lenta desencarnação da dignidade de que nos fala Puppinck, a culminar nas posições defendidas por Huxley, numa linha evolutiva que retira ao homem parte da sua dignidade, por o amputar de dimensões essenciais. Não se pense, contudo, que a chamada à colação da ideia de imago Dei encontra em Mirandola a sua génese. Muito pelo contrário, esta ideia já está presente em muitos textos medievais (Dieter Mieth, “Human dignity in late-medieval spiritual and political conflicts”, The Cambridge Handbook of Human Dignity, Cambridge University Press, 2014, 74 s.). Neste período, ao contrário da filosofia mais antiga que olhava para o ser humano como um ser racional, social e político, passa a compreender-se o homem como um ser criado à imagem e semelhança de Deus (Dieter Mieth, “Human dignity in late-medieval spiritual and political conflicts”, 79 s). A dignidade já não decorreria, aí, de uma qualquer característica do ser humano, mas da qualidade de ser pessoa. Trata-se, agora, de um conceito axiologicamente densificado que foi aprofundado à luz do debate sobre a Trindade e a natureza de Deus, superando-se, assim, avant la lettre, o contributo de Kant para a densificação da dignidade humana, que, com recurso às suas categorias a priori e ao teste da generalização e da universalização, não nos ofereceu um conteúdo da dignidade senão formal. 

2. Fruto de uma evolução não linear, o conceito de dignidade humana pode hoje ser compreendido à luz de diversas perspetivas: a) uma perspetiva formalista-racionalista, que, recusando qualquer conteúdo material à dignidade, porquanto se preocupa menos com a delimitação das características da dignitas do que com a definição das condições a priori do seu exercício, a serem reconduzidas à razão pura prática e à possibilidade de definição de fins, abre as portas a um problema complexo, que se verifica sempre que o ser humano deixa de se reger racionalmente ou quando, distopicamente, como se prognostica, surgirem outros entes que se mostrem capazes de atuar autonomamente e demonstrem uma capacidade até superior ao do homem natural, não permitindo cumprir a função normativa que lhe é destinada; b) perspetivas céticas, que, considerando que a dignidade se converteu numa categoria ambígua, passível de uma mobilização abusiva e de servir de instrumento para o confronto de posições ideológicas divergentes (Michael Rose, “Dignity: The Case Against”, Understanding Human Dignity, Oxford University Press, Oxford, 2013, 143–154), que são, também, alimentadas por visões procedimentais e liberais, que, recusando todo e qualquer referente de sentido, colocam o acento tónico ou na capacidade de, no seio de sociedades democráticas, se estabelecer um consenso argumentativo ou num ficcional consenso obtido sem pressuposição axiológica do bem e do mal, que nos encaminha para o relativismo irrealizável; c) perspetivas funcionalistas, de índole muito variada, centradas nas condições de vivência da dignidade e nas hipóteses de violação dessa mesma dignidade, as quais se tornam percetíveis mesmo sem uma definição exata do que ela é (Adam Etinson, “What’s so special about human dignity?”, Philosophy & Public Affairs, 48/4, 2020, 353–381; Oscar Schachter, “Human Dignity as a Normative Concept”, American Journal of International Law, 77/4, 1983, 849), nas quais se integra a perspetiva das capacidades de Sen; d) perspetiva material, que, ultrapassando uma visão ontológica pura alicerçada na natureza do homem, que nos deixa, ainda, à mercê de possíveis desenvolvimentos degradantes, faça apelo a uma dimensão axiológica.

3. Sendo chamada a cumprir o papel de fundamentação do direito, a dignidade não pode ser senão a dignidade da pessoa, que pressupõe uma dimensão onto-axiológica, implicando, por um lado, a compreensão do homem como intelecto, vontade, espírito e alma, e por outro lado uma estrutura relacional que, envolvendo a mobilização de uma específica axiologia comunicada pelo quadro filosófico-cultural e teológico de que somos herdeiros, estabelece como fundamental uma ligação em termos de cuidado-com-o-outro, em que se virá a traduzir uma certa compreensão da liberdade responsável do sujeito. A identificação da dignidade da pessoa (e não simplesmente do ser humano) como a base da fundamentação da juridicidade não deixa incólume o seu sentido e o sentido das soluções concretas com que o jurista se vai deparando. De outro modo não poderia ser, na medida em que em cada realização concreta do direito haverá de estar sempre presente o sentido e a intencionalidade dos princípios normativos que projetam no sistema a ideia do direito enquanto direito. Enquanto princípio, participa ativamente na interpretação e integração dos concretos critérios predispostos pelo legislador, derramando a sua eficácia sobre as específicas soluções de quid iuris; funciona como instância de controlo da justeza das soluções contidas nos diversos critérios normativos já constituídos, de tal modo que, se uma norma concreta se afirmar em aberto conflito com tal princípio, enquanto fundamento de validade de uma ordem jurídica, estaremos diante de uma lei injusta, devendo ser desaplicada; e, nas hipóteses em que o conflito não é radical, nem irreconciliável, a norma deve ser interpretada conforme aos princípios, optando-se pelo sentido que se mostre em conformidade com a validade pressuposta.

Bibliografia: 

  • Brian Copenhaver, “Dignity, Vile Bodies, and Nakedness: Giovanni Pivo and Giannozzo Manetti”, Dignity: A History, Oxford University Press, New York, 2017, 134 s.
  • Remy Debes, “Dignity”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2023
  • Adam Etinson, “What’s so special about human dignity?”, Philosophy & Public Affairs, 48/4, 2020, 353–381
  • Dieter Mieth, “Human dignity in late-medieval spiritual and political conflicts”, The Cambridge Handbook of Human Dignity, Cambridge University Press, 2014, 74 s.
  • Josiah Ober, “Meritocartic and civic dignity in Greco-Roman Antiquity”, The Cambridge Handbook of Human Dignity (ed. Marcus Düwell, Jens Braarvig, Roger Brownsword, Dietmar Mieth), Cambridge University Press, 2014, 53-63
  • Michael Rose, “Dignity: The Case Against”, Understanding Human Dignity, Oxford University Press, Oxford, 2013, 143–154
  • Oscar Schachter, “Human Dignity as a Normative Concept”, American Journal of International Law, 77/4, 1983, 849
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