por Francisco Carmo Garcia, 2024

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1. A melhor definição de soberania continua a ser a de Jean Bodin, exposta em 1576, que faz dela o «poder absoluto e perpétuo de uma república». Ou seja, faz dela o poder característico de uma comunidade política, que a distingue dos restantes tipos de associação humana. Com efeito, a primeira vez que o termo «soberano» (souverain) foi utilizado, pelo jurista francês do século XIII Phillippe de Beaumanoir, surgiu como significante do poder que distinguia o rei – ou o barão – dos seus súbditos. Haveria de ser dito que a soberania era «perpétua», «absoluta», «indivisível» e «inalienável». O mesmo é dizer que é o poder irresistível, para além do qual é impossível conceber qualquer outro, e foi nesse sentido que Carl Schmitt reivindicou para o soberano o poder de decidir sobre a «excepção». A soberania residiria em quem fosse capaz de decidir quando a norma deixa de ser aplicável, ou seja, no momento em que a operacionalidade da ordem jurídica instituída estivesse em causa. É por isto que os teóricos clássicos da soberania concordam nas suas «marcas» essenciais: a capacidade de fazer a guerra, o poder de fazer as leis, o direito de punir. A soberania é, assim (e antes de tudo o mais), um princípio de ordem política. É a soberania quem cria a ordem política e é ela que a mantém.

2. Esta visão da soberania como criadora de ordem evoca, desde logo, a omnipotência divina. Com efeito, o conceito derivou dos debates teológicos que tiveram lugar na era medieval sobre o poder de Deus, os quais seriam usados no debate político. Podemos dizer que a soberania foi a tradução temporal da omnipotência divina. Não é por acaso que as teorias da soberania surgiram quando a reivindicação do Papa em intervir na esfera temporal encontrou a oposição do poder temporal. Foi a época em que a doutrina dos «dois gládios» reivindicou a subordinação dos príncipes ao poder eclesiástico, e levou ao surgimento das famosas doutrinas do «direito divino», primeiro do Imperador, depois dos reis, em oposição às doutrinas papais. Era o tempo de um gravíssimo conflito entre autoridades que reivindicavam jurisdições sobrepostas. Esta desordem pioraria com a reforma protestante, que multiplicou as facções religiosas. Foi precisamente esta desordem que Bodin viveu, e o seu conceito de soberania foi a solução para resolver este problema. A soberania surge como o conceito que, elevando-se acima de todos os poderes em contenda, assume e integra toda esta diversidade política e religiosa. Nessa medida, a soberania foi o princípio de ordem descoberto quando todas as reivindicações políticas e religiosas existentes não eram capazes de resolver, por si mesmas, a desordem.

3. Sendo o «maior poder», a soberania junta as duas faces omnipresentes no conceito de poder: a potestas e a potentia. A soberania é tanto o maior poder físico como o maior poder jurídico. Esta articulação da soberania encontrou o seu intérprete clássico em Hobbes. É summa potentia porque junta o poder de todos os indivíduos que compõem a comunidade política, porque age como vontade de todos eles; é summa potestas porque age por direito, porque se baseia na transferência do direito inalienável dos indivíduos que a compõem. Esta «vontade comum» torna-se operacional mediante o recurso a um conceito que nunca mais abandonaria a soberania: a representação. Aquela vontade comum que configura a soberania como maior poder age como «representante» dos elementos que a constituem – o Estado é soberano na medida em que representa os governados, a «sociedade» ou a «nação». A soberania estaria, assim, ancorada em dois pilares: vontade e representação. Os dois vão estar amiúde em tensão, e os teóricos da soberania faziam pendê-la mais para um lado ou para o outro. Por exemplo, Rousseau faz corresponder a soberania à vontade, dizendo que esta é impossível de ser representada sem ser alienada – a soberania, como «vontade geral», teria de equivaler o mais derradeiramente possível à vontade dos governados. Em toda a história moderna do Ocidente vemos este movimento para eliminar o recurso à representação e fazer da soberania uma vontade autêntica, sem mediadores (o fascismo de Gentile é exemplo ilustrativo).

4. A soberania é uma ideia moderna. O seu advento correspondeu ao momento de emancipação do político face ao teológico, e serviu, nesse momento-chave da história europeia, como grande princípio de ordem. Fez do Estado a unidade política por excelência. Hoje é comum ouvirmos falar da «crise da soberania» como parte da «crise do Estado»: dizem-nos que o Estado é «exíguo», que não consegue cumprir devidamente a sua função, que é suplantado por instituições e organizações supranacionais, de um lado, e por poderes regionais e locais, do outro. Já antes desta crise do Estado soberano, Harold Laski dizia que a soberania era ilusória numa sociedade liberal onde múltiplas instituições da sociedade civil cumpriam as mais diversas funções: o Estado colocava-se perante rivais internos como a Igreja, os sindicatos, as organizações patronais, etc. A estes rivais internos acrescem hoje as multinacionais, a ONU, as ONGs de todo o tipo… Esta «crise da soberania» ou «crise do Estado» não surge, portanto, como algo novo. Sabendo de onde veio a soberania, podemos supor que esta nova configuração aparentemente policêntrica do poder corresponde a uma nova crise da ordem, no sentido lato que lhe fora dado na Europa tardo-medieval.

Bibliografia:

  • Jean Bodin, Les Six Livres de la République, Livro I, Edição de Christiane Frémont, Marie-Dominique Couzinet e Henri Rochais. Paris: Fayard, 1986
  •  Thomas Hobbes, Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Common-Wealth Ecclesiastical and Civil. Cambridge: Cambridge University Press, 1996
  • Harold Laski, Studies in the Problem of Sovereignty. Oxford: Oxford University Press, 2010
  • Miguel Morgado, Soberania. Dos seus Usos e Abusos na Vida Política, Lisboa: Dom Quixote, 2021
  • Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. Tradução de Hugo Barros, Lisboa: Edições 70, 2023
  • Carl Schmitt, Teologia Política, Quatro Capítulos sobre o Conceito de Soberania, Tradução de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Crítica XXI, 2023
  • Diogo Pires Aurélio. «A Soberania como Vontade e Representação». Maquiavel e Herdeiros. Lisboa: Temas e Debates, 2012
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