por Pedro Rosa Ferro, 2024

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1. O liberalismo é uma corrente doutrinária (cuja fundação, em termos modernos, é frequentemente creditada a John Locke) caracterizada pela afirmação da primazia política da autonomia e liberdade pessoal. Não considera que a liberdade seja o único valor político, ou que seja um valor absoluto. A liberdade pode ser – e às vezes deve ser – restringida por razões públicas e de bem comum. Mas o liberalismo sustenta, sim, uma “presunção favorável à liberdade”: i.e., qualquer restrição legítima à liberdade pessoal deve ser razoavelmente justificada; e o ónus dessa justificação – o ónus da prova – cabe a quem advoga essa restrição.

2. O constitucionalismo liberal assume uma concepção de bem comum político tecida genericamente pelos seguintes elementos: garantia dos direitos e liberdades fundamentais; igualdade perante a lei; governo limitado e repartido, sob o consentimento dos governados; pluralismo e tolerância; liberdade económica, comércio livre e propriedade privada… Todavia, há uma ampla variedade de liberalismos, e mesmo disparidade e contradição entre eles. Há liberalismos contratualistas e deontológicos, relativistas e utilitaristas, perfeccionistas e conservadores; há o liberalismo (económico) de Manchester e o liberalismo (social) de Massachusetts; há liberalismos institucionais e liberalismos ideológicos. É difícil reconhecer uma tradição unificada. O liberalismo, mais do que várias faces, tem várias almas, correspondentes aos conceitos de liberdade e de bem humano que o animam.

3. Uma dessas concepções encontra expressão no celebrado (e também problemático) “princípio do dano” (de J. S. Mill): uma sociedade civilizada só poderia interferir razoavelmente nas acções de um indivíduo, contra a sua vontade, com o fim de evitar o dano de terceiros. De resto, «over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign». Este princípio acolhe a convicção de que, em geral, cada pessoa adulta – mesmo sendo frequentemente falível e necessitada de conselho – é o menos mau juiz sobre o seu próprio bem e o menos incompetente para determinar e prosseguir responsavelmente os seus próprios interesses. No entanto, o liberalismo – em sentido lato – não implica necessariamente indiferença ou arbitrariedade quanto à verdade sobre a pessoa, nem individualismo exacerbado. Antes, constitui uma tentativa de limitar o poder coercivo do Estado ao mínimo razoavelmente exigido pelo funcionamento pacífico da fábrica da sociedade. Atende ao facto de que a política versa sobre o governo de uma multidão de pessoas livres e iguais, que discrepam quanto ao conteúdo do que seja uma “vida boa”, e deve justificar aquilo que o Estado pode legitimamente impor aos cidadãos (a nós e aos outros).

4. A grandeza e força do liberalismo residem na sua defesa da liberdade e dos direitos individuais, o que é certamente justo e necessário. A sua fraqueza, aparentemente inevitável, consistirá em que não proporciona (nem quer proporcionar, por princípio) orientação suficiente para essa liberdade e para a vida em comum. E isso pode ser alienante, dissolvente e corrosivo do bem humano, ao turvar a consciência de que há actividades, objectivos e propósitos mais significativos, fundamentais e nobres do que outros. Mesmo quando não relativista – como no caso de John Rawls, assente na inviabilidade prática de acordo racional sobre os bens humanos – o liberalismo pode ser de algum modo contaminante de um certo indiferentismo moral e religioso. Mas a neutralidade moral e o vazio axiológico são impossíveis, na prática política. Não se consegue considerar seriamente a vida humana sem aspirar a um fito para além de uma liberdade carente de sentido. Nenhum Estado pode deixar de satisfazer aquelas condições institucionais sem as quais nenhum bem pode ser perseguido e nenhuma vida boa pode ser realizada. Nem pode ignorar que certas formas de vida dos indivíduos favorecem o bem comum e outras não. 

5. Por fim, pode notar-se que o liberalismo clássico tem as suas raízes em premissas culturais e históricas de fundo bíblico, cristão e greco-romano – como notaram Popper, Böckenförde ou Charles Taylor – e pressupõe a verdade de algumas asserções básicas (pré-liberais) sobre o ser humano, a sociedade e o poder político. Seria preciso reconhecer que nem tudo no liberalismo é geneticamente liberal, quer para o entender bem, quer para o proteger da autofagia a que uma interpretação unilateral o conduziria. A igualdade e liberdade liberais não serão autossuficientes: precisam de um suplemento de alma, de uma transfusão de sangue; necessitam de conversar com algo que lhe é exterior, nomeadamente com a tradição clássica e a Fé bíblica.

Bibliografia

  • William Galston, “Two Concepts of Liberalism”, Ethics, 105: 516–34, 1995
  • F.A. Hayek, The Constitution of Liberty, Chicago: University of Chicago Press, 1960
  • Pierre Manent, “The Greatness and Misery of Liberalism”, Modern Age, Summer 2010, pp. 176-83
  • John Rawls, Political Liberalism, New York: Columbia University Press, 1996
  • Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge: Cambridge University Press, 1982
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