por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. A palavra eutanásia tem origem no grego – eu (boa) e thanatos (morte) –, significando boa morte. A expressão, ao tentar concitar a piedade do interlocutor, torna-se permeável a equívocos, exigindo um esforço definitório. Assim, quando convocamos o conceito de eutanásia, não falamos de situações em que a pessoa está cerebralmente morta (e, portanto, juridicamente morta), mesmo que se encontre, ainda, ligada a um suporte de vida (designadamente para efeitos de transplantação de órgãos); não falamos de situações de combate à obstinação terapêutica; nem falamos de situações em que o médico ministra certos medicamentos ao paciente (para alívio das dores e do sofrimento), que podem ter como consequência lateral o encurtamento da sua vida. A eutanásia corresponde a dar a morte a alguém, antecipadamente, a pedido da própria pessoa (daí que se fale de eutanásia voluntária, que é a única – para já e contra aquela que parece ser a consequência da rampa deslizante a que se assiste noutras latitudes onde o fenómeno foi liberalizado), quando esta se encontre em determinadas circunstâncias, o que significa que o sujeito não pode abdicar de viver em qualquer caso, mas apenas naquelas hipóteses que são previstas pelo legislador.
2.Na base da invocação do direito a morrer está uma ideia de autonomia, o que suscita o problema de saber se na autonomia da pessoa cabe a decisão de deixar de viver, ou seja, o problema da compreensão do sentido da própria autonomia. Em confronto surgem duas perspetivas irreconciliáveis: uma perspetiva individualística, que encerra a pessoa sobre si mesma; e uma perspetiva pessoalista, que convoca uma dimensão ética de responsabilidade comunitária (pelo outro e perante o outro) e de responsabilidade por si mesmo. Para a primeira, o direito a morrer seria absolutamente legítimo, por aquele indivíduo reivindicar para si uma liberdade negativa de ausência de constrição, muitas vezes traduzida num direito a estar só; para a segunda, o direito a morrer seria absolutamente ilegítimo. Um ordenamento jurídico que se queira de direito e do direito não pode deixar de abraçar a segunda perspetiva, assente na pessoalidade responsável. A liberdade não pode ser entendida num sentido individualístico, empobrecedor, como uma mera ausência de constrição heterónoma. O homem, tido por autossuficiente, é compreendido, nesse quadro, como um ente que se situa antes de qualquer contacto social, um indivíduo, em confronto com os demais – tidos como obstáculos à realização das suas aspirações – e com o Estado. A grande preocupação que avulta, aí, é, portanto, a da limitação do poder daquele – forjado com base no mecanismo do contrato, através do qual o indivíduo lhe transfere parte dos seus direitos, de modo a garantir a ordem e sair do estado de natureza – e qualquer imposição ou proibição surge como anómala, como uma limitação da vontade do indivíduo. A liberdade seria, então, a mera liberdade negativa. A ela associar-se-ia uma ideia de liberdade positiva, entendida como autonomia ou poder de autodeterminação, e caracterizada pela possibilidade de opção entre diversas alternativas de ação. Sem que, contudo, essa liberdade positiva seja, também ela, adequadamente compreendida, já que nenhum fundamento postula para a escolha que se haverá de operar. A eutanásia livre representaria isso mesmo, uma forma de exercício da autonomia, ainda que de um modo radical e inultrapassável. Contudo, esta ideia de liberdade só seria defensável se olhássemos para o direito como uma pura forma, totalmente dependente da voluntas do legislador. Simplesmente, o direito não pode ficar dependente da pura vontade (tendencialmente arbitrária) do legislador, nem se sustenta num ficcional consenso a priori ou num dialógico consenso a posteriori. Antes implica uma pressuposição ético-axiológica, que faz apelo à pessoa, com a sua dimensão comunicacional, relacional e de autotranscendência. De outro modo, correríamos o risco de forjar uma ordem regulativa – como foram muitas ordens ordenadoras de condutas – que, ainda que formalmente fosse uma ordem de direito, não seria uma ordem do direito. Com o exercício da autonomia que pretende fundamentar o fim da própria vida, o homem nega o seu estatuto de pessoa, porque corta radicalmente a ligação com o outro, que o permite ser na sua integral dignidade. Amputa os outros do eu, pelo que não poderá configurar o exercício de uma liberdade, mas o abuso de uma liberdade. Ao pedir para morrer, o sujeito impede os outros do exercício da responsabilidade em relação a si, priva-os de uma dimensão essencial da sua humanidade, impedindo-os de se reconhecerem na sua integral dignidade que também é desvelada na fragilidade do corpo e da mente, pelo que a legalização da eutanásia deixa de ser compatível com o próprio sentido do direito.
3. Em rigor, a tentativa de fundamentação da morte a pedido com base na autonomia esbarra no facto de o suposto direito não ser reconhecido a todo e qualquer sujeito, mas apenas àqueles que se encontram em determinadas circunstâncias, o que mostra que, afinal, não está em causa o reconhecimento de uma liberdade mal compreendida, mas o apelo a uma ideia de vida digna. O ordenamento jurídico passa a considerar duas categorias de pessoas: as pessoas dignas, que têm de ser protegidas contra elas próprias, não podendo atentar contra a sua vida ou pedir para morrer; e as pessoas com uma vida indigna que podem solicitar o aniquilamento da sua existência, repristinando-se, embora com um sentido funcionalista, um conceito que foi herdado de um radical biologismo defensor do abandono de qualquer vida inútil, tanto mais que poderia constituir um peso para o Estado, a abrir as portas às leis eugénicas do nacional socialismo alemão.
4. Apesar de o pedido para morrer ser feito pelo titular do direito, é um terceiro (o legislador) que fixa a priori as condições com base nas quais cada um pode ajuizar se quer ou não renunciar ao seu direito à vida, pelo que, previamente, será o Estado a definir quem é e quem não é digno. E se a qualidade de vida que se chama à colação é agora funcionalista, este não deixa de ser, por um lado, um funcionalismo desumanizador que procura esconder o sofrimento e lhe retira qualquer sentido, dando a entender que a dignidade da pessoa não radica nela própria, mas nas circunstâncias que a rodeiam, e, por outro lado, um funcionalismo perigoso, que abre as portas a uma racionalidade eficientista de pendor económico, oferecendo aos Estados a solução mais fácil – mas ainda assim mais aterradora – para os problemas do défice na segurança social e na saúde.
Bibliografia:
- BARBOSA, Mafalda Miranda, “Dignidade e autonomia a propósito do fim da vida”, O Direito, ano 148º, tomo II, 2016, pp. 233-283
- Fikentscher, Wolfgang, Modes of Thought: A study in the Antropology of Law and Religion, 1995
- Neves, Castanheira, “Arguição nas provas de agregação do Doutor José Francisco de Faria Costa – comentário crítico à lição O fim da vida e o direito penal”, Digesta, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, 618 s.