por António Bagão Félix, 2024
1. A ética política é a expressão da confluência entre a ética como referencial axiológico e a política como promotora do bem comum. Não são realidades antagónicas, antes se completam. Como escreveu São Tomás de Aquino, “O Poder é serviço e não benefício ou privilégio de quem o exerce: o governante é aquele que age para o bem comum da sociedade” (A Monarquia, I, 1, 8 e 9). O bem comum é a razão de ser da autoridade política. Como consequência, a autoridade só é exercida legitimamente na medida em que procurar o bem comum e em que, para o atingir, emprega meios moralmente lícitos. As primeiras e fundamentais premissas de ética política são a do uso do poder como poder-dever e a do imperativo do contrato moral pelo qual a ética da primeira pessoa (a auto-exigência) deve ser sempre a primeira condição para a ética da terceira pessoa (ser-se exigente com os outros). Como tal, à ética política subjaz sempre uma necessária conciliação entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade.
2. O teste de ouro no plano ético – saber se os fins justificam ou não os meios usados – é central no exercício da política. Há valores, que sendo essenciais em quaisquer circunstâncias ou actividades, são indissociáveis e estruturantes da ética política. Citam-se, a título exemplificativo, a honradez, a integridade, a rectidão, a honestidade, a autenticidade, a exemplaridade, a bondade moral, a coerência, a sensatez, a generosidade, a temperança, a lealdade, a perseverança, a prudência, a equidade, a exactidão, a compaixão, a gratidão.
3. Vemos, porém, que a ética política pura e intensiva se vem relativizando pela abordagem do que podemos designar por uma ética quantitativa e adversativa. Para tal, “inventou-se” um novo arquétipo moral entre os actos bons e os maus: os actos indiferentes, uma espécie de silenciosa amiba onde se acolhem as maiores perversidades éticas. Em ética, não há o meio-termo, lugar geométrico da indiferença moral. O imperativo ético passou a ser moldável por um qualquer ou oportuno se, mas, talvez, quase sempre, salvo se, mais ou menos e pela invocada separação entre a pessoa e a função, como se o carácter fosse divisível. Diz-se que, em política, “basta parecer”. No plano ético, não basta parecer, não basta o marketing da ética, a “markética”. É mesmo preciso ser.
4. A ética política é mais ampla e exigente do que a estrita legalidade. A ética política não se limita ao direito. Não basta cumprir e fazer cumprir a lei. A ética é maximalista, sendo que o direito positivo é, por definição, contido. A norma jurídica não pode assegurar a capacidade de se limitar a si própria. A nível colectivo, há exemplos dramáticos na história que nos evidenciam que o legislador (mesmo que sustentado na soberania do povo ou vontade de maiorias em determinados momentos) pode fazer o melhor e o pior do ponto de vista ético e humano.
5. Duas notas finais, em redor da ética política. A primeira, sobre Aristóteles que nos deixou na obra Retórica a sua tese sobre a argumentação. Fê-lo com base em três conceitos: Ethos, Pathos e Logos. Ethos que se exprime numa argumentação radicada no carácter do orador. Diríamos hoje, baseada numa praxis de valores, princípios de conduta e virtudes. Através do ethos, o discurso torna-se digno de confiança e de credibilidade. Pathos que significa uma retórica centrada na emoção. Aquilo que hoje associamos ao dom do carisma e da capacidade de convencimento, através da inteligência emocional e da persuasão que induzam à receptividade de quem ouve. Se for exclusivo na retórica argumentativa, o pathos pode degenerar facilmente em manipulação e demagogia. Diferentemente do ethos, centrado na pessoa do comunicador e do pathos, percepcionado do lado do receptor da comunicação, o logos valoriza a própria comunicação e argumentação. Apela por isso à razão, à logica e estruturação da linguagem e à solidez baseada no saber e no conhecimento.
Percebemos quão importantes são a harmonia entre estes três pilares da argumentação política e a conjugação plena do ethos, pathos e logos. E constatamos como escasseiam as personalidades que preencham estes três requisitos. Ou como, em política, se evidencia a diferença entre um vulgar político, um esforçado líder e um denso estadista.
6. A segunda nota, sobre a verdade entendida como o eixo central da ética política. A verdade é um bem público. Até no sentido estrito da teoria económica. Ou seja, nem é rival, nem exige o princípio da exclusão. Não é rival, porque a verdade não é apropriável por uns em detrimento de outros. Nem é excludente, porque é de acesso universal.
Porém, a mentira tornou-se um adversário poderoso da ética política. Uma nova especiaria comportamental, bem aceite (ou consentida) nos corredores do poder e das diferentes formas de comunicação e redes sociais. A verdade tem sido confrontada, senão mesmo suplantada, pelas múltiplas formas da mentira: a meia-verdade, o rumor, a dilação, o exagero, a quimera, a publicidade encapotada, a ilusão, a insinuação, a manipulação, a fantasia e outras formas capciosas de abastardar a factualidade. Uma porta meio aberta é uma porta meio fechada, mas uma meia-mentira jamais será uma meia-verdade. Embora “gratuita”, a verdade dá trabalho e exige a consonância da sua essência com o carácter e a consciência da pessoa.
Bibliografia:
- André Comte-Sponville, Petit traité des grandes vertus, ed. PUF, 2020
- António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso, Victor Gil (coord.), Temas de Ética – reflexões e desafios, ed. Principia, 2022
- José Manuel Moreira, Ética, Democracia e Estado, ed. Principia, 2002
- Maria do Céu Patrão Neves, Ética : dos fundamentos à prática, ed. 70, 2017