por Manuel Monteiro, 2024

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Democracia – Manuel Monteiro  – 2024

1. A democracia, nas palavras que Tucídides atribuiu a Péricles, é o governo em que “tudo depende não de poucos mas da maioria” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 1982, p. 109). Ora esse governo da maioria, que Platão classificou como o “governo das massas” (Platão, O Político, 2014, p. 134) e Aristóteles identificou como uma “degenerescência do regime constitucional”, já que apenas visa “o interesse dos pobres” (Aristóteles, Política, 1998, p. 283), viria muitos séculos depois, em 1863, a ficar popularmente conhecido como “o governo do povo, pelo povo, para o povo” (Abraham Lincoln, El Discurso de Gettysburg y otros escritos sobre la Unión, 2005, p. 254). Era a reafirmação do novo soberano e da democracia enquanto expressão dessa nova soberania, de uma soberania que recordava a ideia muito tempo antes defendida por Sólon segundo a qual “quando o povo é senhor do voto, torna-se senhor do governo” (Aristóteles, Constituição dos Atenienses, 2009, p. 34).

2. Mas a tese de que a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo é discutível e não anula a ideia de que a democracia é essencialmente o governo de uma “maioria numérica”. Na realidade, e como lembrou Tocqueville, a democracia é o governo da maioria porque “em todos os países onde o povo é soberano, é a maioria que governa em nome do povo” (Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 2022, p. 215). É certo que esse “governo da maioria” para ser considerado democrático está sujeito ao princípio do pluralismo constitucional (Raymond Aron, Démocratie et totalitarisme, 1998, p. 109) e estando sujeito a esse princípio está sujeito a um “conjunto de regras de procedimento para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas (Norberto Bobbio, «Democracia», in Dicionário de Política, v. 1, 2004, p. 326), mas isso em nada altera o facto do governo democrático ser o governo da maioria do povo que vota. Ele pode ser o governo para o povo, mas não é nem um governo que resulta da escolha de todo o povo, nem o governo pelo povo.

3. Sendo então a democracia o governo da maioria a compreensão sobre o governo democrático implica igualmente perceber o que significa essa maioria, desde logo porque a maioria dos que votam (nos casos em que o voto não é obrigatório) pode apenas ser a maioria da minoria, o que se traduzirá na existência de um governo que representa não a parte maioritária do povo, mas a parte maioritária de uma minoria desse povo (Manuel Monteiro, Do Recenseamento Eleitoral em Portugal, 2012, p. 412). Por outro lado a maioria pode resultar da soma dos que perderam as eleições, desvirtuando a substância do princípio inerente à própria ideia de opção popular democrática. Mesmo que possua suporte formal, esta situação configura a superioridade da soberania do parlamento sobre a soberania do voto e quando o parlamento é mais uma assembleia representativa de partidos do que uma assembleia representativa de eleitores, a maioria espelha a primazia das vontades partidárias face à vontade eleitoral.

4. Nenhuma das considerações anteriores ignora os princípios que devem identificar um regime democrático, princípios que em primeira instância garantem “uma ordem de valores fundada no carácter transcendente da dignidade da pessoa humana” (Paulo Otero, A Democracia Totalitária, 2001, p. 83) e que asseguram a existência da liberdade de opinião, do pluralismo competitivo para a conquista do poder político, da igualdade perante a lei e da separação de poderes. Todavia, o facto de não serem ignorados esses princípios não impede que a reflexão sobre a democracia nos leve ainda a questionar se o governo pela maioria escolhido através de eleição é verdadeiramente democrático. Aristóteles e depois dele Montesquieu consideravam que não. Este último afirmou mesmo que “o sufrágio pelo sorteio é da natureza da democracia; o sufrágio pela escolha é da natureza da aristocracia” (Montesquieu, O Espírito das Leis, 1996, p. 22). A democracia demonstra assim também ser selectiva, pelo que o modo que conduz a essa selecção não deva nunca ser desvalorizado.

Bibliografia principal:

  • Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, [trad. para port. de Carlos Monteiro de Oliveira], João do Estoril, Principia, 2002.
  • Aristóteles, Política, 1ª ed. [trad. para port. a partir do grego, de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes], Lisboa, Vega, 1998.
  • Paulo Otero, A Democracia Totalitária, Cascais, Principia, 2001.
  • Raymond Aron, Démocratie et Totalitarisme, Paris, Gallimard, 1998.
  • Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, [trad. do grego de Mário da Gama Kury], Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982.
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