por Manuel Carneiro da Frada, 2024

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A designação tem sido empregue para identificar uma corrente do pensamento – difusa nos seus contornos, mas com presença marcante na actualidade – caracterizável genericamente por pugnar de forma activa por um conjunto de enunciados identificados usualmente com a «teoria do género», a «teoria crítica da raça» e a «teoria da interseccionalidade», ou agrupados em torno deles.

A primeira rejeita a determinação biológica do sexo (homem/mulher), afirmando em seu lugar que o «género» é um produto cultural; que pode, por isso, ser escolhido, importando derradeiramente a consciência individual de cada um a respeito da sua identidade sexual – com o inerente favorecimento de “transgéneros” -, e a que por vezes se associa, mas contraditoriamente, um feminismo radical. A segunda reactiva a ideia da raça enquanto absolutamente determinante do comportamento social, criticando essencialmente a raça branca, tida (fatalmente) por privilegiada e dominadora. A interseccionalidade, por sua vez, agrega as vítimas que a consideração de diversos planos – rácico, de género, culturais, todos entre si convergentes – permite identificar: promovendo, no empolamento fortemente “identitário” a que conduz, um aceso activismo de ruptura em prol dessas mesmas vítimas por causa das múltiplas discriminações e explorações contra elas (supostamente) cometidas, ao longo da história e também na actualidade.

O homem “branco, heterossexual, supremacista, patriarcal e colonizador” emerge como símbolo de um paradigma a combater. Haveria, assim, de estar-se “alerta”, “desperto” (woke), para extirpar as dinâmicas de opressão, disseminadas por toda a sociedade, que aquelas teorias denunciam.

Na génese desta corrente – em muitos sítios, tão difundida que se mescla com o que é tido pelo “pensamento político correcto” – estará, em grande medida, a revivescência proporcionada pela escola de Frankfurt (e autores como Marcuse, Adorno, W. Reich, etc.) ao marxismo no ambiente cultural das sociedades liberais pós-modernas, incorporando a teoria do conflito social correspondente, assim como a convergência com o pansexualismo de origem freudiana, propiciando uma desconstrução ideológica progressiva de representações e estruturas sociais comuns, entre as quais a família.

Muito expandido nas universidades norte-americanas e europeias (falando-se mesmo de uma “religião universitária”), o wokismo acoberta-se com verdades alegadamente validadas pela ciência, segundo as quais “o sexo não existe nem importa”, “o racismo é sistémico”, “uma verdadeira descolonização nunca aconteceu” (devendo agora continuar-se num processo para reparar injustiças históricas), há uma “masculinidade” ou “branquitude tóxica” que inquina a vida social, a família constitui nuclearmente, tal como a cultura dominante, uma estrutura de poder de que urgiria “emancipar-se”, a objectividade do conhecimento não é possível, precisando de ser substituída por uma “epistemologia do ponto de vista” ou uma atitude, individual ou de uma classe ou grupo, consoante as matérias), etc.. Na conjugação de todos estes factores, o wokismo é por muitos considerado um sinal autofágico da decadência da cultura dita ocidental.

Características típicas deste modo de pensar são (i) o primado da colectividade a que pertence o sujeito sobre a pessoa, cuja identidade se define e limita irremovivelmente pela do grupo em que se insere; (ii) da vontade sobre a razão, tida por inapelavelmente não apta para o diálogo social já que maculada insuperavelmente por certas condições de base do sujeito, geradoras de estruturas de domínio, importando antes o empenho militante de alterar essas mesmas estruturas; (iii) do poder sobre a autoridade: reduzindo-se a interacção humana a um exercício do poder, urgiria provocar um “empoderamento” das suas vítimas típicas (identificadas segundo as acima referidas teorias) em confronto com a (legítima) autoridade estabelecida; pretendendo modificar a ordem socialmente implantada em obediência às lógicas “identitárias” propiciadas por aquelas mesmas teorias do género, da raça e da interseccionalidade; (iv) a rejeição de regras morais, tidas por instrumentos seculares de opressão, de sujeitos e de grupos sociais; bem como uma oposição, mais ou menos velada, ao cristianismo (na pretensão que apresenta de uma verdade última e de um sentido totalizante do mundo e da vida, contrastante com a matriz libertária e relativista deste tipo de pensamento).

São abundantes os desvios, as inconsistências e as contradições que o pensamento woke apresenta. A proliferação de conteúdos de conhecimento produzidos em muitos meios universitários modernos sem suficiente certificação favorece tomarem-se certas asserções e conceptologias por científicas, embora desprovidas de uma validação credível, não raro discriminando segundo o seu teor. Divide-se o mundo, de forma maniqueísta, em culpados e não culpados, puros e impuros – por suposto, sem Deus nem possibilidade de redenção -, todos inapelavelmente determinados pela posição de partida que lhes corresponde (de vítima ou de opressor, de privilegiado ou de perseguido) segundo as dicotomias branco/negro, homem/mulher, heteressexual/transgénero, colonizador/colonizado, cristão/não cristão a que pertencem. Desvalorizam-se muitas vezes, ou rejeitam-se sem motivo, as percepções comuns, ignoram-se dados biológicos ou antropológicos, reinterpreta-se ou reescreve-se de modo parcial a história, descrê-se da liberdade humana como determinante desta, nega-se a capacidade da razão de aceder a enunciados verdadeiros, a vinculação da pessoa a enunciados morais, esquece-se a radical igualdade do género humano e de todos os indivíduos que o compõem (recusando a reciprocidade das pretensões que se apresentam), etc.

O militantismo woke tem procurado apropriar-se de diversas causas indiscutivelmente justas, mas expulsando destas quem não detém as suas marcas identitárias. Incoerentemente, uma certa origem libertária cedeu o passo a rigidificações ideológicas, do mesmo modo que o seu subjacente relativismo se converteu, afinal, num sectarismo e dogmatismo que rejeita a discussão racional: tudo se resumiria, no fundo, a um tema de poder, individual ou social, como tal devendo ser tratado. O Direito é reduzido, assim, ao “político” (lato sensu), nenhum reduto oferecendo a ninguém fora desse âmbito. Desse modo abriram caminho vanguardismos de iluminados, a legitimação dos necessários “endoutrinamentos”, um activismo universitário que se permitiu a selecção de docentes em função do teor do seu pensamento nas temáticas woke propiciando, por fim, o controlo do pensamento e da palavra. Tal tem como consequência uma “cultura do cancelamento”, outra designação deste tipo de pensamento, profundamente auto-referencial, que exclui e tem afastado muitas vezes, sumariamente, do areópago público aqueles que apresentam opiniões contrários aos dogmas desta corrente.

A reabilitação do diálogo social afectado por esta mentalidade requer, por isso, elementarmente, a proclamação e a defesa da liberdade de cada um; um fortalecimento do discurso racional (do pensamento crítico na vez de uma unilateral “teoria crítica”), da busca da verdade e do bem de todos como ponto fixo da convergência a que todos são socialmente convocados (na pluralidade de entendimentos que possam apresentar-se), reflectindo a unidade essencial do ser humano; o reconhecimento de que ele se não encontra fatalmente submerso na sua circunstância; a dignificação da pessoa e o respeito das estruturas sociais (família, comunidade política) de que ela carece, naturalmente, para se expressar, realizar e desenvolver.

Bibliografia:

  • Jean-François Braunstein, A Religião Woke, Lisboa, 2023
  • Helen Pluckrose e James Lindsay, Teorias Cínicas: como ativistas académicos reduziram tudo a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica a todos, Lisboa, 2021
  • Noelle Mering, El Dogma Woke, Madrid, 2023
  • Robert P.George, Making Men Moral. Civil Liberties and Public Morality, Oxford: Clarendon Press, 1995
  • Patrícia Fernandes,  «O Wokismo não existe? Uma aproximação filosófica ao paradigma identitário», in Crítica XXI, 5 (Outono 2023), 77 ss.
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