por Mafalda Barbosa, 2024

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1. A inteligência artificial pode, numa perspetiva simplificadora, ser concebida como a capacidade que sistemas computacionais têm de simular a inteligência humana, aprendendo pelos seus próprios meios e realizando determinadas atividades forma autónoma. Os algoritmos inteligentes, capazes de processar, massivamente e a uma velocidade avassaladora, enormes quantidades de dados, através dos quais constroem o seu próprio conhecimento, que depois utilizam para se reconfigurarem, podendo chegar a reescrever a sua própria programação, oferecem, desta forma, desempenhos outrora inimagináveis, anunciam benefícios consideráveis quer nas atividades do quotidiano, quer em domínios específicos: veículos autónomos, motores de pesquisa, sistemas de diagnóstico médico, robots cirúrgicos, sistemas preditivos nos mais variados domínios, sistemas de decisão automática, aplicações múltiplas são alguns dos exemplos com que nos confrontamos já no presente. As vantagens destes sistemas inteligentes não apagam os riscos que lhes andam associados: riscos que se repercutem quer ao nível da intromissão nos dados pessoais, de que a inteligência artificial se alimenta, com a possibilidade de criação de situações de manipulação informativa, de condicionamento decisório e de discriminação, mas também de riscos de ocorrência de lesões, por os comportamentos dos algoritmos se tornarem cada vez mais imprevisíveis e incontroláveis. 

2. Acresce a tudo isto o anúncio utópico ou distópico, consoante a perspetiva, de uma alteração do próprio homem, que não pode ser senão compreendida como uma degradação do mesmo. Na verdade, não raras são as vozes que anunciam, por força da miscigenação entre a tecnologia e a biologia, a transformação do homem num ciborgue ou a sua vivência como um avatar, operando-se uma metensomatose, isto é, “a passagem (meta-) de um corpo (soma) – no caso vertente, o nosso invólucro biológico – para (en-)outro, o computador” [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade. Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018, 15]. O ser humano, pós-humano ou transumano, conheceria um novo período, marcado pela superação das suas limitações. Desde logo, encontramos os que, na prática ou em teoria, propõem a implementação de componentes tecnológicas no corpo humano (v.g. implantação de sensores subcutâneos (chips), que medem constantemente a temperatura corporal ou os níveis de glicose; colocação de implantes com íman, para se conseguirem abrir portas sem utilização de chaves; injeções de ADN, usando a tecnologia de edição de genes CRISPR). Por outro lado, no momento em que se atingir um nível de inteligência artificial forte, existirá uma nova forma de o homem se alimentar, o sistema digestivo será redesenhado, o sangue será reprogramado, dispensar-se-á o coração, pela utilização de nano partículas que o tornam despiciendo na sua função de bombear o sangue, poderá ser redesenhado o cérebro humano, designadamente através da introdução de implantes para substituir retinas danificadas, para resolver problemas cerebrais, ou de sensores que garantam a mobilidade de pessoas paralisadas, chips que viabilizem a leitura de pensamentos entre humanos (Ray Kurzweil, Singularity is near, When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006). Atingir-se-á o homem versão 3.0, com a possibilidade de mudança do corpo, pela introdução de MNT-based fabrications, que viabilizarão a alteração rápida da manifestação física pela vontade. Ademais, alguns autores profetizam o surgimento de dispositivos tecnológicos superinteligentes. A evolução culminaria com a possibilidade de se transferir a mente humana para um computador. Para tanto, seria necessário fazer um scan detalhado de um particular cérebro humano, reconstruindo a partir daí o network neuronal que o cérebro implementou e combinando isso com os modelos computacionais de diferentes tipos de neurónios, o que seria potenciado pela computação quântica. A mente humana, com a memória e a personalidade intactas, poderia ser transferida para um computador, no qual passaria a existir como um software, podendo habitar o corpo de um robot, ou no qual existiria como um avatar [Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005 12]. 

3. Estão aqui em causa duas perspetivas diversas, que convergem no otimismo em relação ao futuro da inteligência artificial. Uma primeira perspetiva coloca o acento tónico na ideia de que surgiria um novo homem, resultado da miscigenação entre homem e máquina, ou pela introdução de componentes humanas na máquina ou pela implantação de componentes tecnológicas nos corpos humanos; uma segunda perspetiva que afirma a existência futura de dispositivos super inteligentes que, adquirindo consciência, passariam a agir por si mesmos e para si mesmos e, subsequentemente, disseminar-se-iam, dotando-se de meios mais poderosos que levariam à destruição do homem, sucedendo-lhe na grande cadeia de evolução. [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade, 26 s.]

4. São inúmeras as questões ético-filosóficos que se suscitam. Não só a singularidade tecnológica conduz a um dualismo radical próprio do pensamento gnóstico e do materialismo positivista, incompatível com a adequada compreensão do homem enquanto pessoa, na sua unicidade transcendente [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade , 17 s.], como somos confrontados com a questão de saber onde se situa o limite da intervenção sobre o corpo humano, ou, de uma forma mais ampla, qual o limite da própria humanidade. Por outro lado, se o anúncio profético de uma pós-humanidade que, ou por empobrecimento da condição humana, ou por criação de uma espécie de super-humanos que colocariam numa posição de inferioridade todos aqueles que não pudessem ter acesso às novas tecnologias, levando à extinção da própria humanidade, chocaria com o sentido axiológico da pessoalidade em que radicam os ordenamentos jurídicos e se revela (ou parece revelar) utópico, porquanto a inteligência não se reduza a um processo físico de produção de sinapses, antes sendo entretecida por múltiplas dimensões que não são vivenciáveis na ausência da dimensão espiritual do homem, no tempo presente parecem já concretizar-se ameaças próprias da literatura distópica. 

5. Entre esses problemas contam-se: o potencial de intromissão na esfera de privacidade de cada um; a possibilidade de, com base nas decisões algorítmicas, o homem ser colocado numa caixa de ressonância; o risco de manipulação informativa; o risco de discriminação (em sentido estrito ou em sentido económico-comercial, fruto ou do enviesamento originário do algoritmo ou da incapacidade que ele denota de compreender a dimensão semântica dos signos que mobiliza) ou mesmo de manipulação emocional; o risco de produção de deep fake news e de, com isso, se agravar um fenómeno de desinformação. Acresce que os diversos sistemas autónomos podem gerar lesões e, consequentemente, danos, de natureza patrimonial ou não patrimonial, tornando-se particularmente difícil garantir o ressarcimento dos mesmos, quer pela dificuldade de prova da culpa do programador ou do utilizador, quer pela dificuldade de estabelecimento de um nexo de causalidade, tanto mais que os sistemas autónomos operam como verdadeiros ecossistemas. O problema, aliás, agrava-se pela necessária interferência dos dados no processo de aprendizagem e tomada de decisão do algoritmo. Na verdade, se a simples corrupção de dados é suficiente para determinar um resultado errado, os problemas agravam-se a partir do momento em que o sistema autónomo pode ser alimentado por dados de segunda geração, criados pelos próprios algoritmos, que podem, atentas as limitações do seu funcionamento, baseado exclusivamente no estabelecimento de correlações estatísticas, não identificáveis com relações de causalidade, eles mesmos conter deturpações. 

6. Torna-se, por isso, fundamental disciplinar a IA, existindo diversos modelos para tanto, entre os quais destacamos o modelo regulatória aprovado ao nível europeu, com o IA Act. Mas torna-se também fundamental consciencializar o ser humano para a necessidade de desenvolver as suas capacidades especificamente humanas que, por mais desenvolvida que seja a inteligência artificial, jamais estarão ao alcance de algoritmos autónomos. Escapar-lhes-á sempre a dimensão de pensamento crítico, de criatividade, de ajuizamento ético e a capacidade de se autotranscender. 

Bibliografia:

  • Mafalda Miranda Barbosa, Inteligência artificial. Entre a utopia e a distopia. Alguns problemas jurídicos, Gestlegal, 2021
  • Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005 12
  • Pedro Domingos, A Revolução do Algoritmo Mestre, Manuscrito Editora, 2017
  • Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade, Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018, 17 s.
  • Ray Kurzweil, Singularity is near, When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006
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