por Francisco Carmo Garcia, 2024

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1. A autoridade está intimamente ligada à inevitável relação de protecção-obediência. Aliás, podemos dizer que o recurso à autoridade é uma das respostas dadas à pergunta clássica sobre Porque devo obedecer? ou à concomitante A quem devo obedecer?. É como resposta a estas duas questões que a autoridade mostra os seus traços distintivos (e que têm sido tão apagados nos últimos tempos) que a diferenciam do conceito de poder. Respeitando a essência da autoridade, temos de deixar claro que ela não é o mesmo que poder: ela ultrapassa a mera fisicalidade do poder e uma visão instrumental a que o poder necessariamente se reduz.

2. Mais do que ver com poder, a autoridade associa-se mais perceptivelmente à legitimidade. Pelo menos foi nela que Max Weber fundamentou a sua tipologia de fontes de autoridade, que distingue entre a autoridade tradicional (fundada no costume), a racional-legal (fundada numa crença na legalidade das normas produzidas por uma ordem impessoal à qual se conferiu o direito de as produzir), e a carismática (fundada no exemplo «extraordinário» de uma pessoa). Apesar de Weber associar a autoridade destas fontes por ele identificadas à sua legitimidade, é evidente que a autoridade carismática é aquela que mais foge a uma ligação à legitimidade: o carisma (o khárisma) pode criar legitimidade, mas não deriva necessariamente dela. O carisma é dom (e, desde logo, dom divino), que concede qualidades extraordinárias a quem o recebe. Confere-lhe autoridade. Neste sentido, a autoridade surge como um conjunto de qualidades extraordinárias – poderíamos dizer, «aristocráticas» – que conferem uma superioridade distintiva da pessoa autoritativa em relação a todas as restantes. Visto isto, não pode passar despercebido o problema que a autoridade traz à própria democracia como regime de igualdade. A autoridade põe em perigo constante o igualitarismo inerente à democracia.

3. Ora, não sendo nem poder nem legitimidade, como podemos saber o que é realmente a autoridade? A resposta está no seu sentido originário. O vocábulo «autoridade» deriva da auctoritas latina, que tem a sua raiz etimológica no verbo augere (que significa «aumentar» ou «acrescentar») e no substantivo auctor (aquele que aumenta ou que acrescenta). No seu significado latino, a autoridade liga-se ao aumento e ao acréscimo – ou seja, ao reforço ou à melhoria de algo que já existe. Falando nos termos que tanto se usam hoje, diríamos que o «autor» é aquele que acrescenta valor. A autoridade assemelha-se, assim, à actividade do conselho; mas é mais do que conselho, porque como opinião autoritativa acaba por condicionar a acção do aconselhado (vindo o conselho de alguém que tem autoridade para falar sobre um determinado assunto, o melhor é não fazermos o contrário do que ela sugere…). Assim, a autoridade assemelha-se ao prestígio, ou melhor, ao reconhecimento de uma qualidade extraordinária na pessoa que a possui. Não é por acaso que a auctoritas se fundou na ideia de excelência ou de virtude. A sua essência é precisamente a excelência ou a virtude publicamente reconhecidas.

4. A tradução política da auctoritas estava, no tempo da República Romana, no Senado. Como Cícero escreve, a «harmoniosa constituição» da República consistia na atribuição do «poder supremo» ao povo e da autoridade ao Senado, sendo o fundamento desta última o consilium ou a sabedoria. Os membros do Senado deviam ser, portanto, exemplos para o resto da cidade: o senador devia ser um exemplo de honra e de virtude. Actuando como o órgão de consilium, o papel do Senado era semelhante ao da «razão» ou da «inteligência» na alma humana. Com efeito, dificilmente se pode ignorar que a autoridade surge, neste seu sentido original, com o papel que a parte «racional» exerce na alma platónica, ordenando as suas partes inferiores, a irascível e a irracional. Ou melhor, visto que não corresponde a uma sede de poder, validaria, aperfeiçoava ou completava a acção dos restantes órgãos públicos. Mais próximo de nós, na Europa medieval, a sede de autoridade haveria de estar na Igreja, cuja autoridade não se ficou pela continuidade da tradição, mas fundamentou-se na transmissão da verdade revelada. Neste sentido, a fonte de autoridade é sempre uma ideia de «vida boa» ou de melhor modo de existência para o homem.

5. A autoridade responde, assim, à pergunta A quem devo obedecer? ou Porque devo obedecer? com um claro pendor aristocrático. A autoridade faz-se obedecer não porque nela se baseia o poder supremo ou a legitimidade conferida pelo direito (como poderíamos dizer que acontece com a soberania), mas porque nela se reconhece que o que a autoridade prescreve é verdadeiro, justo ou bom. Em suma, a autoridade é o princípio de ordem imprescindível e indissociável de uma visão teleológica do mundo, e é também por isso que a sua relação com a democracia – e com a modernidade liberal no geral – é tão difícil e, por vezes, mesmo polémica.

Bibliografia:

  • CÍCERO. De Legibus. Livro III. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1959.
  • ARENDT, Hannah. «O que é a Autoridade?». Entre o Passado e o Futuro. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.
  • MORGADO, Miguel. Autoridade. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010.
  • WEBER, Max. Economia y Sociedad. Tradução de José Medina Echevarriaga. I. México: Fondo de Cultura Economica, 1944.
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