por Mafalda Miranda Barbosa, 2024
1. O transumanismo pode caracterizar-se como uma corrente do pensamento que visa transformar a condição humana, superando as suas limitações e alcançando as suas máximas potencialidades, de ordem física e mental. Se ao longo dos tempos as tentativas de superação das fragilidades sempre existiram, hoje, quando somos confrontados com a hipótese de melhoramento genético, de criação de ciborgues, de superação da mortalidade pela transformação do homem num avatar que, habitando num ambiente computacional, reproduz a rede neuronal do falecido, o sinal de alarme parece soar. A revolução tecnológica tem vindo a determinar que a atuação sobre o corpo humano não seja, nos nossos dias, necessariamente determinada por um estado de doença, interferindo-se com a biologia humana não para prevenir, minorar ou curar uma patologia, mas para se obter uma maior eficiência corporal e mental ou mesmo para se perpetuar a vida. O transumanismo surge, portanto, como expressão da possibilidade que a espécie humana tem de, querendo, transcender-se a si própria como humanidade. Correspondendo a uma aspiração secular do homem, é hodiernamente procurada por via da evolução tecnológica.
2. Os grandes nomes ligados à inteligência artificial têm prognosticado uma linha de evolução que culminará com o que vem já conhecido por pós-humanismo. A este propósito, Ray Kurzweil fala de singularity, um período futuro durante o qual a tecnologia evoluirá de forma tão rápida e com um impacto tão profundo que o ser humano ficará irremediavelmente transformado. Atingir-se-á o homem versão 3.0, com a possibilidade de mudança do próprio corpo, pela introdução de MNT-based fabrications, que viabilizarão a alteração rápida da manifestação física pela vontade. No fundo, o homem mergulhará numa realidade virtual, não ficando restringido por uma única personalidade, mas antes podendo projetar a sua mente em ambientes 3D e podendo escolher diversos corpos ao mesmo tempo. A expansão da mente torna-se, também, viável. A evolução culminaria com a possibilidade de se transferir a mente humana para um computador. Para tanto, seria necessário fazer um scan detalhado de um particular cérebro humano, reconstruindo a partir daí o network neuronal que o cérebro implementou e combinando isso com os modelos computacionais de diferentes tipos de neurónios, o que seria potenciado pela computação quântica. A mente humana, com a memória e a personalidade intactas, poderia ser transferida para um computador, no qual passaria a existir como um software, podendo habitar o corpo de um robot, ou no qual existiria como um avatar. Se a realidade, atualmente, nos encaminha para a existência de máquinas que desempenham funções levadas a cabo, até então, por pessoas, a complexificação dos computadores (com o surgimento de computadores moleculares 3D, nanotubos, computadores com DNA, computadores com moléculas), aptos a sentir emoções, combinada com os avanços da engenharia do cérebro viabilizarão em breve o surgimento de supercomputadores através dos quais a pessoa poderá manter-se viva para além da própria vida. O mundo tal como o conhecemos desapareceria, para que o homem vivesse como um e convivesse com avatares.
3. Estas anunciadas mudanças são de tal modo profundas e radicais que implicam a perda da própria humanidade. O sentido da dignidade humana é quebrado com a tentativa de criar um super-homem computorizado que ultrapasse as fronteiras da própria vida. Não raros são os autores que denunciam que o pós-humanismo nos conduz à degradação do ser humano, ao mesmo tempo que configura uma ameaça aos outros humanos comuns. Leon Kass considera que as formas de alteração da natureza humana são degradantes, conduzindo-nos a uma desumanização absoluta. Na verdade, a introdução dos dados neuronais humanos num computador, habilitado desta feita com uma mente concreta, implica uma coisificação do homem, contrariando o plano de desenvolvimento pessoal que culmina na morte. O prolongamento artificial da vida por meio de um elemento computacional atinge o núcleo da pessoalidade, já que a pessoa, apesar de ser uma categoria ética, não sobrevive na ausência da corporização, porque, ainda que a alma sobreviva à morte do corpo e fique a aguardar a sua ressurreição, estamos aí a falar de uma dimensão que ultrapassa aquela em que o direito intervém. O ser humano não pode deixar de ser encarado na sua unitária complexidade, sendo inviável olhar para ele sem ser na pluralidade corpo, mente, espírito e alma. De facto, a pessoa não pode ser objetivada de qualquer forma, mas é vivida e assumida na existência relacional com outros seres humanos. Já não é o ser solipsista, encerrado sobre si mesmo, mas o ser que se realiza na relação comunicativa com o seu semelhante e que tem no encontro, que obtém o seu sentido último no encontro com Deus, o seu referencial de sentido. Acresce que, em rigor, a tentativa de sobrevivência fora da corporeidade não passa de uma miragem, denunciada pelos estudiosos da mente humana. A base do ideário transumanista está, afinal, ligada a um escopo eugénico de apuramento da espécie. Ao potenciarem-se formas de manipulação genética e ao desenvolverem-se updates da biologia humana, sem a garantia da distribuição uniforme por toda a população, abrem-se as portas à seleção não natural da espécie e à criação de diversas castas de sujeitos – aqueles que tendo acesso à tecnologia emergente assumem um estatuto mais elevado e aqueles que, não tendo, acabam por ser dominados pelos primeiros.
4. A ameaça relativamente à pessoa determina que o direito tenha de intervir a este nível, reconhecendo-se limites aos direitos de personalidade que protejam o homem contra si mesmo, o que implica uma adequada compreensão daqueles na sua necessária referência ao fundamento axiológico que os predica. A dignidade humana, enquanto princípio jurídico, impede determinadas soluções e impõe certos limites. Embora possamos encontrar tantos direitos de personalidade quantas sejam as manifestações da pessoalidade do sujeito, não pode ser qualquer reivindicação assente no puro desejo arbitrário, caprichoso, solipsista e muitas vezes autista que pode ascender à categoria de direito subjetivo. O limite intransponível será sempre o da dignidade humana, o que, a concretizar-se por referência aos pretensos direitos transumanos a que a realidade tecnológica nos aporta, pode traduzir-se em alguns critérios limitadores, como seja o critério da perda de humanidade, ou seja, a interferência com o corpo, podendo implicar o desenvolvimento das potencialidades inerentes ao ser humano, não pode conduzir à sua descaracterização como pessoa. Por outro lado, não sendo o direito uma pura forma, e não estando apenas em causa dimensões subjetivas do eu, mas a sobrevivência da própria humanidade tal-qual a conhecemos, haverão de ser impostos, com apelo ao sentido fundador da juridicidade, em termos globais, limites à utilização (utópica ou distópica) da tecnologia, de modo a que esse mundo computacional – de convivência regulada entre humanos e não humanos – não conduza a uma radicalização do sistema, no qual o direito passa a ser um subsistema social sem sujeitos e sem capacidade de reconhecimento e proteção das pessoas.
Bibliografia:
- Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005
- Nick Bostrom, Superintelligence: paths, damages, strategies, Oxford University Press, 2014
- Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade. Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018
- Leon Kass, Life, Liberty and Defense of Dignity: The Challenge for Bioethics, São Francisco, Encounter Books, 43.
- Ray Kurzweil, Singularity is near, Viking, 2005
- Hans Moravec, Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica, Gradiva, 1988
- Devin Proctor, On Being non-human: otherkin identification and virtual spaces, Proquest LLC, 2019
- Vernon Vinge, “The coming technological singularity”, Vision-21: interdisciplinary science and engineering in the era of cyberspace, www.rohan.sdsu.edu/faculty/vinge/misc/singularity.html