por Manuel Carneiro Frada, 2024
O relativismo representa uma corrente de pensamento segundo a qual a verdade é inacessível à razão humana e esta é, assim, incapaz de produzir afirmações susceptíveis de um juízo de verdadeiro ou falso. Todas elas seriam, portanto, meramente relativas. Tem por objecto as realidades não acessíveis a um conhecimento de tipo físico-empírico ou matemático (e, nesse sentido, da “metafísica”, da “moral”, do bem e do justo). Comprová-lo-ia a pluralidade culturas. Pode ter na sua base uma compreensão de tipo racionalista (sob influência de Kant, admitindo que o conhecimento da realidade em si é inacessível ao sujeito), ou uma atitude antirracionalista, radicalmente subjectivista, baseada na experiência pessoal (de que são exemplo orientações ecléticas de cariz gnóstico-religioso como o New Age, ou o culto ecofeminista da Mãe-Terra).
Consequência do relativismo é o cepticismo moral, que nega aos enunciados morais a possibilidade de uma pretensão de verdade, equiparando-os todos entre si.
É-o igualmente o sincretismo religioso, segundo o qual todas as religiões são, no fundo, todas elas, iguais: importaria apenas e tão só a experiência religiosa de cada um. (Conduz assim a um antropocentrismo religioso, em que o homem, e não Deus, passa a ser o referente último da religião, rejeitando, no fundo, a transcendência deste relativamente a si próprio: em contraste com o entendimento das três religiões monoteístas, e aqui em convergência com aspectos da religiosidade de tipo hindu.)
O relativismo enfrenta aporias teóricas e práticas de grande relevo. Por um lado, no plano lógico, ele defronta-se desde logo com a objecção de que a asserção segundo a qual não pode haver nunca conhecimento verdadeiro ou falso (fora do âmbito físico-empírico) também deve, coerentemente, ser relativizada (de modo absurdo, o relativismo supõe-se verdadeiro). Por outro, no plano prático, deixaria de haver critério intersubjectivamente válido e vinculante para justificar a exigibilidade social de muitos comportamentos necessários à paz e à justiça social – que todos reconhecem e podem ou devem reconhecer (por exemplo, as virtudes de uma boa cidadania) -, assim como a proibição de outros (v.g., a pedofilia, a corrupção, o desprezo das minorias étnicas, as perseguições por motivos de consciência, etc.).
O relativismo desagua por isso num pragmatismo, utilitarismo ou consequencialismo que torna indefesos indivíduos e minorias perante o poder instalado e maiorias sociais conjunturais. Propicia, nessa medida, regimes totalitários e todo o tipo de atentados à dignidade da pessoa humana (de que são exemplos eloquentes o nazismo, o estalinismo, etc.). Deixando de se reconhecer ao pensamento a capacidade de captar, mesmo se com limitações impostas pela perspectiva do sujeito do conhecimento, a verdade, ele transforma-se na racionalização de uma simples praxis. A descrença no papel da razão torna também impossível e radicalmente inútil, apesar da aparência, qualquer diálogo público construtivo acerca do bem, e faz a tolerância perder a sua exigibilidade. Inviabiliza também uma instância racional crítica dos fenómenos sociais, mesmo violentos, dos abusos da maioria, das degenerações ou deturpações do (são) espírito religioso, etc. Despojado de qualquer referência a um ponto fixo (absoluto), o relativismo passa facilmente a ser, ele próprio, supérfluo.
Nenhuma sociedade subsiste, pois, num ambiente radicalmente relativista. E facto é que a pluralidade de culturas e percursos põe também de manifesto um conjunto de conhecimentos fundamentais que sustentam a humanidade, assim como a sedimentação de algumas ordenações morais essenciais, expressando referentes de sentido comuns que manifestam a unidade do ser humano e a sua vinculação a uma verdade totalizante que sobrepassa a experiência histórica e constitui a razão do mundo e de tudo o que existe.
Em abono do relativismo invoca-se frequentemente a tolerância e a necessidade de respeitar a liberdade dos demais: a ninguém seria permitida a pretensão de formular juízos credíveis de validade acerca do caminho certo, recto ou justo. É por vezes apontado como o fundamento da democracia e da possibilidade de concorrência, nesta, de uma pluralidade de opiniões políticas.
Nenhuma destas asserções se apresenta, porém, forçosa ou, mesmo, exacta.
A construção da sociedade política é necessariamente conjuntural, no tempo e no espaço, não definitiva e, portanto, revisível, sendo o princípio (do entendimento) da maioria um critério operativo essencial em ordem à prossecução do bem comum (tanto mais de considerar quanto ele expresse a racionalidade em torno do bem e do justo). Por outro lado, o fundamento da tolerância que mais imuniza dos comportamentos a ela contrários é precisamente uma concepção não relativista da dignidade da pessoa humana, a implicar o respeito pela sua liberdade, e que mantém a abertura a um processo dialógico de convergência para a verdade acerca do bem e do justo. Só essa concepção permite uma visão crítica da história. Ela é preferível, pois apenas ela possibilita uma dinâmica racional de aperfeiçoamento das sociedades humanas.
A crítica ou a superação do relativismo requer o reconhecimento da capacidade da razão humana de aceder à verdade de forma objectiva: numa versão minimalista, entre duas asserções será sempre possível escolher com objectividade a mais verdadeira. Tal reconhecimento constitui uma condição “pedra de toque” também para os relativistas ditos “moderados”. Ele não implica, porém, atribuir-se à razão humana a possibilidade de um conhecimento integral, completo e definitivo da “totalidade do ser” – do humano e das coisas – ela (se se quiser, da verdade como absoluto). Sendo, portanto, compatível com uma maior ou menor relevância da perspectiva do sujeito (nesse sentido, da relatividade do conhecimento humano), a luta da razão humana pela verdade não é, não obstante, uma vã e insuperável ilusão. Entendida deste modo, a pluralidade de opiniões ou culturas (a respeitar) converte-se numa oportunidade de progredir no caminho da verdade; a sua consideração pode mesmo ser uma necessidade com vista a esse fim.
Em última instância, só a orientação para a verdade é capaz de projectar o pensamento humano para lá de si próprio, assegura um sentido à vida de cada um, e torna cada pessoa mais capaz de garantir o respeito da liberdade e da dignidade dos demais, protegendo-a de todas as instrumentalizações, totalitarismos e “lógicas de poder”.
Tu verdad?/ No: la verdad./ Y ven conmigo a buscarla; /la tuya, guardatela. (António Machado)
Bibliografia:
- Vittorio Possenti, Le società liberali al bívio. Lineamenti di filosofia della società, Génova, 1991
- José Antonio Santos, “Tolerancia y relativismo en las sociedades complejas”, in Persona y Derecho, 56 (2007), 177 ss.
- Mário Emílio Bigotte Chorão, “Democracia, relativismo e ameaça totalitária”, in Pessoa humana, direito e política, Lisboa, 2006, 363 ss.
- Joseph Ratzinger, Verdade, valores, poder, Lisboa, 2006.
- Robert Spaemann, «Wahrheit und Freiheit», in Gesammelte Reden und Aufsätze, I, München, 2010, 310 ss.