por Alexandre Franco de Sá, 2024

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1. O conceito de razão de Estado remete à «arte de governar» da antiguidade clássica. Segundo Aristóteles, quando o governante o é por natureza, tendo uma superioridade natural em relação aos governados, é possível distinguir duas formas de governo. Uma delas consiste no «uso» (chrēsis) que é próprio do governo despótico. Neste governo, o «fim» ou telos da relação encontra-se do lado do governante. É o uso que está presente na relação pela qual a alma usa o corpo; é também ele que, em contexto familiar, estabelece a relação pela qual o senhor usa o corpo do escravo que lhe pertence (Política, 1254b4). Na relação política entre homens livres, o governo despótico é injusto e corresponde à tirania. A segunda forma de governo tem como modelo a relação entre o pai e os seus filhos. Nesta, o governo não é uso, mas cuidado: o «fim» da relação de governo não se encontra no governante, nas no governado. Tal governo é aquele pelo qual a parte superior da alma, a sua inteligência ou razão, conduz desejos e apetites, governando-os tal como um pai cuida dos seus filhos, guiando-os pelo seu conselho (Ética a Nicómaco, 1103a3). A partir desta segunda forma de governo foi possível conceber uma «arte régia» (technē basilikē), a arte de governar enquanto arte do príncipe ou arte de cuidar do Estado.

2.  «Arte do Estado» (arte dello stato) é a expressão com que Maquiavel, em carta a Francesco Vettori, anuncia a redacção do Príncipe (1513). Trata-se de uma arte de conquista e conservação do poder que poderia ser aprendida pela evocação de exemplos tanto presentes como passados, pois a natureza humana seria imutável e a arte do Estado, que o príncipe teria de cultivar, seria a arte de lidar com os homens. Para Maquiavel, a arte do Estado consiste na capacidade do príncipe para aproveitar as circunstâncias – a fortuna – a seu favor, não hesitando em fazer o que estas exigem e cultivando, em face delas, uma atitude viril e ousada (a virtù). Diante desta «arte do Estado», e contra ela, o conceito de «razão de Estado» é introduzido pela ideia de que o príncipe só conseguirá conservar o seu poder se no seu modo de actuar não deixar de observar as virtudes que tornarão a sua autoridade reconhecida. O livro Da Razão de Estado (1589), do ex-jesuíta Giovanni Botero, amplamente divulgado e traduzido na época para latim, espanhol e alemão, estabelece o conceito como assente na compatibilidade entre a «razão de Estado», cujo fim é a conquista, conservação e ampliação de um domínio, e a «virtude do Príncipe», pela qual este poderia garantir, junto dos súbditos, a sua obediência e reconhecimento.

3. Depois de Jean Bodin ter definido a soberania como «potência absoluta e perpétua de uma república», tornou-se possível desenvolver a ideia de um poder que, não sendo condicionado por qualquer princípio exterior de justiça, seria determinado por si mesmo, por uma lei intrínseca a si mesmo enquanto poder. Por isso, no século XVII, a razão de Estado aparece como a simples tradução do interesse do príncipe que incorpora ou representa o Estado. Como disse Henri de Rohan, o duque huguenote que na França estava ao serviço do Cardeal Richelieu: «Os príncipes comandam os povos e o interesse comanda os príncipes». Ao ser associado ao interesse, o conceito de razão de Estado torna-se a base para pensar acções políticas que não hesitem em sobrepor-se, caso seja necessário, à observação das leis. É o que Gabriel Naudé afirma em Considerações Políticas sobre o Golpe de Estado (1639). Para Naudé, o príncipe deve governar não apenas pelas leis, mas acima das leis, caso a necessidade o exija. O «golpe de Estado» é o desenvolvimento extremo da «razão de Estado»: as razões de Estado seriam as causas e princípios que legitimariam a acção do príncipe; entre estas, o golpe de Estado consistiria naquelas razões em que «a execução precede a sentença», razões que, por esse motivo, se teriam de manter escondidas. A razão de Estado pode levar o soberano a actuar à margem da lei, decidindo a sua acção em segredo e mantendo-a secreta por uma arte de encobrimento que Torquato Acceto louvou em Da Dissimulação Honesta (1641). No mesmo ano, em Leviathan, Thomas Hobbes argumenta que, mesmo num acto que possa ser iníquo, de modo nenhum o soberano é injusto, pois é da soberania que decorre a distinção entre justiça e injustiça. O soberano é, portanto, sempre justo, pois é na sua pessoa que está presente – e se representa – a lei e a commonwealth enquanto unidade política que nela se alicerça. É por isso que ele é detentor da razão de Estado, encerrando nela os segredos de Estado, os arcana imperii.

4. Entre os séculos XVIII e XIX, a soberania monárquica em que o Rei se identifica com o Estado, e a razão de Estado com o interesse do príncipe, é posta em causa pela convergência entre a ideia democrática da soberania popular e o princípio liberal da publicidade das discussões e decisões. A razão de Estado aparece ligada a uma prática política barroca, centrada na penumbra dos gabinetes ministeriais, assente no segredo necessário à execução de interesses inconfessáveis. Tal segredo seria incompatível com uma era liberal e democrática cujos princípios de legitimidade gravitam em torno de ideias como liberdade de discussão e de imprensa, publicidade e transparência, discussão parlamentar e valorização da opinião pública. A ideia de razão de Estado aludia às razões subjacentes à conduta dos Estados na prossecução dos seus interesses, razões essas que poderiam requerer discrição ou mesmo segredo. Quando estas razões são deslegitimadas e o segredo se torna ilegítimo, paulatinamente deixa de ser possível invocar um interesse do Estado e o próprio Estado torna-se uma estrutura colocada ao serviço de grupos que, com os seus interesses próprios, o ocupam, capturam e controlam. Em substituição da razão de Estado, emergem então as técnicas de propaganda, manipulação e mobilização mediática que servem estes grupos. Por isso, pode-se dizer que hoje, nos arcana imperii subjacentes à arte de governar, já não se encontram os segredos da razão de Estado. Encontram-se antes outros segredos. Encontram-se as técnicas de controlo mediático da população pelas quais se forma a opinião pública, bem como os interesses servidos por tais técnicas.

Bibliografia:

  • Diogo Pires Aurélio, Maquiavel e Herdeiros, Lisboa: Círculo de Leitores, 2012;
  • Friedrich Meinecke, Die Idee der Staatsräson, München / Berlin: Verlag R. Oldenbourg, 1925;
  • Herfried Münkler, Im Namen des Staates. Die Begründung der Staatsraison in der Frühen Neuzeit. Frankfurt: Fischer Verlag, 1987;
  • Michel Senellart, Les arts de gouverner, Paris: Seuil, 1995;
  • Michael Stolleis, Arcana Imperii und Ratio Status: Bemerkungen zur Politischen Theorie des frühen 17. Jahrhunderts, Hamburg: Vandenhoeck & Ruprecht, 1980;
  • Étienne Thuau, Raison d’Etat et pensée politique à l’époque de Richelieu. Paris: Albin Michel, 2000;
  • Maurizio Viroli, From Politics to Reason of State, Cambridge: Cambridge University Press, 1992;
  • Yves Charles Zarka (org.), Raison et déraison d’État: théoriciens et théories de la raison d’État aux XVI et XVII siècles, Paris: PUF, 1994.
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