por Mafalda Barbosa, 2024
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1. A inteligência artificial pode, numa perspetiva simplificadora, ser concebida como a capacidade que sistemas computacionais têm de simular a inteligência humana, aprendendo pelos seus próprios meios e realizando determinadas atividades forma autónoma. Os algoritmos inteligentes, capazes de processar, massivamente e a uma velocidade avassaladora, enormes quantidades de dados, através dos quais constroem o seu próprio conhecimento, que depois utilizam para se reconfigurarem, podendo chegar a reescrever a sua própria programação, oferecem, desta forma, desempenhos outrora inimagináveis, anunciam benefícios consideráveis quer nas atividades do quotidiano, quer em domínios específicos: veículos autónomos, motores de pesquisa, sistemas de diagnóstico médico, robots cirúrgicos, sistemas preditivos nos mais variados domínios, sistemas de decisão automática, aplicações múltiplas são alguns dos exemplos com que nos confrontamos já no presente. As vantagens destes sistemas inteligentes não apagam os riscos que lhes andam associados: riscos que se repercutem quer ao nível da intromissão nos dados pessoais, de que a inteligência artificial se alimenta, com a possibilidade de criação de situações de manipulação informativa, de condicionamento decisório e de discriminação, mas também de riscos de ocorrência de lesões, por os comportamentos dos algoritmos se tornarem cada vez mais imprevisíveis e incontroláveis.
2. Acresce a tudo isto o anúncio utópico ou distópico, consoante a perspetiva, de uma alteração do próprio homem, que não pode ser senão compreendida como uma degradação do mesmo. Na verdade, não raras são as vozes que anunciam, por força da miscigenação entre a tecnologia e a biologia, a transformação do homem num ciborgue ou a sua vivência como um avatar, operando-se uma metensomatose, isto é, “a passagem (meta-) de um corpo (soma) – no caso vertente, o nosso invólucro biológico – para (en-)outro, o computador” [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade. Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018, 15]. O ser humano, pós-humano ou transumano, conheceria um novo período, marcado pela superação das suas limitações. Desde logo, encontramos os que, na prática ou em teoria, propõem a implementação de componentes tecnológicas no corpo humano (v.g. implantação de sensores subcutâneos (chips), que medem constantemente a temperatura corporal ou os níveis de glicose; colocação de implantes com íman, para se conseguirem abrir portas sem utilização de chaves; injeções de ADN, usando a tecnologia de edição de genes CRISPR). Por outro lado, no momento em que se atingir um nível de inteligência artificial forte, existirá uma nova forma de o homem se alimentar, o sistema digestivo será redesenhado, o sangue será reprogramado, dispensar-se-á o coração, pela utilização de nano partículas que o tornam despiciendo na sua função de bombear o sangue, poderá ser redesenhado o cérebro humano, designadamente através da introdução de implantes para substituir retinas danificadas, para resolver problemas cerebrais, ou de sensores que garantam a mobilidade de pessoas paralisadas, chips que viabilizem a leitura de pensamentos entre humanos (Ray Kurzweil, Singularity is near, When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006). Atingir-se-á o homem versão 3.0, com a possibilidade de mudança do corpo, pela introdução de MNT-based fabrications, que viabilizarão a alteração rápida da manifestação física pela vontade. Ademais, alguns autores profetizam o surgimento de dispositivos tecnológicos superinteligentes. A evolução culminaria com a possibilidade de se transferir a mente humana para um computador. Para tanto, seria necessário fazer um scan detalhado de um particular cérebro humano, reconstruindo a partir daí o network neuronal que o cérebro implementou e combinando isso com os modelos computacionais de diferentes tipos de neurónios, o que seria potenciado pela computação quântica. A mente humana, com a memória e a personalidade intactas, poderia ser transferida para um computador, no qual passaria a existir como um software, podendo habitar o corpo de um robot, ou no qual existiria como um avatar [Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005 12].
3. Estão aqui em causa duas perspetivas diversas, que convergem no otimismo em relação ao futuro da inteligência artificial. Uma primeira perspetiva coloca o acento tónico na ideia de que surgiria um novo homem, resultado da miscigenação entre homem e máquina, ou pela introdução de componentes humanas na máquina ou pela implantação de componentes tecnológicas nos corpos humanos; uma segunda perspetiva que afirma a existência futura de dispositivos super inteligentes que, adquirindo consciência, passariam a agir por si mesmos e para si mesmos e, subsequentemente, disseminar-se-iam, dotando-se de meios mais poderosos que levariam à destruição do homem, sucedendo-lhe na grande cadeia de evolução. [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade, 26 s.]
4. São inúmeras as questões ético-filosóficos que se suscitam. Não só a singularidade tecnológica conduz a um dualismo radical próprio do pensamento gnóstico e do materialismo positivista, incompatível com a adequada compreensão do homem enquanto pessoa, na sua unicidade transcendente [Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade , 17 s.], como somos confrontados com a questão de saber onde se situa o limite da intervenção sobre o corpo humano, ou, de uma forma mais ampla, qual o limite da própria humanidade. Por outro lado, se o anúncio profético de uma pós-humanidade que, ou por empobrecimento da condição humana, ou por criação de uma espécie de super-humanos que colocariam numa posição de inferioridade todos aqueles que não pudessem ter acesso às novas tecnologias, levando à extinção da própria humanidade, chocaria com o sentido axiológico da pessoalidade em que radicam os ordenamentos jurídicos e se revela (ou parece revelar) utópico, porquanto a inteligência não se reduza a um processo físico de produção de sinapses, antes sendo entretecida por múltiplas dimensões que não são vivenciáveis na ausência da dimensão espiritual do homem, no tempo presente parecem já concretizar-se ameaças próprias da literatura distópica.
5. Entre esses problemas contam-se: o potencial de intromissão na esfera de privacidade de cada um; a possibilidade de, com base nas decisões algorítmicas, o homem ser colocado numa caixa de ressonância; o risco de manipulação informativa; o risco de discriminação (em sentido estrito ou em sentido económico-comercial, fruto ou do enviesamento originário do algoritmo ou da incapacidade que ele denota de compreender a dimensão semântica dos signos que mobiliza) ou mesmo de manipulação emocional; o risco de produção de deep fake news e de, com isso, se agravar um fenómeno de desinformação. Acresce que os diversos sistemas autónomos podem gerar lesões e, consequentemente, danos, de natureza patrimonial ou não patrimonial, tornando-se particularmente difícil garantir o ressarcimento dos mesmos, quer pela dificuldade de prova da culpa do programador ou do utilizador, quer pela dificuldade de estabelecimento de um nexo de causalidade, tanto mais que os sistemas autónomos operam como verdadeiros ecossistemas. O problema, aliás, agrava-se pela necessária interferência dos dados no processo de aprendizagem e tomada de decisão do algoritmo. Na verdade, se a simples corrupção de dados é suficiente para determinar um resultado errado, os problemas agravam-se a partir do momento em que o sistema autónomo pode ser alimentado por dados de segunda geração, criados pelos próprios algoritmos, que podem, atentas as limitações do seu funcionamento, baseado exclusivamente no estabelecimento de correlações estatísticas, não identificáveis com relações de causalidade, eles mesmos conter deturpações.
6. Torna-se, por isso, fundamental disciplinar a IA, existindo diversos modelos para tanto, entre os quais destacamos o modelo regulatória aprovado ao nível europeu, com o IA Act. Mas torna-se também fundamental consciencializar o ser humano para a necessidade de desenvolver as suas capacidades especificamente humanas que, por mais desenvolvida que seja a inteligência artificial, jamais estarão ao alcance de algoritmos autónomos. Escapar-lhes-á sempre a dimensão de pensamento crítico, de criatividade, de ajuizamento ético e a capacidade de se autotranscender.
Bibliografia:
- Mafalda Miranda Barbosa, Inteligência artificial. Entre a utopia e a distopia. Alguns problemas jurídicos, Gestlegal, 2021
- Nick Bostrom, “A history of transhumanist thought”, Journal of Evolution and Technology, vol. 14, issue 1, 2005 12
- Pedro Domingos, A Revolução do Algoritmo Mestre, Manuscrito Editora, 2017
- Jean-Gabriel Ganascia, O mito da singularidade, Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, 2018, 17 s.
- Ray Kurzweil, Singularity is near, When Humans Transcend Biology, Penguin Books, 2006
Páginas Relacionadas:
- O Dicionário
Numa época de grande indefinição ideológica, que muitos afirmam ser pós-política, e até de tácitas alianças entre correntes de pensamento ultraliberal e movimentos de esquerda desconstrutivista, consideramos essencial recuperar ideias e valores contribuindo para distinguir o que não deve ser confundido.
- Dicionário: Comunicação Social
1. A vida das comunidades, sobretudo as democráticas, necessita da rede de publicações com carácter noticioso que permite saber o que acontece, escrutinar poderes públicos, conhecer diversos e novos modos de pensar, e exercer uma cidadania mais consciente. Desde a revolução de abril de 1974, muito mudou. Do cenário inicial habitado por poucos atores, num leque ideológico estreito, com uma só conversa pública relevante seguida por uma comunidade sedenta, chegámos hoje a um cenário sobrelotado de atores em conversas muitas e desconexas num leque ideológico alargado. Os atores mais tradicionais sobrevivem a custo. Os públicos, cuja atenção procuram, sentem-se informados, saturados de conteúdos, capturados pelas redes sociais e sem tempo nem cabeça. Mudaram os dois mundos: o de quem faz comunicação social e o que acede à comunicação social. Do lado dos meios de comunicação social, o sismo digital não parou de abanar a informação impressa, coração da opinião pública, ainda à procura de gerar receitas pelos canais digitais. Os anunciantes atraem-se pelos públicos que acorrem a influencers, instagramers e podcasters e agradecem aos algoritmos poder chegar a quem procuram. Quanto menos recursos, menos jornalistas; e, quanto menos jornalistas, menos jornalismo.
- Dicionário: Transumanismo
1. O transumanismo pode caracterizar-se como uma corrente do pensamento que visa transformar a condição humana, superando as suas limitações e alcançando as suas máximas potencialidades, de ordem física e mental. Se ao longo dos tempos as tentativas de superação das fragilidades sempre existiram, hoje, quando somos confrontados com a hipótese de melhoramento genético, de criação de ciborgues, de superação da mortalidade pela transformação do homem num avatar que, habitando num ambiente computacional, reproduz a rede neuronal do falecido, o sinal de alarme parece soar.
- Dicionário: Universidade
1. A Universidade é uma criação do espírito medieval europeu. Se bem que existam antecedentes nas academias gregas e romanas e, na Idade Média europeia, no ensino realizado nas igrejas, conventos e mosteiros, as universidades nascem no final do século XI como uma resposta original das cidades, reis e Igreja aos problemas do tempo. No início, o ensino centra-se em matérias específicas: em regra, teologia, direito (romano e ou canónico) e medicina. Desde então, a universidade prepara os profissionais que as sociedades necessitam em cada época.
Em toda a Europa estuda-se o mesmo e de acordo com um método também comum (por antonomásia, o método escolástico). Junto das universidades são criados colégios destinados à preparação dos futuros estudantes e o seu número, no início muito pequeno, aumenta gradualmente ao longo da Idade Média. Aí estudam-se as chamadas artes liberais, o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), num modelo por vezes designado como faculdade de artes.
O prestígio dos professores e do método justifica o sucesso. São fundadas universidades em toda a Europa ocidental nos séculos seguintes, embora com qualidade e reconhecimento muito diferente. Bolonha foi a primeira universidade (1088) e, seguindo o seu modelo foram fundadas ou reconhecidas como universidades em outros países europeus, em 1150 Paris, em 1156 Oxford, em 1209 Cambridge, em 1218 Salamanca, entre muitas outras. No caso português, D. Dinis funda o Estudo Geral na cidade de Lisboa, em 1290.
2. O modelo organizativo é peculiar, no contexto medieval. A universidade é uma corporação de professores e estudantes, com autonomia perante as autoridades municipais, eclesiásticas e reais. Tem património próprio e juízes privativos.
A organização dos saberes coloca a teologia no seu centro. A expressão a teologia é a mãe das ciências exprime a importância da religião e da teologia para todos os saberes. A reflexão acerca dos fundamentos do direito e da medicina é feita a partir da teologia. Teólogos como São Tomás de Aquino estudaram estes temas de acordo com um espírito sistemático, outro elemento característico da visão medieval. Mas um sistema que decorre da religião e da teologia.
3. No século XVI, o humanismo vai trazer novos desafios às universidades. De um lado e com a redescoberta de obras clássicas gregas e latinas, a invenção da imprensa e a sua utilização na divulgação do conhecimento, e as novas descobertas científicas trazidas com os descobrimentos em muitas áreas (astronomia, cartografia, geografia, geologia, história, entre outras), implicam uma revisão dos saberes e dos autores em que estes se fundavam. De outro lado, a reforma protestante e a contra-reforma católica dividem de modo dramático a comunidade cristã e obrigam os universitários a tomar partido nas contendas religiosas.
Neste contexto, que é simultaneamente de crise religiosa e de expansão do conhecimento, são fundadas novas universidades. No caso português, assinalamos a fundação da Universidade de Évora, dirigida pela Ordem de Jesus. Nunca foi autorizada a ministrar cursos jurídicos, embora seja aí e na Universidade de Coimbra que ensinam alguns dos grandes teólogos que intentaram prosseguir a visão medieval, como Francisco Suarez e Molina. Costuma designar-se esta visão como segunda escolástica ou escolástica peninsular, uma vez que ela tem também como foco outras universidades peninsulares, como Salamanca.
4. Esta herança clássica vai defrontar-se no Iluminismo com novas ideias e com a pretensão de construir um novo sistema científico e crítico já sem a presença da teologia. De um lado, a reacção anti-jesuítica leva à extinção das universidades, como a de Évora, e ao encerramento dos inúmeros colégios que dirigiam. Por toda a Europa reorganizam-se ou reformam-se as Universidades. Em Portugal, a chamada reforma pombalina de 1772 é um dos marcos destas ideias iluministas acerca da ciência. Aumenta o controlo do Estado e intensifica-se uma visão profissionalizante da universidade.
Décadas passadas, a visão iluminista confronta-se com uma nova visão liberal acerca do ensino e da educação, em geral. Torna-se evidente um caminho no sentido da secularização, de um lado, e de triunfo gradual de uma nova forma de pensar as ciências, as antigas e as novas – o positivismo.
Em vários países europeus, nascem, dentro das universidades ou como instituições especializadas, faculdades ou institutos ligados à formação prática de engenheiros e de arquitectos, de desenhadores e de outros profissionais. A reformulação dos saberes implica então a criação de novas Faculdades a partir da matriz antiga ou a criação de universidades para estes saberes técnicos. Nasce aqui uma tendencial diferenciação
entre os saberes clássicos e os saberes técnicos, as universidades clássicas e as técnicas ou politécnicas.
5. As universidades oitocentistas vão ainda exigir dos académicos a produção de novo conhecimento e a sua divulgação. De um lado, portanto, a exigência de investigação e de inovação, depois colocadas ao serviço do ensino; de outro, a exigência de publicitação desse conhecimento. A partir do século XIX, a formação da sociedade industrial e de massas é assim acompanhada por institutos de investigação científica dentro das universidades e por um novo tipo de cientistas cujas inovações e invenções, por exemplo corporizadas em patentes, são cruciais para o avanço do conhecimento e da qualidade de vida. A liberdade de investigar e de ensinar é reivindicada como uma das dimensões da nova ideia de universidade.
As universidades do século XIX completam assim a herança anterior. São inclusivamente fundadas universidades apenas focadas na investigação científica, mas a generalidade das instituições continua simultaneamente dedicada à investigação e ao ensino.
No quadro das ideias educativas liberais dos séculos XIX e XX, entende-se que o acesso ao ensino superior deve ser generalizado. As universidades vão assim defrontar-se com o desafio de incluir um número sempre crescente de estudantes e de definir sistemas concorrenciais justos de acesso. Na Europa, criados os liceus de acordo com um modelo primeiramente definido em França, caberá a estas instituições formar e na prática determinar os métodos de selecção dos futuros universitários.
6. Vale a pena lembrar alguns dos marcos da história da universidade em Portugal. Em 1836, a reforma liberal da universidade, que será depois continuada por outras. Ao longo do século XIX, a criação de escolas fora de Coimbra para o ensino da medicina, das ciências, da farmácia e da formação de professores, abre o caminho para que, em 1911, com a criação das Universidades de Lisboa e do Porto, termine o monopólio que a Universidade de Coimbra exercia em Portugal.
Mas é apenas no final do Estado Novo que se assinala a criação de novas universidades públicas e o reconhecimento da Universidade Católica e, com a democracia e a afirmação constitucional das liberdades de aprender e de ensinar, também de universidades privadas.
Em 2024 existem treze universidades públicas, nove universidades privadas e a Universidade Católica. Cerca de quatrocentos mil estudantes frequentam em cada ano instituições de ensino superior, incluindo as escolas do ensino politécnico. Uma das directrizes políticas da revolução de 1974, a democratização do ensino superior, está cumprida. Frequentar a universidade deixou de ser um privilégio para ser um direito.
Contudo, emergem novos problemas.
A multiplicação de áreas científicas já não permite encontrar um fundo comum a todas elas. Por esta razão, a legislação portuguesa desistiu de definir universidade e consagra um critério aritmético: podem ser reconhecidas como universidades as instituições que ministrem seis cursos de licenciatura, seis ciclos de mestrado e três de doutoramento em áreas científicas distintas e que produzam actividades de investigação, de ensino e de divulgação cultural. No entanto, não existe hoje em dia uma classificação universalmente aceite das ciências e áreas científicas.
7. Olhando em retrospectiva para a história pluricentenária da universidade, verificamos que as instituições estão hoje mergulhadas numa rede de complexidade burocrática sempre crescente, com processos de acreditação, de avaliação nacional e internacional, de avaliação dos docentes, de internacionalização, de medição das consequências das publicações e da investigação, processos que implicam por sua vez o recrutamento de uma multiplicidade de especialistas que não são académicos e que levam as universidades a fechar-se sobre si próprias.
A autonomia das universidades é uma forma institucional de assegurar que os professores e investigadores gozam de liberdade para investigar, ensinar e difundir o conhecimento. Uma liberdade que é conhecida internacionalmente como liberdade de cátedra. Mas esta liberdade não pode entender-se como absoluta e sem limites. Hoje, para além dos clássicos problemas da verdade, do belo e do justo, o conhecimento científico vive confrontado com as novas ameaças sociais e ideológicas, como o politicamente correcto, a massificação, a inteligência artificial e o transhumanismo.
A universidade portuguesa também perdeu o monopólio da formação profissional. A licenciatura deixou de ser a licença para exercer uma profissão. Hoje, uma multiplicidade de organismos, designadamente ordens profissionais, pretendem controlar e validar os conhecimentos adquiridos pelos estudantes universitários.
Continuam válidas nos nossos dias as ideias do Cardeal S. John Henry Newman formuladas em meados do século XIX. A universidade ideal é uma comunidade de
pensadores, envolvendo-se em atividades intelectuais não para qualquer propósito externo, mas como um fim em si mesmo. Prevendo uma educação ampla e liberal, que ensina os alunos a pensar e a raciocinar e a comparar e a discriminar e a analisar, Newman considerou que as mentes estreitas nascem de especialização estreita e ensinou que os estudantes devem receber uma base sólida em todas as áreas de estudo. A missão da Universidade, completou Ortega y Gasset, numa fórmula feliz e que continua válida para os nossos dias, é a de estar à frente do seu tempo. E isto só pode ser compreendido nesta ligação entre ciência e cultura, procura da verdade e sentido do bem.
Bibliografia principal:
- Guilherme Braga da Cruz, O Essencial sobre a História das Universidades, Lisboa, Imprensa Nacional, 2008
- John Henry Newman, The idea of a university, 1873 (https://www.gutenberg.org/files/24526/24526-pdf.pdf)
- J. Ortega y Gasset, Mission de la Universidad, Madrid, 1930
- António M. Feijó e Miguel Tamen, A Universidade como deve ser, Lisboa, FFMS, 2017 - Alasdair MacIntyre, God, Philosophy, Universities. A Selective History of the Catholic Philosophical Tradition, Rowman, Maryland, 2011
- Dicionário: Direito
por António Pedro Barbas Homem, 2024
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1. Definir o que é o direito é uma tarefa impossível sem a consideração da sua historicidade enquanto conceito e enquanto instituição. Gregos, romanos e as sociedades medieval ou moderna tiveram respostas distintas a esta questão. Cada Estado teve e tem as suas próprias leis e costumes, instituições políticas e sociais. Todos os Estados continentais da Europa têm as suas constituições e os seus códigos, frequentemente semelhantes, mas também com muitas diferenças quanto ao modelo de organização do poder – temos repúblicas e monarquias, Estados unitários e Estados federais, regimes presidenciais e parlamentares – e quanto à estrutura da sociedade – por exemplo, com diferenças quanto ao regime do casamento, do poder paternal ou dos contratos – ou quanto à natureza das penas para os crimes. Muitos Estados do mundo ainda admitem a pena de morte e alguns inclusivamente os castigos corporais e a tortura. Quando analisamos a história e a situação actual específica do direito de cada Estado e comunidade damo-nos conta deste paradoxo do particularismo perante uma ideia universalmente válida de direito.
2. Se o direito é uma norma ou um conjunto de normas, para evitar o niilismo dos Estados e dos poderes, durante séculos prevaleceu no ocidente cristão o princípio da existência de princípios e regras superiores ao direito de cada Estado. Na tradição cristã, era essa a função do direito natural, de um lado decorrente da vontade de Deus revelada aos homens e, de outro, construído a partir dessa vontade de modo dedutivo.
Nos nossos dias, as grandes declarações e convenções de direitos humanos ao nível mundial, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, e regional, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assentam na existência de direitos inerentes aos homens que cada Estado tem a obrigação de assegurar.
Do mesmo modo, no constitucionalismo contemporâneo, na Europa continental posterior à segunda guerra mundial, os direitos fundamentais são também formulados a partir de uma mesma convicção acerca da existência de direitos anteriores ao Estado, que este deve garantir.
Os três elementos centrais dos direitos humanos e dos direitos fundamentais são a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade perante a lei.
Direitos naturais e direitos fundamentais são, assim, uma primeira face do direito dos nossos dias.
3. De outro lado, existem princípios gerais que, mesmo não sendo universalmente aceites, constituem o pecúlio do que frequentemente designamos como ocidente ou civilização ocidental e que resumimos na fórmula Estado de direito (ou, em inglês, rule of law).
Foi com o liberalismo que se definiu um princípio que ainda hoje continua válido: é livre (lícito ou conforme à lei) tudo o que não for proibido por lei. A liberdade ou autonomia privada é, assim, um princípio do direito. Esta autonomia é mais protegida em certas matérias que designamos por vida privada e intimidade.
O perímetro do que entendemos como direito e, portanto, dos comportamentos judicialmente exigíveis, confronta-se, então, com as matérias que entendemos que ou não têm dignidade jurídica ou entendemos que estão para além do direito. O jurista francês Jean Carbonnier utiliza a divertida expressão o sono do direito para referir que a vida afectiva, a vida espiritual e a vida em família devem estar livres da intervenção do direito, isto é, do legislador e do juiz.
A autonomia privada apenas pode ser limitada por lei, lei que desempenha uma função essencial de garantir a liberdade e, de outro lado, de a concretizar.
Este é outro paradoxo do direito. De um lado os direitos são garantias contra o Estado, mas, de outro, as leis do Estado são necessárias para concretizar os direitos.
Em vários códigos civis diz-se, a este respeito, que os contratos valem como lei entre as partes.
Hoje, no entanto, existe uma ofensiva para reduzir a reserva de liberdade e de autonomia. Como se generalizou o entendimento de que qualquer pretensão de um indivíduo ou de um grupo tem dignidade de direito fundamental e está protegido pela constituição e pode ser levado para decisão de um tribunal – porque os tribunais e, por último, o tribunal constitucional, exercem uma função de tutela de todos os direitos e interesses – cabe então aos tribunais decidir em última instância dessas pretensões.
4. O funcionamento do direito exige, em caso de conflito, a intervenção de um terceiro imparcial. É a heteronomia: para além da lei e dos direitos, outras instituições básicas do direito são o tribunal e o julgamento.
Para o cristianismo, o julgamento de Cristo constitui uma das recordatórias mais importantes acerca da necessidade de um julgamento justo e das suas instituições, um conjunto ou feixe de princípios e de regras que também designamos como juiz natural e processo devido ou justo (due process). Lei prévia, acusação responsável, garantias de defesa, especialmente direito ao contraditório, tribunal independente e juiz imparcial são concretizações institucionais destes princípios. Direito ao recurso, isto é, uma nova instância que julgue os julgamentos tornou-se outra das instituições do processo devido, de modo a procurar evitar o erro judiciário. Que estes julgamentos sejam feitos por um colégio de juízes – e não por um só – é outra exigência organizativa que acresce às anteriores.
Estas ideias justificam a importância que adquiriram nas ordens jurídicas ocidentais o processo e o procedimento. São instituições fundamentais, quer para a qualidade da democracia, quer do processo judicial e do procedimento da administração.
5. Cabe aos terceiros imparciais, os juízes, aplicar nos casos de conflito, as sanções especificamente jurídicas. Também aqui, apenas o estudo da marcha histórica do direito ocidental permite compreender a nossa situação actual, que aboliu a pena de morte, as penas corporais, a tortura, a chamada morte civil, o cárcere privado, os castigos corporais. Recordo, como exemplo, que até recentemente, era permitida a aplicação de castigos corporais aos menores nas famílias e nas escolas.
A responsabilidade civil tornou-se exclusivamente patrimonial. A responsabilidade criminal assenta na aplicação da pena de privação da liberdade, ao lado de outras penas.
6. Mas como reagir perante a injustiça de uma lei, de uma sentença ou de um contrato?
Uma das mais importantes contribuições para o direito e para a política de uma visão que hoje conhecemos como tradição do direito natural ou ainda jusnaturalismo (esta uma expressão contemporânea) é precisamente a doutrina da justiça e do direito justo. Na verdade, e em especial na visão mais antiga, por exemplo de São Tomás de Aquino, o direito natural era o fundamento do direito positivo, no duplo sentido em que este se devia fundar naquele e, quando se afastasse, deixaria de ser exigido o acatamento das normas positivas.
O Compêndio de Doutrina Social da Igreja Católica recolhe o essencial dessa tradição, na verdade muito complexa e por vezes contraditória no seu desenvolvimento histórico, sob a forma do direito de objecção de consciência e do direito de resistência (n.ºs 393 ss., especialmente, 400-401). A consciência individual e a consciência colectiva do justo são instâncias que, nesta visão, examinam a obrigação de cumprimento das leis ou de ordens quando elas implicam colaborar em ações moralmente erradas.
De acordo com estas doutrinas do direito existe um conjunto de regras objectivas ou pressupostas chamadas direito natural, que são o fundamento e referência para o direito positivo criado pelos Estados, assim estabelecendo a ligação entre o direito e a moral.
7. De modo distinto em relação às doutrinas do direito natural, uma outra posição doutrinária sustenta a separação entre o direito e a moral e a ausência de qualquer tipo de referências supra-positivas. No plano filosófico, o positivismo encontra-se associado ao utilitarismo e ao liberalismo oitocentistas. Existem muitas formulações diferentes desta visão positivista, aqui resumida à rejeição da existência de regras superiores ao direito positivo.
8. O direito e a ciência do direito encontram-se hoje perante desafios complexos resultantes das transformações dos Estados, das sociedades e das mentalidades. Ao lado de uma revolução industrial – com a inteligência artificial, a robotização e a Internet das coisas, entre outras manifestações – e de transformações aceleradas na economia e na estrutura laboral, as sociedades confrontam-se também com uma revolução cultural e social, acelerada pelas redes sociais e na qual muitos protagonistas exigem novos direitos e uma nova ordem jurídica. Com a globalização, fala-se de um constitucionalismo global e multinível, na medida em que, ao lado das fontes nacionais, em cada Estado também se aplica o direito criado por instituições internacionais. O papel criador desempenhado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Tribunal de Justiça da União Europeia e Tribunais Constitucionais no plano interno convoca uma discussão acerca da crise da legitimidade democrática do direito e do Estado, agravada pela omnipresença de comissões de especialistas não eleitos na formulação de políticas públicas e na manipulação da opinião pública.
Saber se estas transformações se concretizam num novo tipo de sociedade pós-moderna é um tema controvertido e da maior actualidade.
BIBLIOGRAFIA:
António Castanheira Neves, Digesta, Coimbra, Coimbra Editora, I-II, 1995
José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Coimbra, Almedina, 2022
Stephan Kirste, Introdução à Filosofia do Direito, trad., Belo Horizonte, Fórum, 2013
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