por Mafalda Miranda Barbosa, 2024

Descarregar

1. De um prisma católico, o casamento é um sacramento, que se traduz no pacto pelo qual “o homem e a mulher constituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole” [Catecismo da Igreja Católica, 1601] e, como tal, marcado pela sua indissolubilidade. Centrado no amor conjugal, até porque foi a Igreja que forjou o casamento por amor [Tony Anatrella, “Casal hoje e confusões afectivas e ideológicas”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 82], o matrimónio surge como uma instituição.

2. Do ponto de vista civil, o casamento é um negócio jurídico. Se originariamente surgia definido como o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, tendo uma vocação de perpetuidade, a permissão e facilitação do divórcio, primeiro, e, posteriormente, a pressão individualista que determinou a radicalização das soluções haveriam de determinar uma fragilização da instituição com a sua quase equiparação à união de facto. A isto acresce o facto de, exatamente fruto dessa tendência, também denunciada por Le Pourhiet das sociedades pós-modernas de «transformar[em] a priori em “direito” qualquer reivindicação, aspiração, desejo ou pulsão das pessoas» [A. M. Pourhiet, «Droit à la différence et revendication égalitaire: les paradoxes du postmodernisme», Le droit à la difference, PUAM, París, 2002, 251], tendência esta que resulta de uma confluência simbiótica entre um pensamento de matriz liberal e um certo entendimento do marxismo que, despojado da conflitualidade própria da luta de classes, assume como motor de transformação da sociedade o antagonismo identitário das micro-causas que encontram na família um ambiente perfeito para germinar, se passar a admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

3. O casamento deixa, assim, de acordo com certas perspetivas, de se conceber com uma dimensão verdadeiramente conjugal, e, portanto, institucional, para se transformar na expressão individualista de realização e egoísmos e para passar a assentar na troca de sentimentos e emoções, sem qualquer projeto subjacente e, desse modo, sem qualquer vocação de perpetuidade. Simplesmente, esta visão do casamento, arrastando consigo inúmeros problemas sociais, acaba por não corresponder ao sentido da juridicidade que determina a necessária tutela do matrimónio e da família que, com base nele, se estrutura.

4. Se o direito civil se dirige à família é porque existe a necessidade de garantir, por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, o bom funcionamento da célula básica da sociedade, uma vez que tal garantirá a estabilidade da própria sociedade, que se estrutura em torno da categoria axiológica da pessoa. É exatamente esta pessoa, enquanto categoria ético-axiológica, que está, por exemplo, subjacente (e tem de estar subjacente) à disciplina matrimonial, com consequências prático-normativas de não pequena monta. Se a pessoa é um ser em relação, absolutamente livre e, como tal, responsável pelo outro (antes mesmo de ser responsável perante o outro), então a família alicerçada no casamento mais do que espaço de afirmação de individualidades, haverá de ser local de reunião de responsabilidades, por meio das quais a pessoa realiza integralmente a sua personalidade, um espaço de afirmação de deveres [Leite Campos, “Eu-Tu: o amor e a família (e a comunidade) (eu-tu-eles)”, Nós. Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, 165 s.]. E é nessa medida – e não enquanto espaço subjetivo de afirmação de afetos insindicáveis em termos axiológicos – que o casamento deve ser tutelado e disciplinado. Quer isto dizer que o legislador ordinário não pode fazer do casamento aquilo que a sua vontade arbitrária – coberta pelo manto da legitimidade formal – determinar. Estará sempre limitado na modelação que para a instituição dispense pelos dados axiológicos que são comunicados pelo sentido do personalismo ético de onde partimos, ou seja, pelo sentido da pessoa, autónoma e responsável, na complementaridade sexual que a caracteriza.

5. À mesma conclusão podemos, aliás, chegar pela análise de dados do direito positivo constitucional [cf. Duarte Santos, Mudam-se os tempos, mudam-se os casamentos? O casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009; Ivo Miguel Barroso, “Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: um direito fundamental à medida da lei ordinária?”, Lex Familiae, ano 7, 13, 2010, 57-82]. Como refere Oliveira Ascensão, “o casamento não é um nome apenas suscetível de cobrir qualquer conteúdo”; pelo contrário, tem um sentido próprio e intrínseco que não pode ficar dependente da vontade de cada um ou sequer do legislador ordinário [Oliveira Ascensão, “O casamento de pessoas do mesmo sexo”, Revista da Ordem dos Advogados, 400]. Na verdade, não faz sentido que a CRP conceda um direito ao casamento e depois permita à lei suprimir a instituição ou desfigurar o seu núcleo essencial, como tem ocorrido no tocante às diversas leis que subvertem o sentido da conjugalidade. O casamento é protegido ao nível constitucional, não como um símbolo, mas como uma instituição, em nome da função social que cumpre. De outro modo, se apenas estivesse em causa um espaço de afirmação individual e individualisticamente concebido, não faria sentido tutelá-lo: na verdade, e essa é a questão pertinentemente colocada por muitos juristas, por que razão, se assim fosse, se haveria de disciplinar, tutelando-o, o casamento e não a amizade ou por que razão não se poderia conceber, como hoje muitos já reivindicam, os trios? [cf. Duarte Santos, “O casamento entre pessoas do mesmo sexo: uma perspetiva constitucional”, 16]. Se a descoberta da função social específica do casamento, que está na base do seu reconhecimento como direito fundamental e da disciplina que o legislador ordinário lhe devota, é suficiente para determinar a inconstitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ela será igualmente crucial para impedir qualquer deformação da relação conjugal que implique uma destruição do seu núcleo essencial. Ora, é exatamente isso que ocorreria se considerássemos que o casamento é um “assunto exclusivo dos amantes e cada casal é o seu próprio legislador”, ao ponto de se advogar o desaparecimento ou, pelo menos, a perda de importância dos deveres conjugais e o enfraquecimento do vínculo conjugal, do ponto de vista jurídico. Com este entendimento, aliás, operar-se-ia uma mutação: deixaríamos de ter uma conceção personalista do casamento, para aderirmos a uma conceção individualística. Simplesmente, sabemos que não só ela não corresponde à garantia institucional que a constituição nos comunica, como tal não está em consonância com o sentido e a intencionalidade predicativa da juridicidade alicerçada no ser pessoa e na sua dignidade. Donde, e porque a interpretação de uma norma ou de um instituto jurídico não pode prescindir da remissão para a dimensão normativa dos princípios em que a mesma ou o mesmo se fundam, não nos resta outra hipótese senão considerar a relação matrimonial na sua configuração personalística. À mesma conclusão podemos chegar do estrito ponto de vista civilístico, fazendo apelo à juridicidade, mais ampla que a constitucionalidade. Do mesmo modo, se é certo que o legislador ordinário facilitou, ao extremo, o processo de divórcio, eliminando formalidades e abdicando da sindicância da culpa para os devidos efeitos, isso não significa – nem pode significar – que os deveres conjugais sejam condenados ao desaparecimento ou à irrelevância. E é exatamente por isso, e sem contradição, que, apesar da configuração do divórcio como consequência da constatação da rutura da relação matrimonial (e não como uma sanção), a violação dos referidos deveres não pode deixar de acarretar consequências no plano jurídico, entre as quais a possibilidade de recurso à responsabilidade civil.

Bibliografia:

  • Anatrella, Tony, “Casal hoje e confusões afectivas e ideológicas”, Léxico da Família, Princípia, 2010, 82 s.
  • Ascensão, José Oliveira, “O casamento de pessoas do mesmo sexo”, Revista da Ordem dos Advogados, 2009, 400 s.
  • Barroso, Ivo Miguel, “Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: um direito fundamental à medida da lei ordinária?”, Lex Familiae, ano 7, 13, 2010, 57-82
  • Campos, Diogo Leite, Nós. Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, 165 s.
  • Santos, Duarte, Mudam-se os tempos, mudam-se os casamentos? O casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009
« Voltar ao Dicionário Político