por Pedro Ferro, 2024

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1. Será possível melhorar a qualidade da política através dos políticos? Em caso afirmativo, qual a substância da virtude política (a virtude dos governantes)? E como seria possível suscitá-la?

    A primeira questão trata da relevância das qualidades pessoais e liberdade de escolha dos governantes. Por outras palavras, trata dos méritos da pergunta clássica: “quem deve governar?” Entre os adversários presumíveis dessa importância contam-se: a regência impessoal da lei, que tornaria ilegítimo o protagonismo pessoal, e a preponderância da forma do regime, que o tornaria irrelevante; a prioridade do poder legal e formal sobre o poder pessoal; ou a suficiência dos mecanismos institucionais, que teria tornado obsoleta a demanda do príncipe ideal. Face a essas objecções, pode alegar-se que nem as melhores estruturas institucionais podem gerar, por si mesmas – a partir do papel, de teorias, mecanicamente ou por inércia – a realidade e substância da representação ou da separação de poderes, por exemplo. Isso não pode ser conseguido sem, ou contra, as convicções e qualidades dos indivíduos que operam o sistema; sem um esforço inteligente, responsável e virtuoso de algumas pessoas, pelo menos. Enfim, o sistema político constitucional não é autossuficiente – não “funciona sozinho”, com piloto automático. Em complemento, parece carecer (para ser funcional) de alguma variável exógena ao sistema – i.e., que o sistema é incapaz de produzir ou, pelo menos, de garantir – nomeadamente, a virtude pessoal de pilotos de carne e osso.

    2. A prudência e a coragem políticas podem ser consideradas, a par da justiça e da moderação, como as principais virtudes políticas. Mas existe alguma diferença entre as qualidades dos que obedecem e as dos que governam? «Possuem ambos virtudes idênticas ou distintas?», pergunta Aristóteles. Não se tratará apenas de uma diferença de grau, uma vez que governar e obedecer são actividades especificamente diversas. Todos devem ser virtuosos, mas não da mesma maneira: cada um deve possuir as virtudes específicas da sua própria função. Assim, para Aristóteles, a virtude do governante parece não ser idêntica à virtude geral (embora também não lhe seja oposta); ou – mais precisamente – a virtude do governante, enquanto governa, não seria idêntica à virtude dos súbditos, enquanto tal. Ao contrário, para Maquiavel, a virtude política é de natureza diversa (e contrária) à virtude comum: não consiste em ser bom; consiste em dar uma resposta cabal à constelação da fortuna, como dizia Hannah Arendt. «O príncipe «não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens [comuns] são tidos por bons». Para preservar o Estado, deverá estar pronto a «agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião», se for preciso.

    3. Segundo Aristóteles, a prudência é «a única virtude peculiar ao governante». Prudência política é um saber prático apontado ao bem-comum, associado à capacidade para resolver, através da reflexão e deliberação, o que se tem entre mãos, escolhendo o melhor. Compreende a intenção dos fins intermédios e a eleição dos meios. É prática porque versa sobre o que fazer e porque conduz à decisão e à acção. A prudência de tradição aristotélica (aquela que não está nos livros e que só podemos conhecer a partir do exemplo das pessoas a que chamamos prudentes, como diz o Estagirita) contrasta com a prudência astuciosa de Maquiavel (aquela que só ele saberia ensinar aos príncipes, razão pela qual escreveu precisamente os seus dois livros principais). A astúcia maquiaveliana contrapõe-se à prudência clássica e cristã: quer porque consistirá, eventualmente, numa qualidade colocada ao serviço de um fim que possui uma bondade aparente e não verdadeira – a que Aquino chama «prudência da carne»; quer porque para atingir os seus fins, bons ou maus, se serve de meios falsos e enganadores – ao que o dominicano designa propriamente «astúcia», e à qual associa (como aliás Maquiavel) a mentira e a fraude.

      Entre as competências do homo politicus conta-se também o domínio de certas habilidades comunicacionais, negociais e retóricas. Estas qualificações (conquanto indispensáveis) são apenas instrumentais e politicamente neutras (relativamente à justiça): podem ser eficazmente usadas quer por tiranos quer por estadistas.

      4. E quais os processos pelos quais a virtude política pode emergir; ou seja, quais as condições que podem propiciar virmos a ser governados por políticos competentes? Essas condições resultarão do cruzamento entre a “oferta” de virtude política (a educação dos “príncipes”, a estrutura social, a disponibilidade para a coisa pública…), os factores que afectam a “procura” dessa virtude (as qualidades e vícios dos cidadãos“, admitindo que “cada povo tem os políticos que merece”…), e as variáveis que impactam quer a oferta, quer a procura, tais como o regime e a atmosfera cultural. Em qualquer caso, talvez seja possível alvitrar que – ao contrário do que apregoavam os sofistas – a virtude política não é fácil e não se pode ensinar. Por um lado, exige um mínimo de condições inatas (como sugeria Quintiliano) ou conseguidas no berço: um módico de capacidade analítica, inteligência emocional e imaginação; um mínimo de energia e espírito de iniciativa; uma certa aptidão para lidar com a incerteza, o contratempo e o perigo; uma dotação razoável de autoconfiança; uma certa distinção pessoal, etc. Por outro lado – e mais fundamentalmente – a virtude política é adquirível sobretudo através da experiência e do esforço moral. Neste sentido, embora não se possa ensinar, pode-se aprender, exercitar e cultivar (tal como, aliás, a virtude comum).

      5. Por fim, pode-se dizer que os modelos da sofocracia (entendida como o poder dos sábios), da tecnocracia (compreendida como o reino da perícia, da eficácia e do pragmatismo), ou o da liderança (percebida como o governo dos grandes retóricos e chefes carismáticos), embora contenham elementos importantes, não captam a essência da profissão política, que pertence fundamentalmente ao domínio da praxis, mais do que da teoria ou da técnica. Obviamente, a virtude política é multi-dimensional. Mas o seu ingrediente nuclear será a prudência política (incluindo a justiça), armada de coragem.

        Bibliografia

        • ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, tradução de António C. Caeiro, Lisboa: Quetzal Editores, 2004.
        • ARISTÓTELES, Política, tradução de António C. Amaral e Carlos Gomes, Lisboa: Vega, 1998.
        • FERRO, Pedro Rosa, Virtude política: uma análise das qualidades e talentos dos governantes, Coimbra: Almedina, 2017
        • KELLERMAN, Barbara (Ed.), Political Leadership: A Source Book, University of Pittsburgh Press, 1986
        • MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe, Queluz: Coisas de Ler Edições, 2003.
        • WEBER, Max, Politics as a Vocation, New York: Oxford University Press, 1946.
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