por Pedro Rosa Ferro, 2024

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1. A articulação entre fatum e fortuna no desenrolar dos acontecimentos humanos remonta à antiguidade clássica romana, com antecedentes na tragédia e na literatura arcaica gregas. A Fortuna personifica (no caso da respectiva deusa greco-romana) ou coisifica (no caso da famosa “roda”) o que é aleatório ou errático, fruto do acaso, do azar ou da sorte. O destino é, aparentemente, o oposto: o que é fatídico, pré-determinado, “escrito nas estrelas”, de acordo com uma qualquer vontade superior que ordena os eventos segundo um certo desígnio. A fortuna é cega; o destino “pre-vê”. No entanto, também se combinam ou coincidem: às vezes, parece haver um encadeamento quase necessário de múltiplas e minúsculas acções individuais e de erros “fatais” (aquilo a que os gregos chamavam hamartia), misturados com eventos casuais, parecendo conduzir inexoravelmente ao desfecho final, como se de uma conjugação cósmica se tratasse. Não que se invalide necessariamente o livre arbítrio: alguns personagens são responsáveis pelos seus actos. Contudo, as acções e propósitos humanos seriam fúteis, insignificantes e impotentes: o porvir estaria quase completamente fora do controlo humano.

2. Todavia, apesar de imperiosa, volúvel e caprichosa, a adorada deusa Fortuna poderia ser capturada pelos verdadeiros homens: audentis Fortuna iuvat (a fortuna favorece os audazes), como disseram Virgílio (na Eneida, pela boca de Turnus) ou Terêncio, por exemplo. Depois, já em ambiente cristão, Agostinho de Hipona (na Cidade de Deus), Boécio (na Consolação da Filosofia) e Dante (no Canto VII do “Inferno”), nomeadamente, “reconduziram” a fortuna à providência divina (embora com muitos matizes e não insignificantes variações): nada aconteceria por acaso, embora aos olhos humanos seja isso que parece; e tudo o que acontece está compreendido em Deus. No Renascimento (particularmente, em Leon Battista Alberti e Pico della Mirandolla, e já antes, em Petrarca), ante o tumulto dos tempos, e com a reconstrução da imagem clássica do mundo, dá-se uma mudança de ênfase (embora permaneça um fundo cristão): o terrível poder da fortuna volta a ser acentuado, em prejuízo da providência; e, ao mesmo tempo, é valorizado o livre arbítrio e o homem é exaltado como senhor do próprio destino. Maquiavel entronca de algum modo nesta tradição, como quando afirma que cerca de metade, ou pouco menos, do que nos acontece depende da própria virtù, e a parte restante da fortuna. Quando menos se espera, «rios caudalosos, enraivecidos, alagam planícies, destroem árvores e edifícios, arrancam terras…». Mas nada «impede que os homens, nos tempos de calma, possam tomar providências e construir muralhas e diques», para que o ímpeto das águas não seja tão devastador (O Príncipe, XXV). Mas, neste ponto, Maquiavel não é inovador. Curiosamente,o seu exemplo lembra o do «homem prudente» (Mt 7, 24-26) que «construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram e investiram os ventos contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava fundada sobre rocha».

3. A providência já foi descrita como sendo uma cristianização do fado ou destino pagão. Não será bem assim: a diferença entre os dois é semelhante à que separa o Deus bíblico dos caprichosos deuses pagãos. Em sentido cristão, a «Providência consiste nas disposições pelas quais Deus conduz, com sabedoria e amor, todas as criaturas para o seu último fim» (Catecismo da Igreja Católica, § 321). Aí, «Deus guarda e governa, pela sua Providência, tudo quanto criou, “atingindo com força dum extremo ao outro e dispondo tudo suavemente” (Sb 8, 1). Porque “tudo está nu e patente a seus olhos” (Heb 4, 13), mesmo aquilo que depende da futura acção livre das criaturas» (Dei Filius, c. 1). Isto não implica uma intervenção directa de Deus na história, mas não deixa de remeter para a discussão milenar – e para os mistérios – da conciliação entre predestinação e livre arbítrio, por um lado, e entre a omnisciência, omnipotência e benevolência divinas e a existência do mal (o velho problema de Epicuro), por outro.

4. «Você está enganado se pensa que se pode ir ou não ir a Alcácer Quibir», terá dito um político português do século XX em conversa com um colega, lamentando a exiguidade do espaço de manobra nas decisões de governo. Recorrentemente, somos assombrados quer pelos espectros de “leis de ferro” e determinismos psicológicos, sociológicos ou teológicos, físicos ou metafísicos, quer pela roleta da fortuna. Se fosse assim, os actores políticos – na sua pessoalidade – não seriam já protagonistas reais do drama político, mas um joguete ou marioneta dessas leis e processos necessários ou de forças obscuras, impessoais e aleatórias. Raymond Aron sugeriu ser possível fazer justiça, simultaneamente, quer ao “drama” quer ao “processo” da história dos assuntos humanos: à história política tradicional, baseada na liberdade e responsabilidade pessoal, por um lado; e às grandes tendências gerais, geológicas e sistémicas que tantas vezes parecem escapar ao domínio humano, por outro. A política não enfrenta uma alternativa radical entre a pura voluntariedade, por um lado, e a ocorrência casual inelutável ou a necessidade intolerável, por outro, mas admite espaço – mais ou menos apertado – para a livre agência humana: o homem é feito de herança, matéria circundante e sociedade, sim, mas também de liberdade moral; a história política apresenta padrões e regista macrotendências, a par de descontinuidades imprevisíveis, é verdade; mas é feita também de razão e virtude: das escolhas, acções, omissões e interacções livres das pessoas. E a Providência não elimina – mas acompanha – essas intervenções livres, num futuro aberto.

Bibliografia:

  • FRAKES, J., The Fate of Fortune in the Early Middle Ages, Leiden: Brill, 1988
  • SKINNER, Quentin, The Foundations of Modern Political Thought, Vol. 1, Cambridge: Cambridge University Press, 1978,
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