por João César das Neves, 2024

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1. A atividade económica tem forte relação com a ética, pelo menos a três níveis. A primeira questão, e a mais direta, tem a ver com a atitude moral na própria operação do sistema. Quando alguém rouba, manipula o preço ou explora o trabalhador gera uma violação da equidade na relação. O termo clássico para a orientação envolvida é “justiça comutativa”, promovendo a igualdade nas transações.

2. Outro problema bastante diferente liga-se ao resultado dessa operação. É comutativamente justo que quem não produz nada receba. Mas se a razão disso é a pessoa ser criança, idoso, doente ou habitante de uma zona desfavorecida, surge outra exigência ética, a que se costuma chamar “justiça distributiva”, que se destina a conseguir um acesso de todos a uma vida digna.

3. Estes dois requisitos éticos conflituam frequentemente. Por exemplo, o pagamento de um imposto é, em si mesmo, um atropelo à justiça comutativa, com o contribunte a ficar com menos do que lhe compete, mas justificado por razões distributivas. Grande parte das discussões políticas resultam desta contraposição. As orientações liberais tendem a sublinhar a primeira justiça em detrimento da segunda. Quando o Nobel da Economia Milton Friedman afirmou que “A responsabiidade social dos negócios é aumentar os lucros” (New York Times Magazine 13/Set/1970), assumia que as empresas “se mantinham dentro das regras do jogo”, a justiça comutativa, mas suprimia nelas as considerações distributivas. Por outro lado, muitos socialistas propõem enormes atropelos à equidade pecuniária na luta por uma sociedade mais justa.

4. Um terceiro elemento tem a ver, não com a operação ou os resultados da economia, mas a sua natureza. Desde sempre que os negócios carregam uma forte suspeita moral, independentemente da forma como são conduzidos ou dos efeitos que causam. Este elemento, em geral ligado ao vício da ganância e ao fascínio do ouro, não surge de atropelos às justiças comutativa ou distributiva, mas da baixeza essencial da atividade produtiva e comercial, que nas sociedades clássicas competia a escravos. Aristóteles concedeu o seu prestígio à tese quando, após definir a atividade natural da gestão familiar (ekonomiké), afirmou: “uma vez inventada a moeda por causa das necessidades da troca, nasce uma outra forma de arte de adquirir (chrematistikê), a forma comercial, (…) que procura o maior lucro possível” (Política 1257b.1-5). Assim, há 2300 anos que a crematística anda condenada. Karl Marx invocou explicitamente este texto na definição de capitalismo (Das Kapital I, 2, 4), incriminando o sistema por razões intrínsecas, como o fazem tantos hoje, mesmo com orientações opostas. Esta terceira dimensão é bem visível precisamente no tema mais complexo e controverso da ética económica, a questão da usura, juro e finança. Tradicionalmente as sociedades repudiam tais práticas ou, as poucas que as aceitam, exigem fortes regulamentações. Apesar disso o crédito manteve-se sempre popular, havendo mesmo quem defenda que as primeiras leis, como o Código de Hammurabi (Mesopotâmia, 1754 aC), nasceram para lidar com a questão e que a ciência económica surgiu das tentativas escolásticas para justificar a condenação.

5. A ética económica, nestas suas três dimensões, traduz-se nas várias doutrinas sociais, as quais se distinguem mais pela combinação particular dos três vetores que pelo conteúdo deles. Todos identificam e repudiam fraude, desigualdade e cobiça, mas cada uma destas viu-se frequentemente justificada ideologicamente para combater as outras.

6. Um dos casos mais influentes desse equilíbrio é a doutrina da Igreja Católica, que tem a relevância adicional de, orientada para a salvação eterna, não se centrar na economia, sem no entanto a desprezar. Cristo afirmou: «quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é infiel no pouco também é infiel no muito. Se, pois, não fostes fiéis no que toca ao dinheiro desonesto, quem vos há-de confiar o verdadeiro bem? » (Lc 16, 10-11). Fica assim clara a distinção entre os planos, mantendo no entanto a justiça no inferior, do “dinheiro desonesto”, pela sua ligação ao superior.

7. As afirmações eclesiais mais radicais surgem na distribuição. Conceitos como “destino universal dos bens” (CDSI 171-184), “dimensão subjectiva do trabalho” (id. 270-280) e “gratuidade” (id. 20-32, 196, 221, 391), diretamente resultantes do fundamento da doutrina, a dignidade da pessoa humana (id. Cap. III), implicam fortes exigências sobre a estrutura da sociedade, da empresa e do mercado. Sem rejeitar a propriedade privada, a colaboração entre capital e trabalho e o comércio, propõe-se uma sociedade de caridade na verdade, concebida para atender às necessidades de todos.

8. Quanto à maldade intrínseca da economia, desde Santo Agostinho que a Igreja rejeitou a condenação da crematística: «Eu, comerciante, não passo a minha culpa para o negócio; pois se minto, sou eu que minto, não o negócio (…) Só sei uma coisa: se eu fôr mau, o que me faz mau não é o negócio, mas a minha iniquidade.» (Comentário aos salmos, salmo 70, 17). O Papa Bento XVI esclarece a mesma questão ao dizer: «Não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.» (Caritas in Veritate, 36).

9. Não existe economia sem ética, como não existe sociedade sem economia. Os dilemas persistem devido à necessidade de balancear as várias exigências em busca de uma economia justa.

Bibliografia:

• CDSI – Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Lisboa, Principia, 2005.
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html
• Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral, A vocação do líder empresarial. Uma reflexão, Lisboa, Editora Paulus, 2018
https://www.humandevelopment.va/en/risorse/documenti/vocation-of-the-business-leader-a-reflection-5th-edition.html
• Hausman, Daniel M., Michael S. McPherson and Debra Satz, Economic Analysis, Moral Philosophy, and Public Policy, 3rd ed. Cambridge, Cambridge University Press, 2017.
• Hoffman, Michael, Robert E. Frederick e Mark S. Schwartz (eds.), Business Ethics: Readings and Cases in Corporate Morality, 5th ed., New Jersey, John Wiley & Sons, 2014
• Sen, Amartya, On Ethics and Economics, Oxford, Basil Blackwell, 1990

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