por José Lynce Pavia, 2024
1. Existem diferentes concepções sobre a noção de comunidade internacional. A dicotomia entre os conceitos de sociedade (Gesellschaft) e de comunidade (Gemeinschaft) suscitada pelo sociólogo Ferdinand Tönnies (1955, [1887]), poderá ser útil na nossa tentativa de dilucidação destes conceitos. Segundo este autor, uma sociedade é uma associação voluntária, com limites temporais, onde todos os elementos se podem encontrar, sem que haja um pressuposto de continuidade e duração. Já uma comunidade implica uma pertença “sem escolha”, com uma identificação em termos de vida comum, interesses comuns, cooperação e interacção entre os seus membros, sem limite temporal (Moreira, 2002, pp.44-45). Transpondo esta dicotomia para os conceitos de sociedade internacional e comunidade internacional, poder-se-á dizer numa fórmula mais simples – como o fez Marcello Caetano – que numa sociedade internacional os seus membros permanecem separados apesar daquilo que momentaneamente os possa unir; já numa comunidade internacional os seus membros permanecem unidos apesar daquilo que os possa separar (Caetano, Apud: https://direitoportugal.fandom.com/wiki/DIPI/Introdução). É em função desta distinção, aparentemente menor, mas que encerra uma grande diferença, que nos inclinamos para o conceito de sociedade internacional, dado que a actual configuração dos diversos actores internacionais, se aproxima mais de uma sociedade do que de uma verdadeira comunidade. José Cutileiro (2003, p. 118), por exemplo, evoca o conceito de “comunidade internacional” fazendo as seguintes considerações: “(…) O nome evoca pertença às Nações Unidas, adesão aos valores da Declaração Universal dos Direitos do Homem e das Convenções de Genebra sobre a guerra, mas é enganador. Na prática não se trata de uma comunidade, mas de um grupo de países e de organizações, intergovernamentais ou não, mais vezes em competição do que em colaboração uns com os outros, e nesse universo só um número pequeno de países poderosos toma as decisões importantes. (…)”
2. Esta é uma perspectiva claramente realista que dado o actual alinhamento de forças no sistema internacional nos parece ainda mais adequada. A chamada “Ordem Liberal Internacional” na qual assentam muitos dos pressupostos que levam uma tendência mais “idealista” a designar o sistema internacional como uma comunidade está claramente em declínio e a ser cada vez mais contestada por diversos países e organizações, uma parte significativa deles pertencente ao que agora se designa por “Sul Global”, por antonímia relativamente ao “Ocidente Global”. As normas, princípios e valores que enformam a “Ordem Liberal Internacional” são contestados abertamente com o argumento de que são um produto dos interesses do “Ocidente Global”, liderado pela potência hegemónica que são os Estados Unidos da América. São apontadas hipocrisias, e um claro enviesamento, por exemplo, ao Tribunal Penal Internacional, à Organização Mundial de Comércio, ao Fundo Monetário Internacional e ao Grupo do Banco Mundial, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, entre outras organizações, que estariam primordialmente ao serviço de interesses do “Ocidente Global” e cujos normativos se encontrariam desfasados da actual realidade internacional. Nesse sentido, as palavras de José Cutileiro citadas acima e escritas há mais de duas décadas, estão ainda mais actuais no presente contexto. Designar o actual sistema internacional como uma comunidade parece-nos um claro “Wishful thinking” que não encontra adesão à realidade e, nesse sentido, parece-nos mais adequado o conceito de sociedade internacional.
Bibliografia:
- Caetano, Marcello. Apud: https://direitoportugal.fandom.com/wiki/DIPI/Introdução (acesso 22/10/2024).
- Cutileiro, José (2003) Vida e Morte dos Outros: A Comunidade Internacional e o Fim da Jugoslávia, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa.
- Moreira, Adriano (2002) Teoria das Relações Internacionais, Almedina, Coimbra.
- Tönnies, Ferdinand (1955) Community and Association, Routledge & Paul, London. [1887].